"Só
agora estou sadio, e era doente, porque meu tempo
galopava
e afligia-me o medo do que viria."
A
condição poética - Czeslaw
Milosz
"Eu tenho pressa, tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim..."
Kid Abelha
Assim como
a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a
pressa é a saudade do futuro.
Nello Rangel
Um homem ganhou um carro
no bingo da igreja. Ao ir receber o seu prêmio não conseguiu achar a ignição.
“Onde é que se liga?” “Esse automóvel não precisa de chave. Ele é especial.
Funciona somente com palavras”.“E como é que se dá a partida?” perguntou
aflito. “É só dizer: graças a Deus”.“Graças a Deus!”, exclamou.
E foi embora. Pegou a
estrada e acelerou. “Graças a Deus! Graças a Deus! Graças a Deus!” E aí, no
máximo da velocidade, viu passar a placa: “Perigo, ponte caída”. Percebendo o
enorme precipício que se aproximava, exclamou: “Ich, me esqueci de perguntar
como se freia essa coisa!” Quando já estava quase despencando, já no auge do
desespero, gritou: “Ai, minha Nossa Senhora!!!”
SSSCRIIIINCH!!!! E o
carro parou imediatamente, dependurado na beirada do abismo. Ao que ele
exclamou, aliviado: “Graças a Deus....”
Anedota popular
Festinatio tarda est (A pressa mais
atrasa do que adianta).
Aforismo latino
“Pior, pior... Começamos
a olhar o medo... o medo grande... e a pressa... O medo é uma pressa que vem
de todos os lados, uma pressa sem caminho...”
João Guimarães Rosa, in Sagarana
A nós , nos cabe andar.
Mas o tempo, os seus passos,
são mínimos pedaços
do que há de ficar.
É perda pura
tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.
Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.
Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.
Rainer Maria Rilke: "A nós, nos cabe andar" trad. Augusto de Campos
Parafraseando João Guimarães Rosa, que disse "Toda saudade é uma espécie de velhice", afirmamos aqui, sem medo de errar:
Toda pressa é uma espécie de velhice.
Vivemos em uma época de muita pressa.
Temos a impressão de que tudo à nossa volta acontece muito rapidamente.
Novidades surgem a todo momento, novas tecnologias, novos aparelhos, novas
necessidades que antes nem imaginávamos possuir.
Nesse mundo apressado ou nos sentimos
imobilizados, na melhor hipótese, ou ficando para trás, na pior hipótese. Temos
uma permanente sensação de desatualização e sucateamento. Essa sensação por
vezes nos paralisa, quando quedamos desesperançosos de conseguir mudar a
situação. Por vezes nos lança em extrema pressa e agitação, o que acaba por nos
deixar precipitados e irreflexivos, e, por isso mesmo, mais adiante restaremos
igualmente paralisados por nossas precipitações.
Diz um ditado: “Seja você leão, seja você
gazela, corra!”. Ouvimos esse ditado, nas suas mais diversas formas, todos os
dias. E saímos correndo. Só lá muito adiante, e se tivermos sorte, é que
lembramos: “Ora, eu não sou leão, nem sou gazela, nem ao menos moro na África,
o que estou fazendo aqui, correndo como um desesperado?”
Ao consultar um dicionário
vemos que a palavra pressa remete a falta de calma, precipitação, afobação,
urgência. Sua origem é o vocábulo latino préssus, que significa
apertado, imprensado.
O desenho de caricatura de Howard
(fig. 1), de autoria de J. B. Priestley ironiza algumas dessas situações,
próprias de nossos dias: a pressa constante; a corrida desenfreada, sem rumo e
nem sentido; a rivalidade hierárquica; os mecanismos justificadores que
dificultam o processo de tomada de consciência.
fig.
1
Como caricatura, o trabalho de
Priestley tem uma linguagem própria. Alguns aspectos dessa linguagem merecem
ser ressaltados.
O primeiro desenho retrata Howard,
que diz: “Estou correndo, mas não vou a nenhuma parte”.Esta afirmação inicial
encontra-se ressaltada por alguns elementos gráficos presentes na caricatura.
Howard é o único personagem que tem
sombra. Isso ressalta a sensação de que ele não sai do lugar. Também é o único
personagem que não tem traços cinestésicos, que indicam movimento (sugerindo
que a passagem do personagem deixou uma mancha para trás, tamanha sua rapidez).
Esta falta de indicativos de movimento, somada à presença de sombra e às posições
dos braços e pernas de Howard - que indicam uma corrida - transmitem com
perfeição a sensação de que ele realmente está correndo, mas não sai do lugar.
A presença dos traços cinestésicos
nos outros personagens - Murray, Lucille e Irwin - indicam que eles passam
velozmente por Howard. Os traços cinestésicos mais fortes e ao mesmo tempo mais
finos, são de Irwin. Isto realça a impressão de que ele é o mais veloz. O
desenho de seu corpo chega a ser aerodinâmico sugerindo a forma de uma bala, o
que induz à percepção de uma velocidade ainda maior.
A postura de Howard é inicialmente
altiva: costas retas, corpo “empinado”, braços e pernas em posição de resoluta
corrida. Quando ele é ultrapassado por Irwin, sua postura se altera. Seus olhos
se arregalam e seu desenho aparenta estar incompleto, como se fosse um
rascunho. Sua postura se inclina para frente, curvada, perdendo a altivez
anterior. A amplitude dos movimentos de suas pernas diminui, seus passos são
menores, indicando perda de velocidade.
No último quadro, olheiras profundas
indicam o desânimo e depressão que se abateram sobre Howard.
A
estrutura vertical descendente escolhida pelo caricaturista contribui na
construção dos significados. A verticalização do desenho insinua a presença da
hierarquia com seus pressupostos de superior/inferior. O movimento descendente
de leitura do desenho insinua a decadência, que culmina no último desenho, onde
Howard, com expressão de depressão, parece próximo do “fundo do poço”.
O autor rompe com a convenção das
histórias em quadrinhos de separação em telas retangulares. Os desenhos
aparecem sem nenhuma separação, exceto o vazio que os circula. Também não
utiliza outra convenção: os balões onde ficam os textos. Isto ressalta ainda
mais o vazio da caricatura.
Todos esses elementos gráficos
transmitem com propriedade o clima da caricatura: a absurda pressa em que
vivemos, numa absurda corrida desenfreada que não sai do lugar, em busca de
lugar algum. Uma corrida sem sentido que conduz à imobilidade aflita, como se,
ao mesmo tempo, chicoteássemos e freássemos um cavalo de montaria.
Nesse clima, o tempo galopa e escapa
de nossas mãos. Ficamos aflitos, com medos supersticiosos do que pode nos
acontecer. Tomados de pressa e medo, e com a sensação de que estamos ficando
para trás, sucateados, acabamos por perder a prudência e a flexibilidade.
Entramos em cobiça, “em busca do tempo perdido”, e na voracidade, não fazemos
sequer os pequenos atos estratégicos que eram possíveis. Como que em um círculo
vicioso, a própria pressa decorrente da vivência que estamos atrasados, acaba
por paralisar ainda mais nosso movimento.
Por três vezes na caricatura, Howard
se justifica, com leituras apressadas para as ultrapassagens que sofre. Diz que
Murray é uma boa pessoa, e que Lucile faz uso de seu belo rosto, e que, por
estes motivos, não vai amargurar-se. Somente quando ultrapassado por Irwin ele
se altera. Neste momento Howard poderia ter evitado a justificação lamentadora.
Poderia ter entrado em pasmo-surpresa-admiração, parado e perguntado pelo
absurdo da situação. Assim poderia se aproximar do conhecimento, sair da
inconsciência justificadora e se alterar. Poderia assim perceber o mal em si
mesmo, sua inveja, rivalidade, pressa ou medo. Poderia perceber que havia ido
longe demais. Mas não. Howard não ficou em silêncio. Entrou em pasmo-temor,
interditando o conhecer. E, em seguida, em pasmo-desprezo, caindo novamente em
lamentações justificadoras e projetivas. Irwin vira assim uma “má pessoa”,
depositário exclusivo do mal que Howard recusa a perceber em si.
A caricatura em questão trabalha um
paradoxo: desde o início Howard diz que não consegue sair do lugar, “não vai a
lugar nenhum”[1]. Mas em
nenhum momento ele cogita parar, suspender mesmo que momentaneamente o
desespero, tomar consciência do disparate. A situação é absurda, mas não se
considera a possibilidade de mudança de direção, ou de fundamento. Howard
continua brigando com o tempo, correndo atrás de não se sabe o que, e
dissipando suas possibilidades de alteração, como que preso a um destino
predeterminado e imutável.
Para poder sair dessa situação ele
teria que parar e pensar. Houve uma chance quando ele entrou em pasmo. Neste
momento ele poderia ter recuperado a própria experiência, parado e se
perguntado sobre o absurdo de sua situação. Mas ao invés disso ele entrou em
pressa de definir logo a situação, sem deixar silêncio ou vazio. Entrou em
pasmo-temor-desprezo e, com receio de revelar qualquer mal em si mesmo, caiu em
lamentação e rancor, culpando projetivamente Irwin por sua infelicidade.
Semelhante dificuldade teve o piloto
Ayrton Senna.
Senna foi eleito recentemente o maior
piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo
sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua
qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de
carros.
Sua morte trágica, ocorrida durante a
prova de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.
Naquele ano muitas mudanças foram
realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que
no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a
suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos
veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos
das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de
ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o
recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados
na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses
que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.
As queixas de que os carros estavam
mais inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O
próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão
rápidos demais e difíceis de controlar”.
No primeiro dia de treinos Senna ficou
transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo
primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na
aceleração de seu carro e decola sobre
uma zebra da pista, bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta
numa tela protetora. Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.
No dia seguinte Senna assistiu pelo
monitor dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as
equipes de socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito
se descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15
minutos.
Após 12 anos sem um acidente fatal na
formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de
semana Senna também morreria.
A morte de Ratzenberger levou Senna a
liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao
falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto
austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais
tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse:
“Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.
Pouco antes da corrida, na hora da
concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum
chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.
Por que Senna mudou de opinião e decidiu
correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para
julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a
comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que
ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite
já tinha mudado de opinião e decidido correr.
Decisão diferente tomou Emerson
Fittipaldi, em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos
para a prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram
sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente
instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As
pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram
imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos
concordou em correr.
Emerson, ameaçado até de exclusão
definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e
não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas
instantaneamente, e deixou muitos feridos.
Neste caso os fatos posteriores deram
razão a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de
que a prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto
covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser
jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua
decisão.
Ayrton Senna já não era tão moço,
tinha então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi
a primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas.
Rodou na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova
seguinte. Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como
poderia deixar de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que
perdera o arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua
vida, que devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.
Alguns desses pensamentos devem ter
passado pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma
forma ele anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia
seguinte. E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.
Sabemos hoje que o principal elemento
causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians.
Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse
ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de
risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado
primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe
lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se acidentou
muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na corrida
seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se acidentaria
com gravidade, ficando muitos dias em coma.
E Senna percebeu os absurdos, tomou a
decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de
opinião.
Conan Doyle, através de seu famoso
personagem Sherlock Holmes, no romance
“A cidade do medo”, diz de “Um homem que
não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve
dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um homem que não
pode falhar está condenado à pressa e ao medo.
O medo de falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se
falho ou errôneo.
Sherlock Holmes seria a antítese deste
tipo de homem, uma vez que nas suas historias não se precipita nem se apressa.
É um personagem que considera com cuidado a si mesmo e à realidade a sua volta.
Trabalha com hipóteses e serenamente espera que a realidade se manifeste por
inteiro antes de fechar um raciocínio. Não é desconfiado, mas tem a coragem da
prudência. Sua atitude cuidadosa revela a sua humildade. Ele sabe que não sabe
tudo.
É possível ultrapassar quem tem
esperanças, projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na
direção daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe
reconhecer o que sabe e o que não sabe?
É muito interessante comparar a
etimologia da palavra humildade com a etimologia da palavra humano.
Humildade vem do latim humilìtas,átis
, que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra
latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do
homem.
Os dois vocábulos têm em comum o
prefixo HUM, do latim húmus,
significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra,
não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo
próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição
primeiro aos deuses, depois aos outros seres.
É de se notar que as duas palavras,
humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso
sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em
virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos
até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se
próximo do chão, o saber-se finito e limitado. O ser humano seria assim um ser
de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua
vida, nunca chegando a estar pronto.
Mas negamos essa condição de humanos
aprendizes, e almejando a perfeição - perfeição esta inumana por definição -
vivemos numa busca desesperada do sucesso, do não falhar, do chegar, ver e
vencer absolutos. E assim vivemos com pressa, medo e desesperança.
Há autores que consideram a saudade
como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação
no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse
contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do
futuro?
Assim como a nostalgia é a saudade do
passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.
Temos saudade do passado quando
poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos
tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do
futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer
chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a
vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa,
e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de
conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de
forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que
fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada
pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e
confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá.
A nostalgia, a saudade do passado,
teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A
pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o
seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem
constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.
Para nos liberarmos das amarras da
pressa, a estereotipia de nossos dias, é preciso parar e pensar. Não temer a
tomada de consciência do mal que nos cabe, considerar a própria experiência e
ter os olhos abertos para ver a realidade.
BIBLIOGRAFIA
CARROLL, Lewis – Através do espelho
e o que Alice encontrou lá. – Summus Editorial. São Paulo, 1980.
ROSA, João Guimarães – Sagarana
– Editora Record – Rio de Janeiro, 1984.
PRIESTLEY, J. B. – El hombre y el tiempo. Aguilar Ediciones,
Madrid, 1964.
[1]
O paradoxo de correr desesperadamente sem sair do lugar foi muito bem descrito
por Lewis Carroll, em seu livro “Através do espelho e o que Alice encontrou
lá”, que transcrevo abaixo:
“... Quase de imediato, não
se sabe bem como, puseram-se a correr.
Alice nunca pode saber
direito, quando pensou mais tarde, como é que isso tinha começado: tudo que ela
se lembrou é que as duas estavam correndo de mãos dadas, e a Rainha era tão
veloz que tudo que ela podia fazer era tentar acompanhá-la. Mesmo assim, a
Rainha não se cansava de gritar “Mais depressa! Mais depressa!” Alice não podia
ir mais depressa, embora mal tivesse fôlego para dizê-lo. (...)
E iam tão velozes
que pareciam deslizar pelos ares, quase sem tocar o solo com os pés, até que de
súbito, justo quando Alice parecia morrer de cansaço, elas pararam. Alice se
viu sentada no chão, aturdida e sem fôlego. (...) Olhou em volta de si muito
surpreendida. – Ora essa, acho que ficamos sob essa árvore o tempo todo! Está
tudo igualzinho!”
3 comentários:
Absolutamente espetacular seu texto, Nello. Fiquei encantado. Tenho me julgado muito feliz, principalmente em relação a todo mundo, por me dar tempo para fruir montes de coisas, comida que faço, vinho, uma poesia e o luar. Vejo as pessoas repetirem quase em uníssono que a vida está uma correria. A minha não, eu decidi que não seria assim, há muito tempo... E julgo que já vivi muito mais de três vezes a vida de outras pessoas de nossa idade que correm o tempo todo. Grande abraço.
Ao pensar na pressa, lembro-me de alguns valores, práticas e costumes de certas culturas orientais, as quais primam por ir na direção oposta da cultura capistalista, dita selvagem, que além de tudo, representa um estupro do tempo psicológico. É muito desconfortável e alienante flagar que na duração do seu almoço, a mente não usufrui da temporalidade da refeição e do que ela pode trazer de prazer pelo paladar ou visualização do alimento, mas desloca-se doentiamente para seis ou sete problemas a frente, que torturam a mente, eclipsando o ritual alimentar e o próprio significado da dieta. Quizera eu poder, como fazem algumas japonesas, tomar o chá e neste intervalo só pensar na aromática planta crescendo do ventre da terra, raizes tenras, caule carnudo e folhas nobres.
Muito bom! Obrigada pelo belo texto!
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