“Desculpa
me dê o senhor, sei que estou falando demais, dos lados. Resvalo. Assim é que a
velhice faz. Também, o que é que vale e o que é que não vale? Tudo. Mire veja:
sabe por que é que eu não purgo remorso? Acho que o que não deixa é a minha boa
memória. A luzinha dos santos-arrependidos se acende é no escuro. Mas, eu,
lembro de tudo. Teve grandes ocasiões em que eu não podia proceder mal, ainda
que quisesse. Por quê? Deus vem, guia a gente por uma légua, depois larga.
Então, tudo resta pior do que era antes. Esta vida é de cabeça-para-baixo, ninguém
pode medir suas perdas e colheitas. Mas conto. Conto para mim, conto para o
senhor. Ao quando bem não me entender, me espere.”
quinta-feira, 27 de setembro de 2012
terça-feira, 25 de setembro de 2012
Orides Fontela
Bendita a sede
por arrancar nossos olhos
da pedra.
Bendita a sede
por ensinar-nos a pureza
da água.
Bendita a sede
por congregar-nos em torno
da fonte.
E Riobaldo fala do amor
(Da série “Como João Guimarães
Rosa pode mudar sua vida”, parte 9)
“Diz-que-direi
ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém,
no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que
isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado,
maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só
facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois. Muito
falo, sei; caceteio. Mas porém é preciso. Pois então. Então, o senhor me
responda: o amor assim pode vir do demo? Poderá?! Pode vir de
um-que-não-existe? Mas o senhor calado convenha. Peço não ter resposta; que, se
não, minha confusão aumenta.”
Falar
do amor tende a dar em confusão. E Riobaldo pede para que não se entre nesse
assunto para que sua confusão não aumente. Mas ele próprio já falou sobre o
amor e voltará a falar, inúmeras vezes.
Neste
trecho Riobaldo fala do amor que vai sendo construído, com a gente querendo e
ajudando, e fala do amor inteiriço fatal, cheio de surpresas.
De
certa forma ele está dizendo do amor e da paixão. E é importante completar a
conversa falando ainda da obsessão.
O
amor é a amizade do querer.
A
paixão é a ambição do querer.
A
obsessão é a cobiça do querer.
A
amor é sinônimo quase perfeito de amizade. Se o amor fosse uma mão, a palma
desta mão – a base, o fundamento - seria a amizade. Os dedos dessa mão seriam o
cuidado, o respeito, a admiração, o carinho e o desejo. O amor tem duas características
interligadas. Ele é reversível e exige reciprocidade. Se eu penso amar alguém,
vou na direção desse meu afeto e esta pessoa mostra não sentir amor por mim,
meu amor – se é realmente amor - se retraí. Sem a reciprocidade do amor do
outro o amor se reverte e deixa de ser amor.
O
amor sempre é bom.
A
paixão é a ambição do querer, é o querer com entusiamo. A paixão é a graxa que
vem recuperar a flexibilidade das molas do amor. Ela nada tem de ruim. Ruim é
fazer o que fazemos quase sempre: confundi-la com o amor. Pois como a paixão
trás em sua natureza a inconstância – ela vai e volta, ela aumenta e diminui,
ela aparece e some – sempre que ela arrefece achamos que não amamos mais. Mas
se tivéssemos um pouco de paciência veríamos que ela retornaria. E que, mesmo
com ela ausente, ainda assim o amor estaria presente. Um amor mais calmo, mais
sereno, mas que se esperar um pouco, verá, mais cedo ou mais tarde, o retorno
da paixão e do entusiasmo.
Assim
a paixão pode ser boa ou ruim, dependendo de se a confundimos ou não com o
amor.
A
obsessão é a cobiça do querer. É um querer que não aceita que o outro não
queira e que está disposto a quaisquer condições para permanecer com o outro.
Nesse sentido a obsessão é o contrario do amor: ela é não reversível e não
exige a reciprocidade. Contando que você fique comigo, pouco importa que seja
por amor, se for por qualquer outro motivo – por culpa, dó, falta de opção
melhor, medo de ficar só, constrangimento ou qualquer outro motivo – ainda
assim, se prisioneiro da minha obsessão, eu aceitaria.
Se
o amor é sempre bom e a paixão pode ser boa ou não, a obsessão nunca é boa. Ela
é a própria negação do amor e a ausência da soberania. Já não escolho tampouco
sou livre: sou é prisioneiro do meu querer e de minhas vontades.
Quanto
sofrimento seria evitado se tivéssemos essa diferenciação bem clara em nossas
cabeças?
segunda-feira, 24 de setembro de 2012
Drummond
"... e eu vou cronicando seu viver com a simpatia cúmplice que me inspiram o ser comum e sua pinta de loucura mansa, pois na terra alucinada que nos tocou, ainda é virtude (até quando?) cumprir sem violência o mandamento de existir."
sexta-feira, 21 de setembro de 2012
Adélia Prado
Sob pó e fuligem
os velhos troncos sucumbem
aos pequeninos botões.
A prima vida volta e é vera.
os velhos troncos sucumbem
aos pequeninos botões.
A prima vida volta e é vera.
Sêneca:
“Problemas há, liberális excelente, cuja pesquisa vale só pelo intelectual exercício, e que ficam sempre fora da vida; outros investigam-se com prazer e com proveito se resolvem. De todos te ofereço, cabendo-te à vontade decidir se a indagação deve perseguir-se até o fim ou simplesmente limitar-se a uma encenação para ilustrar o rol dos divertimentos”.
quarta-feira, 19 de setembro de 2012
Katsuhika Hokisai, sécs. 18-19
“Desde
a idade de seis anos eu tinha mania de desenhar a forma dos objetos. Por volta
dos cinquenta havia publicado uma infinidade de desenhos, mas tudo que produzi
antes dos sessenta não deve ser levado em conta. Aos setenta e três compreendi
mais ou menos a estrutura da verdadeira natureza, as plantas, as árvores, os
pássaros, os peixes e os insetos. Em consequencia, aos oitenta terei feito
ainda mais progresso. Aos noventa penetrarei no mistério das coisas; aos cem,
terei decididamente chegado a um grau de maravilhamento - e quando eu tiver
cento e dez anos, para mim, seja um ponto ou uma linha, será vivo.”
terça-feira, 18 de setembro de 2012
Bernard Shaw: O teatro das ideias
Este é um trecho da
resposta de Shaw a uma carta de um jovem crítico de teatro que recorria a ele
buscando dicas sobre o que escrevia.
“Você não levou nem
um pouco em conta minha recomendação de que deveria escrever um livro. Diz que
ainda tem pouca competência pra tanto. É exatamente por isso que recomendei que
você aprenda. Se lhe mandasse aprender a patinar você não me responderia
dizendo que ainda não tem suficiente equilíbrio. Uma pessoa aprende a patinar
levando trambolhões e fazendo papel de bobo. Na verdade, progride-se em todas
as coisas fazendo-se resolutamente o papel de bobo. Você nunca escreverá um bom
livro sem antes ter escrito alguns ruins. Se lhe enviassem meu artigo escocês
você veria que comecei escrevendo críticas abominavelmente ruins (...)Você
tem que passar por isso também; e nunca
é cedo demais para começar. Escreva mil palavras por dia pelos próximos cinco
anos pelo menos nove meses por ano.
E este é um trecho
da resposta de Shaw a uma carta de amor que ele recebeu.
“Não: você não me ama nem um pouquinho. Tudo isso é
natureza, instinto, sexo: não prova nada mais que isso. Não se apaixone: seja
você, própria, nem de mim nem de ninguém. A partir do momento em que não puder
ficar sem mim você estará perdida, como Bertha. Nunca tema: se nos queremos de
verdade, acabaremos descobrindo. Só sei que você tornou o outono muito feliz e
que sempre vou gostar de você por isso. Com o futuro não me preocupo: façamos o
que está em nossas mãos & aguardemos os acontecimentos”.
Alguns poderiam
supor que ele estava enrolando a remetente. Fato é que ele se casou com esta
pessoa.
terça-feira, 11 de setembro de 2012
Violência: As relações entre o sacrifício e a violência - Os bodes expiatórios
"A
violência não precisa de razões, sabe encontrá-las excelentes quando quer se
desencadear. Entretanto essas razões, por boas que sejam, não merecem jamais
serem levadas a sério. A violência busca, e sempre acaba por encontrar, uma
vítima, e a trocará por outra sem qualquer razão, exceto ser vulnerável e estar
ao alcance da mão.
A
escolha da vítima não deve ser definida em termos de culpa ou inocência. Não há
o que expiar. A sociedade desvia para uma vítima relativamente indiferente,
desde sacrificável, uma violência que ameaça ferir seus membros e que ela
pretende proteger a qualquer preço.
A
vítima não substitui apenas um indivíduo especialmente ameaçado, e não é
oferecida a tal ou qual indivíduo, especialmente sanguinário, substitui e se
oferece ao mesmo tempo a todos os membros da sociedade por todos os membros da
sociedade. É à comunidade inteira que o sacrifício protege de sua própria
violência e hostilidade desviando-a para vítimas que lhe são “exteriores”.
Há
um denominador comum a toda situação de substituição sacrificial - a violência
e hostilidade intestinas. São as dissensões (divergência, desavença e oposição),
as rivalidades, o ciúme, a inveja, as disputas que o sacrifício pretende antes
de tudo eliminar restaurando a harmonia da comunidade e reforçando a unidade
social e conservando a prosperidade material.
O
sacrifício tem a função de apaziguar as violências intestinas e impedir que
estalem os conflitos.
A
lista das vítimas é bastante heterogênea. Tal diversidade apresenta, entretanto
um critério comum, em primeiro lugar são seres que não pertencem, ou pertencem
muito pouco à sociedade. São pessoas exteriores ou marginais, às vezes por sua
qualidade de estrangeiro, de inimigo ou de recém-chegado, pela idade ou pela
condição servil.
Outro
determinante na escolha das vítimas é a necessidade de evitar a vingança. O
desejo de violência se dirige aos próximos, porém não pode satisfazer-se sobre
eles sem provocar todo tipo de conflito; convém, pois desviá-lo para uma vítima
sacrificial que se possa ferir sem perigo, pois não haverá ninguém para
defender a sua causa."
fonte:
La violência e lo sagrado
René Girard – Seleção e tradução minhas.
René Girard – Seleção e tradução minhas.
segunda-feira, 10 de setembro de 2012
Para Maria da Graça:
Agora, que
chegaste à idade avançada de 15 anos, Maria da Graça, eu te dou este livro: Alice no país das Maravilhas.
Este livro é
doido, Maria. Isto é: o sentido dele está em ti.
Escuta: se não
descobrires um sentido na loucura acabarás louca. Aprende, pois, logo de saída
para a grande vida, a ler este livro como um simples manual do sentido de todas
as coisas, inclusive as loucas. Aprende isso a teu modo, pois te dou apenas
umas poucas chaves entre milhares que abrem as portas da realidade.
A realidade,
Maria, é louca.
Nem o Papa,
ninguém no mundo, pode responder sem pestanejar à pergunta que Alice faz à gatinha: “Fala a verdade, Dinah, já
comeste um morcego?”.
Não te espantes quando o
mundo amanhecer irreconhecível. Para melhor ou pior, isso acontece muitas vezes
por ano. “Quem sou eu no mundo?”
Essa
indagação perplexa é o lugar-comum de cada história de gente. Quantas vezes
mais decifrares essa charada, tão entranhada em ti mesma como os teus ossos,
mais forte ficarás. Não importa qual seja a resposta; o importante é dar ou
inventar uma resposta. Ainda que seja mentira.
A sozinhez
(esquece essa palavra que inventei agora sem querer) é inevitável. Foi o que
Alice falou no fundo do poço: “Estou tão cansada de estar aqui sozinha!”. O
importante é que ela conseguiu sair de lá, abrindo a porta. A porta do poço! Só
as criaturas humanas (nem mesmo os grandes macacos e os cães amestrados)
conseguem abrir uma porta bem fechada, e vice-versa, isto é, fechar uma porta
bem aberta.
Somos todos
tão bobos, Maria. Praticamos uma ação trivial, e temos a presunção petulante de
esperar dela grandes conseqüências. Quando Alice comeu o bolo, e não cresceu de
tamanho, ficou no maior dos espantos. Apesar de ser isso o que acontece,
geralmente, às pessoas que comem bolo.
Maria, há uma
sabedoria social ou de bolso; nem toda sabedoria tem de ser grave.
A gente vive
errando em relação ao próximo e o jeito é pedir desculpas sete vezes por dia:
“Oh, I beg your pardon!” Pois viver é falar de corda em casa de enforcado. Por
isso te digo, para a tua sabedoria de bolso: se gostas de gato, experimenta o
ponto de vista do rato. Foi o que o rato à Alice: “Gostarias de gatos se fosses
eu?”.
Os homens
vivem apostando corrida, Maria. Nos escritórios, nos negócios, na política,
nacional e internacional, nos clubes, nos bares, nas artes, na literatura, até
amigos, até irmãos, até marido e mulher, até namoradas, todos vivem apostando
corrida. São competições tão confusas, tão cheias de truques, tão
desnecessárias, tão fingindo que não é, tão ridículas muitas vezes por caminhos
tão escondidos, que, quando os atletas chegam exaustos a um ponto, costumam
perguntar: “A corrida terminou! Mas quem ganhou?” É bobice, Maria da Graça,
disputar uma corrida se a gente não irá saber quem venceu. Se tiveres de ir a
algum lugar, não te preocupe a vaidade fatigante de ser a primeira a chegar. Se
chegares sempre onde quiseres, ganhaste.
Disse o
ratinho: “Minha história é longa e triste!” Ouvirá isso milhares de vezes. Como
ouvirás a terrível variante: “Minha vida daria um romance”. Ora, como todas as
vidas vividas até o fim são longas e tristes, e como todas as vidas dariam
romances, pois romance é só um jeito de contar uma vida, foge, polida mas
energicamente, dos homens e das mulheres que suspiram e dizem: “Minha vida
daria um romance!” Sobretudo dos homens. Uns chatos irremediáveis, Maria.
Os milagres
sempre acontecem na vida de cada um e na vida de todos. Mas, ao contrário do
que se pensa, os melhores e mais fundos milagres não acontecem de repente, mas
devagar, muito devagar. Quero dizer o seguinte: a palavra depressão cairá de
moda mais cedo ou mais tarde. Como talvez seja mais tarde, prepara-te para a
visita do monstro, e não te desesperes ao triste pensamento de Alice: “Devo
estar diminuindo de novo”. Em algum lugar há cogumelos que nos fazem crescer
novamente.
E escuta esta
parábola perfeita: Alice tinha diminuído tanto de tamanho que tomou um
camundongo por um hipopótamo. Isso acontece muito, Mariazinha. Mas não sejamos
ingênuos, pois o contrário também acontece. E é um outro escritor inglês que
nos fala mais ou menos assim: o camundongo que expulsamos ontem passou a ser
hoje um terrível rinoceronte: É isso mesmo. A Alma da gente é uma máquina complicada
que produz uma quantidade imensa de camundongos que parecem hipopótamos e
rinocerontes que parecem camundongos. O jeito é rir no caso da primeira
confusão e ficar bem disposto para enfrentar o rinoceronte que entrou nos
nossos domínios disfarçado de camundongo. E como tomar o pequeno por grande e o
grande por pequeno é sempre meio cômico, nunca devemos perder o bom humor.
Toda pessoa
deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou
menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor
que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para
rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito
escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos
perigosos que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação
de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou
muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grande ocasiões.
Por fim, mais
uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao
sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A
dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso,
Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me
em minhas próprias lágrimas”.
Conclusão: a
própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso
ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.
Paulo
Mendes Campos
OSLER, WILLIAM (1849 - 1919):
Nasceu
no Canadá. Aos 25 anos era professor de medicina. Tornou-se um dos celebres
quatro doutores que revolucionaram a educação médica nos Estados Unidos da
América.
Era
o médico, o professor, o humanista, o escritor, o historiador, o filantropo, o
amigo e companheiro de jovens e de velhos. O médico de quem todos queriam se
aproximar e cuja simpatia pessoal e riqueza de conhecimentos clássicos e
científicos resumiu para o Século XX tudo o que havia de mais nobre da larga
tradição histórica da medicina.
Provavelmente
não houve medico algum que fosse tão citado quanto ele. Era o médico mais
eminente e de maior influencia de seu tempo e se fazia ser querido de tanta
gente por suas qualidades pessoais. Entrava no quarto do enfermo com uma canção
e um sorriso nos lábios, com um aspecto de alegria, com um nao-se-sabe-o-que de
radioso, que já aliviava o paciente. Era aquele que amava seus semelhantes e
por todos era querido.
“O
que nos causa dano é o sentimento absurdo de falta de tempo, essa tensão que
não nos deixa respirar, essa ansiedade de resultados, e essa ausência de
harmonia e soltura interior.
A
vida é feita de uma coisa atrás da outra: a vida é um hábito [ou um
continuado].
A
vida aparece em compartimentos do tamanho de um dia.
O
que importa sobretudo não é deparar com o que vislumbra os olhos mas senão o
que temos à mão. Olhe ao redor, nunca para o horizonte distante porque aí está
o perigo. Não está aí a verdade senão as falsidades, as fraudes, as
charlatanices, os fogos fátuos que tem enganado todas as gerações. Todos eles
fazem sinais desde o horizonte e enganam os homens que não se contentam com
mirar a felicidade e a verdade que vem a cair sob seus pés.
A
concentração é uma arte que se vai adquirindo lentamente. Pouco a pouco se vai
acostumando a mente aos hábitos de ingerir espaçadamente e digerir com cuidado,
único meio para se livrar da dispepsia mental.
Estende-se
a nossa volta um mundo promissor, que nos está endereçado e que nos convida a
gozá-lo.
Supõe-se
que um homem que tenha ocupado cargos de importância em quatro universidades,
que tenha escrito um livro coroado de êxito, entre outras atividades, possua um
cérebro de qualidade especial. Somente os amigos mais íntimos conhecem a
verdade a respeito de mim, como a conheço eu! Meu cérebro, o digo de boa fé, é
o mais mediano que existe. Mas então o que dizer das cadeiras universitárias e
tudo o mais? Nada mais que hábito, caminho trilhado, resultado de uma vida
quotidiana.”
domingo, 9 de setembro de 2012
A mão suja - Carlos Drummond de Andrade
Minha
mão está suja.
Preciso cortá-la.
Não
adianta lavar.
A
água está podre.
Nem
ensaboar.
O
sabão é ruim.
A
mão está suja,
suja
há muitos anos.
A
princípio oculta
no
bolso da calça,
quem
o saberia?
Gente
me chamava
na
ponta do gesto.
Eu
seguia, duro.
A
mão escondida
no
corpo espalhava
seu
escuro rastro.
E
vi que era igual
usá-la
ou guardá-la.
O
nojo era um só.
Ai,
quantas noites
no
fundo da casa
lavei
essa mão,
poli-a,
escovei-a.
Cristal
ou diamante,
por
maior contraste,
quisera
torná-la,
ou
mesmo, por fim,
uma
simples mão branca,
mão
limpa de homem,
que
se pode pegar
e
levar à boca
ou
prender à nossa
num
desses momentos
em
que dois se confessam
sem
dizer palavra...
A
mão incurável
abre
dedos sujos.
Eu
era um sujo vil,
não
sujo de terra,
sujo
de carvão,
casca
de ferida,
suor
na camisa
de
quem trabalhou.
Era
um triste sujo
feito
de doença
e
de mortal desgosto
na
pele enfarada.
Não
era sujo preto
-
o preto tão puro
numa
coisa branca.
Era
sujo pardo,
pardo,
tardo, cardo.
Inútil
reter
a
ignóbil mão suja
posta
sobre a mesa.
Depressa,
cortá-la,
fazê-la
em pedaços
e
jogá-la ao mar!
Com
o tempo, a esperança
e
seus maquinismos,
outra
mão virá
pura
- transparente -
colar-se
a meu braço.
João Cabral de Melo Neto
“Pois
que inaugurando esta criança
pensam
os homens
reinaugurar
a sua vida
e
novo caderno começam,
fresco
como o pão do dia;
pois
que nestes dias a aventura
parece
em ponto de vôo, e parece
que
vamos poder explodir nossas sementes,
que
desta vez não perca esse caderno
sua
sedução direta para o dente,
que
o entusiasmo conserve vivas suas molas
e
que possa enfim o ferro
comer
a ferrugem, o sim comer o não.”
sábado, 8 de setembro de 2012
E Riobaldo conhece Diadorim e admira sua coragem:
(Da série “Como João Guimarães
Rosa pode mudar sua vida”, parte 8).
Neste
ponto do livro, por volta da pg. 102, voltamos no tempo e o menino Riobaldo
conhece o menino Diadorim.
“Aí
pois, de repente, vi um menino, encostado numa árvore, pitando cigarro. Menino
mocinho, pouco menos do que eu, ou devia de regular minha idade.”
A
afinidade é imediata e eles conversam sem cansaço.
“Mas
eu olhava esse menino, com um prazer de companhia, como nunca por ninguém eu
não tinha sentido. Achava que ele era muito diferente, gostei daquelas finas
feições, a voz mesma, muito leve, muito aprazível. Porque ele falava sem
mudança, nem intenção, sem sobejo de esforço, fazia de conversar uma
conversinha adulta e antiga. Fui recebendo em mim um desejo de que ele não
fosse mais embora, mas ficasse, sobre as horas, e assim como estava sendo, sem
parolagem miúda, sem brincadeira – só meu companheiro amigo desconhecido.”
E
Diadorim convida Riobaldo para passear de canoa. Ao entrarem no Rio São
Francisco Riobaldo fica com muito medo. E Diadorim fala:
“Carece de ter coragem...” – ele me disse. Visse
que vinham minhas lágrimas? Dói de responder: – “Eu não sei nadar...” O menino
sorriu bonito. Afiançou: – “Eu também não sei.” Sereno, sereno. Eu vi o rio.
Via os olhos dele, produziam uma luz. – “Que é que a gente sente, quando se tem
medo?” – ele indagou, mas não estava remoqueando; não pude ter raiva. – “Você
nunca teve medo?” – foi o que me veio, de dizer. Ele respondeu: – “Costumo
não...” – e, passado o tempo dum meu suspiro: – “Meu pai disse que não se deve
de ter...” Ao que meio pasmei. Ainda ele terminou: – “... Meu pai é o homem
mais valente deste mundo.”
(...) medo
do mulato, nem de ninguém, ele não conhecia.
Relembrando
texto anterior sobre a coragem:
Aqui é possível fazer uma primeira distinção entre coragem, valentia e
covardia.
Coragem é conseguir ultrapassar os receios
quando se é fundamental tentar. O medo está presente na coragem e vem
temperá-la, para que ela possa se equilibrar com a prudência. Coragem é seguir
o ditado: “É hora de se usar a tática da gelatina: vai tremendo, mas vai”. A
coragem remete, em sua etimologia, à palavra cordos, coração. E parece sugerir,
desta forma, que inclui em si os sentimentos e emoções, e que está perturbado por
estas não indica falta de coragem.
Coragem não é não sentir medo. Que mérito haveria
em fazer algo sem nenhum resquício de medo? Em que precisei me superar, me
alterar, para conseguir realizar, se não senti nenhum receio? O mérito está em
sentir medo, mas sabendo ser importante, conseguir ultrapassá-lo e não
paralisar.
Quando o medo toma a pessoa por inteiro,
chegando a paralisá-la, estamos falando então da covardia. Está é quando a
pessoa, diante da necessidade fundamental de tentar, se deixa imobilizar pelo
medo.
No polo oposto encontra-se a valentia, que é
o agir intempestivo, sem nenhuma prudência. Essa valentia assustadora,
aparentemente uma ação sem nenhum tipo de receio, na maior parte das vezes é
justamente o contrario disto: é uma ação possuída pelo medo, agora já
transformado muitas vezes em pânico.
Diadorim
diz nunca ter sentido medo. Ele está muito mais próximo da valentia do que da
coragem. E Riobaldo, que sente tanto medo, vislumbra em Diadorim a ausência
desse sentimento que tanto lhe atormenta, e fica impressionado.
Riobaldo
é uma pessoa em busca, que caminha por um tipo de iniciação. Terá duas grandes
questões a enfrentar em seu processo de transformação.
A
primeira questão será a busca por adquirir coragem e superar o medo paralisante. Mas seu
parceiro neste processo iniciático, ou seu modelo, desconhece o medo. Diadorim não é corajoso, é valente. E Riobaldo
sofrerá por tentar chegar à coragem via ausência de medo. Pois o caminho de
Diadorim o conduzirá a dor, como seu próprio nome parece indicar: dia-dor-zim.
Ou, nas palavras do próprio romance: “(Diadorim) que nasceu para o dever de
guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de amor...”
A
segunda questão que terá que enfrentar é o aprendizado do amor e seu mestre
nesse aprendizado será Otacília. É por esse motivo que já perto do fim do
livro, logo após a morte de Diadorim, Riobaldo afirma por três vezes que a
estória se acabou e, apesar disto, continua a contá-la. Acabou a primeira fase,
a fase do aprendizado da coragem. Inicia-se a segunda fase, a fase do
aprendizado do amor.
Talvez pudéssemos dizer que a única coragem realmente digna desse nome é a coragem de amar.
Talvez pudéssemos dizer que a única coragem realmente digna desse nome é a coragem de amar.
quarta-feira, 5 de setembro de 2012
Carlos Drummond de Andrade
Que pode uma criatura senão,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
senão entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho, e uma ave de rapina.
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
E Riobaldo fala de como não sabemos, às vezes, que o bom tá ao alcance de nossas mãos:
(Da série “Como João Guimarães
Rosa pode mudar sua vida”, parte 7).
Riobaldo diz agora de uma carta
que levou oito anos para chegar. E ainda assim chegou a ele. Logo adiante vai
narrar seu primeiro encontro com Diadorim, por acaso, os dois ainda crianças. E
vai perguntar porque encontrou ele naquele dia.
"Mire veja: aquela moça, meretriz, por lindo nome Nhorinhá,
filha de Ana Duzuza: um dia eu recebi dela uma carta: carta simples, pedindo
notícias e dando lembranças, escrita, acho que, por outra alheia mão. Essa
Nhorinhá tinha lenço curto na cabeça, feito crista de anu-branco. Escreveu, mandou
a carta. Mas a carta gastou uns oito anos para me chegar; quando eu recebi, eu
já estava casado. Carta que se zanzou, para um lado longe e para o outro,
nesses sertões, nesses gerais, por tantos bons préstimos, em tantas algibeiras
e capangas. Ela tinha botado por fora só: Riobaldo que está com Medeiro Vaz.
E veio trazida por tropeiros e viajores, recruzou tudo. Quase não podia
mais se ler, de tão suja dobrada, se rasgando. Mesmo tinham enrolado noutro
papel, em canudo, com linha preta de carretel. Uns não sabiam mais de quem tinham
recebido aquilo. Ultimo, que me veio com ela, quase por engano de acaso, era um
homem que, por medo da doença do toque, ia levando seu gado de volta dos
gerais para a caatinga, logo que chuva chovida. Eu já estava casado. Gosto de
minha mulher, sempre gostei, e hoje mais. Quando conheci de olhos e mãos essa
Nhorinhá, gostei dela só o trivial do momento. Quando ela escreveu a carta, ela
estava gostando de mim, de certo; e aí já estivesse morando mais longe, magoal,
no São Josezinho da Serra – no indo para o Riacho-dasAlmas e vindo do Morro dos
Ofícios. Quando recebi a carta, vi que estava gostando dela, de grande amor em
lavaredas; mas gostando de todo tempo, até daquele tempo pequeno em que com ela
estive, na Aroeirinha, e conheci, concernente amor. Nhorinhá, gosto bom ficado
em meus olhos e minha boca. De lá para lá, os oito anos se baldavam. Nem
estavam. Senhor subentende o que isso é? A verdade que, em minha memória,
mesmo, ela tinha aumentado de ser mais linda. De certo, agora não gostasse mais
de mim, quem sabe até tivesse morrido... Eu sei que isto que estou dizendo é
dificultoso, muito entrançado. Mas o senhor vai avante. Invejo é a instrução
que o senhor tem. Eu queria decifrar as coisas que são importantes. E estou
contando não é uma vida de sertanejo, seja se for jagunço, mas a matéria vertente.
Queria entender do medo e da coragem, e da gã que empurra a gente para fazer
tantos atos, dar corpo ao suceder. O que induz a gente para más ações estranhas
é que a gente está pertinho do que é nosso, por direito, e não sabe, não sabe,
não sabe!"
Ou, nas palavras de William Osler, “O que importa sobretudo não é
deparar com o que vislumbra os olhos mas senão o que temos à mão. Olhe ao
redor, nunca para o horizonte distante porque aí está o perigo. Não está aí a
verdade senão as falsidades, as fraudes, as charlatanices, os fogos fátuos que
tem enganado todas as gerações. Todos eles fazem sinais desde o horizonte e
enganam os homens que não se contentam com mirar a felicidade e a verdade que
vem a cair sob seus pés.”
Ou, na simplicidade de Mário Quintana:
FELICIDADE
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!
terça-feira, 4 de setembro de 2012
DA FELICIDADE - Mario Quintana
Quantas vezes a gente, em busca da ventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura
Tendo-os na ponta do nariz!
segunda-feira, 3 de setembro de 2012
E Riobaldo fala das grandes travessias e do desespero
(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 6)
E, logo depois que o romance
começa a falar da saudade, os personagens tentam a travessia do Liso do
Suçuarão pela primeira vez. O Liso era um deserto
terrível. Queriam atravessar por ele para tentar pegar de surpresa os inimigos,
aqueles que mataram por traição o pai de Diadorim. Mas cometem o erro de tentar
atravessar o deserto carregados demais de mantimentos. Tudo preveniram e
estocaram para a viajem. Mas, mesmo por isso, não conseguem realizar a
travessia. E são obrigados a voltar, com muitas perdas.
A saudade é um tipo de excesso de
bagagem que dificulta que atravessemos os vazios. Ficamos agarrados no para
trás e não conseguimos seguir caminhando.
E então, por volta da página 49,
Riobaldo fala sobre pactuar com o diabo. O autor parece querer mostrar que é
diante de nossas grandes travessias que sofremos a tentação de pactuar, de
tentar controlar as incertezas e angústias e dessa forma acabamos por perder o rumo.
Voltando da tentativa fracassada
de atravessar o Liso, sem provisões nem água, acabam por matar o que julgam ser
um macaco e se alimentam dele. Pouco depois descobrem que se tratava de um
homem, perdido e nu, alienado de si.
É um momento de desespero.
É um momento de desespero.
E Riobaldo fala da possibilidade
da existência ou não de Deus. Estamos na página 60:
“(...) Deus não há. Estremeço. Como não ter Deus?! Com
Deus existindo, tudo dá esperança: sempre um milagre é possível, o mundo se
resolve. Mas, se não tem Deus, há-de a gente perdidos no vaivem, e a vida é
burra. É o aberto perigo das grandes e pequenas horas, não se podendo facilitar
– é todos contra os acasos. Tendo Deus, é menos grave se descuidar um pouquinho,
pois no fim dá certo. Mas, se não tem Deus, então, a gente não tem licença de
coisa nenhuma! Porque existe dor. E a vida do homem está presa encantoada –
erra rumo (...)
(...) Deus existe mesmo quando não há.”
Ver ou não ver sentido na vida; ver ou não ver sentido no mundo.
Ver ou não ver sentido na vida; ver ou não ver sentido no mundo.
Aqui cabe uma diferenciação entre
a desilusão e a decepção.
Desiludir é diferente de
decepcionar. Desiludir é perder as ilusões. Esse processo é comumente
acompanhado de tristezas mas pode também ser acompanhado de alegrias, uma vez
que ao perder a ilusões nos aproximamos da realidade, e aproximar-se da realidade,
vê-la com mais clareza, saber melhor sobre ela, pode ser motivo de satisfação, descoberta e serenidade.
Decepcionar é mais profundo. Na decepção
não somente posso perder as ilusões que tinha como acabo por questionar meus
valores mais caros, minhas motivações mais profundas. Decepcionado posso
questionar os fundamentos que orientam minha vida. Se na desilusão posso ter a
alegria de aproximar-me da realidade, na decepção perco o sentido primordial do
meu viver.
Ou, nas palavras de Riobaldo...
"Estou contando ao senhor, que carece de um
explicado. Pensar mal é fácil, porque esta vida é embrejada. A gente vive, eu acho,
é mesmo para se desiludir e desmisturar."
Drauzio Varella - A obsessão de seu Elias
(Um
dos melhores textos que conheço sobre o ciúme.)
Quando
dona Esmeralda contava que tinha setenta anos na presença do Fernando, meu
irmão, ele a repreendia: “Não seja boba, diga sessenta!” Se dissesse, de fato
não faria má figura: tinha o rosto quase sem rugas.
Seu
Isidoro, o marido, jamais deixou de acompanhá-la às consultas e a quantos
lugares foram necessários por causa da doença, comportamento inusitado entre os
homens.
Quando
foi hospitalizada, ele chegava às seis da manhã e só arredava pé às onze da
noite, enxotado por ela, preocupada com as noites maldormidas do esposo
hipertenso.
Dificil
ver um casal que se entendesse e se respeitasse como aquele, apesar dos
temperamentos opostos: dona Esmeralda era extrovertida, contadora de casos,
gostava de sair com as amigas, usar roupas coloridas; seu Isidoro, caseiro,
metódico, discreto no vestuário, media as palavras antes de pronunciá-las. Por
isso, ela comparava a harmonia em que viviam ao prosaico arroz e feijão:
-
Separados são diferentes; misturados, combinam tanto que a gente não enjoa.
Formavam
uma parceria engraçada, porque ela falava pelos dois e não perdia oportunidade
de provocá-lo com alguma referência a sua personalidade taciturna. Ele sorria
ou balançava a cabeça, complacente, mas, de quando em quando, emitia uma
interjeição ou fazia um pequeno comentário de acurado senso de humor. Nessas
ocasiões, ria ela e quem estivesse por perto. Uma vez, depois de descrever com
detalhes a casa em que moravam, dona Esmeralda perguntou-lhe por que não
acrescentava nada à sua descrição:
-
Estava esperando você parar para respirar - respondeu ele, sério.
Outra
vez, tendo contado uma aventura que seu Isidoro vivera antes de conhecê-la, a
qual, entre outros detalhes relatados, incluía uma batalha de flechas entre
índios rivais entrincheirados nas margens opostas de um rio na Amazônia, onde
ele fazia um estudo de prospecção geológica, ela reclamou:
-
Tudo se passou com ele, mas eu é que preciso contar, porque há quarenta anos
vivo com um túmulo dentro de casa.
-
Não perco a esperança de contar essa história, se um dia você deixar.
Dona
Esmeralda foi internada quando a doença
chegou ao estágio final. Enfraquecida, menos falante, ainda fazia planos e
mantinha em relação ao futuro um otimismo descabido, difícil de entender numa pessoa esclarecida como ela.
Atribuímos sua atitude ao processo de negação, tão freqüente na fase terminal, e
procuramos poupá-la de explicações que lhe dessem noção exata da evolução
desfavorável.
Nessa
fase, apareceu no consultório um senhor árabe de bengala e cabelos brancos.
Sentou-se na minha frente, pouco à vontade:
-
Em que posso ajudá-lo? - perguntei.
Ajeitou-se
na cadeira, apertou minha mão timidamente, disse que se chamava Elias e
continuou, em tom pausado:
-
Não estou doente, marquei consulta para lhe fazer um pedido: convencer sua
paciente Esmeralda a receber minha visita. Se ela morrer sem que eu a veja, não
vou me perdoar.
-
Por que o senhor não fala diretamente com ela?
-
Ela não atenderia ao telefone. Fomos casados durante cinco anos e nos separamos
por incompatibilidade de gênios. Nunca mais consegui tirá-la da cabeça, penso
nela todo santo dia.
-
Os senhores tiveram algum contato? Como soube que ela está doente?
-
Não a vejo há quarenta e três anos. Foi melhor para nós! No fim de semana, a
mulher de um amigo me pôs a par dos problemas dela e me deu o seu nome, doutor.
Desde então, não penso noutra coisa senão em vê-la pela última vez.
-
Posso falar, mas a decisão é dela, como o senhor sabe.
-
Preciso de sua ajuda; serei eternamente grato. Explique que não pretendo falar
do passado, nem dizer o quanto sofri quando ela me abandonou, só quero olhar
para ela. Nada mais!
Fiquei
tocado pela amargura em sua expressão. Estranho imaginar que dona Esmeralda um
dia tivesse casado com outro homem.
Na
manhã seguinte, fui para o hospital decidido a fazer o que o senhor árabe havia
solicitado. Estavam ela e o marido no
quarto. Com a máxima delicadeza, perguntei a ele se podia nos deixar a sós
durante quinze minutos.
-
Até por mais tempo - respondeu seu Isidoro, que ainda não tinha tomado o
café-da-manhã.
-
Dona Esmeralda, ontem fui procurado por um senhor que disse ter sido seu
primeiro marido.
Ela
arregalou os olhos:
-
Ele está vivo?
-
Parecia bem de saúde, e me encarregou de lhe fazer um pedido. Não tenho como
deixar de atendê-lo, a menos que a senhora nem queira ouvir.
-
O que ele deseja?
-
Ver a senhora. Diz que não falará sobre o passado.
Ela
ficou calada, olhos perdidos no teto,
enigmáticos. Depois me pediu que levantasse a cabeceira da cama.
-
Se o senhor tem mesmo os quinze minutos, sente. Vou lhe contar uma história:
Elias
foi meu segundo namorado. Tinha trinta anos quando o conheci, dez mais do que
eu. Fazia questão de repetir todos os dias, em particular ou na frente dos
outros, que nunca vira mulher tão encantadora. Na terceira vez em que saímos,
ganhei um anel de ouro; para comemorar trinta dias de namoro, um colar de
pérolas verdadeiras; passados três meses, estava na sala de casa me pedindo em
noivado para meus pais. Nunca imaginei que um homem pudesse tratar uma mulher
com tanta consideração.
Coitado,
havia chegado ao Brasil aos dezoito anos, sozinho, depois de perder a mãe viúva
na Síria. Dizia que eu devia ser um anjo
enviado por ela para iluminar o caminho do filho. Fiquei apaixonada, era uma
princesa ao lado daquele homem amoroso, incapaz de um gesto rude. Casamos em
seis meses.
Quando
voltamos da lua-de-mel, fomos ao aniversário da esposa de um patrício dele,
rapaz simpático, com sotaque forte, que contava casos muito engraçados. Eu,
brincalhona desde criança, ri muito naquela noite; mas não fui a única, todo
mundo se divertiu. Menos o Elias, que passou a festa emburrado e fez questão de
irmos embora cedo, contra minha vontade.
No
caminho perguntei a razão do mau humor. Foi o começo do inferno! Ele ficou
transtornado, aos berros disse que eu não sabia me comportar, que jogava a
cabeça para trás quando ria só para provocar os homens, que meu vestido era
curto, mais de cotado do que devia, e por aí afora. Fiquei chocada, porque até
aquela noite ele tinha sido um cavalheiro impecável.
Acordei
de manhã com os olhos inchados de chorar. Quando me viu, ele ajoelhou a meus
pés, jurou ter armado aquela cena porque estava enlouquecido de paixão por mim,
porque eu era maravilhosa e encantava os homens a minha volta; não que fosse
culpada, admitia, mas por ser ingênua: não tinha noção da sensualidade que
emanava de meu corpo. No fim, pediu apenas que eu prestasse atenção, fosse mais
reservada na frente dos homens, para que não levassem a mal minha
espontaneidade. A noite, chegou com dois pingentes de ouro, lindos.
Naquele
tempo éramos educadas para ser discretas e acomodadas. Na minha inexperiência,
achei que ele talvez tivesse razão: se algo em mim despertava cobiça nos
homens, precisava mesmo tomar cuidado. Não tinha a menor intenção de magoar meu
marido, estava apaixonada; solicitei até que ele me alertar se ao notar algum
comportamento desavisado de minha parte.
Elias
tomou o pedido ao pé da letra, e lentamente aumentou a pressão para mudar minha
personalidade. No início, implicava com o decote de um vestido, com a
espontaneidade de uma reação em público,
com o fato
de eu falar com o garçom. Com o
tempo, eu trocava de roupa três ou quatro vezes antes de sair, até encontrar
uma do gosto dele; nos restaurantes, quando não havia mesa disponível num local
que me deixasse de frente para a parede, nem entrávamos; ir à padaria ou à
quítanda ficou por conta da empregada, a menos que eu estivesse disposta a
enfrentar duas horas de discussão.
Contando
assim, o senhor vai achar que eu era submissa demais. Talvez fosse, mas no
casamento as restrições não são impostas de um dia para outro; acumulam-se na
rotina diária sem que a gente se dê conta: as brigas entremeadas de declarações
de amor, pedidos de perdão, presentes apaixonados. Nos momentos de
reconciliação, ele dizia com ternura não pretender destruir em mim a
sensualidade nem a vaidade feminina; desejava apenas que essas qualidades
fossem reservadas exclusivamente para o homem que me amava acima de todas as
coisas. Por isso, comprava vestidos vermelhos, minissaias e blusas decotadas capazes
de fazer corar uma prostituta. Na hora de sair, ele me queria vestida de
freira, sentada de costas para os homens; na volta, ao fechar a porta,
implorava que eu soltasse os cabelos, vestisse aquelas roupas escandalosas e
dançasse para ele no meio da sala.
Fiquei
completamente perdida durante quatro anos de casamento. No quinto, começou a
tomar corpo em mim a idéia de que a paixão existente entre nós havia se
transformado. Estávamos doentes: ele por ter se deixado levar por aquela
loucura, eu por me submeter a ela. Quando isso ficou claro, quis voltar para a casa dos meus pais,
mesmo contra a vontade deles, que não admitiam a hipótese de ter uma filha
desquitada, mas o Elias ficou alucinado, ameaçou cortar os pulsos, dar um tiro
no peito, suplicou perdão, jurou pôr fim àquela obsessão possessiva e fez mil
promessas, nunca cumpridas.
Essas
idas e vindas continuaram até a situação chegar ao limite; achei que nunca me
libertaria daquela opressão angustiante e acabaria louca. Foi a sorte! O
instinto de sobrevivência falou mais alto: se ele se opunha à separação, só me
restava a alternativa de fugir.
Numa
segunda-feira, com a ajuda de uma prima,
finalmente criei coragem: esperei Elias sair para trabalhar, juntei algumas
roupas na mala e fui embora antes de receber o primeiro te lefonema do dia,
dado religiosamente assim que ele pisava na loja. Enquanto esperava o elevador,
o telefone tocou sem parar. Tomei um ônibus para o Rio Grande do Norte, onde o
marido dessa prima tinha parentes que se dispuseram a me receber em segredo.
Lá, três anos depois, conheci o Isidoro.
-
O que devo dizer para seu Elias?
-
Que não venha!
-
A senhora tem certeza? Ele disse que desejava apenas vê-la.
-
Doutor, não sei quantos dias ainda estarei por aqui, mas serão poucos. Procuro
fingir que não percebo, para não entristecer ainda mais o Isidoro. Quero
aproveitar todo o tempo ao lado desse homem que só me fez bem. Não quero
desperdiçar nem um minuto com alguém capaz de me trazer lembranças
desagradáveis nesta hora.
Quando
cheguei ao consultório, seu Elias me aguardava com o rosto abatido. Levei-o até
minha sala:
-
Não tenho boas notícias. Ela não quer vê-lo, disse isso com tanta convicção
que, se eu fosse o senhor, não insistiria.
Ele
pôs a cabeça entre as mãos e chorou sem emitir nenhum som. Desviei o olhar para
baixo, em respeito a sua dor. Quando conseguiu se controlar, tirou um lenço
amassado do bolso do paletó, enxugou as lágrimas, pediu desculpas e foi embora,
apoiado na bengala.
domingo, 2 de setembro de 2012
Carlos Drummond de Andrade - Carta
Carta
Há
muito tempo, sim, que não lhe escrevo.
ficaram
velhas todas as notícias.
eu
mesmo envelheci: olha em relevo,
estes
sinais em mim, não das carícias
(tão
leves) que fazias no meu rosto:
são
golpes, são espinhos, são lembranças
da
vida a teu menino, que ao sol - posto
perde
a sabedoria das crianças.
A
falta que me fazes não é tanto
à
hora de dormir, quando dizias
“Deus
te abençoe”, e a noite abria em sonho.
É
quando, ao despertar, revejo a um canto
a
noite acumulada de meus dias,
e
sinto que estou vivo, e que não sonho.
Carlos
Drummond de Andrade - Lição de coisas
E Riobaldo começa a falar da Coragem:
(Da série "Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 5).
(...) “Confesso.
Eu cá não madruguei em ser corajoso; isto é: coragem em mim era variável. Ah,
naqueles tempos eu não sabia, hoje é que sei: que, para a gente se transformar
em ruim ou em valentão, ah basta se olhar um minutinho no espelho – caprichando
de fazer cara de valentia; ou cara de ruindade!”
Pg.
46.
Aqui
é possível fazer uma primeira distinção entre coragem, valentia e covardia.
Coragem
é conseguir ultrapassar os receios quando se é fundamental tentar. O medo está
presente na coragem e vem temperá-la, para que ela possa se equilibrar com a
prudência. Coragem é seguir o ditado: “É hora de se usar a tática da gelatina:
vai tremendo, mas vai”. A coragem remete, em sua etimologia, à palavra cordos,
coração. E parece sugerir, desta forma, que inclui em si os sentimentos e
emoções, e que está perturbado por estas não indica falta de coragem.
Coragem
não é não sentir medo. Que mérito haveria em fazer algo sem nenhum resquício de
medo? Em que precisei me superar, me alterar, para conseguir realizar, se não senti nenhum receio? O mérito está em sentir medo, mas sabendo ser importante, conseguir ultrapassá-lo e não paralisar.
Quando
o medo toma a pessoa por inteiro, chegando a paralisá-la, estamos falando então
da covardia. Está é quando a pessoa, diante da necessidade fundamental de
tentar, se deixa imobilizar pelo medo.
No
polo oposto à covardia encontra-se a valentia, que é o agir intempestivo, sem nenhuma
prudência. Essa valentia assustadora, aparentemente uma ação sem nenhum tipo de
receio, na maior parte das vezes é justamente o contrario disto: é uma ação
possuída pelo medo, agora já transformado muitas vezes em pânico. Esse tipo de ação, na maior parte das vezes, está direcionado ao fracasso.
Em postagem posterior, "E Riobaldo fala dos vários tipos de medo", baseado em um estudo de Maria Ângela Junqueira Reis, consideramos esse medo que, ou paralisa ou leva a valentia assustadora, fica melhor definido como temor.
Então ficaria melhor se partíssemos do seguinte: quando se falar de coragem estamos
também falando de medo. Quando se falar de valentia assustadora ou de covardia,
estamos falando de temor, como tão bem esclareceu Maria Ângela.
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