segunda-feira, 29 de outubro de 2012

Humor


“É impolido dar-se ares de importância. É ridículo levar-se a sério. Não ter humor é não ter humildade, é não ter lucidez, é não ter leveza, é ser demasiado cheio de si, é estar demasiado enganado acerca de si." 

André Comte-Sponville


“Se minha relação com Chloe nunca alcançou os níveis do terror, foi talvez porque fomos capazes de temperar a escolha entre amor e liberalismo com um ingrediente que muito poucas relações jamais possuíram, um ingrediente que poderia simplesmente (se houvesse o suficiente dele por aí) salvar casais da intolerância, isto é, um senso de humor”.
(...)
“E com a incapacidade de rir vem uma incapacidade de reconhecer a relatividade das coisas humanas, a multiplicidade e o choque de desejos... Se Chloe e eu éramos capazes de transcender algumas de nossas diferenças, era porque tínhamos a vontade de fazer piadas dos impasses que encontrávamos nos personagens um do outro...é um sinal de que duas pessoas tenham parado de amar uma a outra quando não são mais capazes de transformar diferenças em piadas. O humor enfeitava as divisórias da irritação entre nossos ideais e a realidade”.

ENSAIOS DE AMOR, Alain de Botton

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

E Riobaldo fala de quando nos sentimos maiores



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 18)


E Hermógenes, aquele que ainda iria matar a traição o grande líder Joca Ramiro, mas que agora é quem lidera essa parte do bando, convoca Riobaldo para uma missão importante e perigosa, na qual provavelmente haverá combate com os inimigos. E Riobaldo, surpreendido pelo convite, se vê repentinamente engrandecido, sente-se maior, cheio de – justo ele – seguranças e certezas. A fortuna lhe sorriu, e isso não é fácil para ninguém. É difícil manter a sanidade nesses momentos.

“Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras, mochilão, Rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que vida é : é para se envergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu, Riobaldo, eu!” Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei nele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca Ramiro!...” A arga que em mim roncou era um despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida.”

Fechado na ideia, fechado no couro. Riobaldo, sempre hesitante, temeroso, angustiado, agora mudou. Está determinado, assustadoramente determinado. Sente-se maior e prestigiado. Esse é o momento perigoso, é o momento que nos perdemos. Como bem disse Paulo Mendes Campos.

“Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grande ocasiões.”

Perdemos o humor, esse tão importante mediador de sabedoria em nossas vidas, quando perdemos nossa própria medida, nos sentindo umas drogas ou muito bacanas.

Riobaldo, ao se sentir muito bacana perde até a sua percepção pessoal. Ele não gostava do Hermorgenes, nunca gostou. Diadorim, que depois, ao saber que justamente Hermorgenes matara seu pai, seria possuído por imenso ódio e desejo de vingança, discordava então de Riobaldo, achando que o dito era corajoso, bom líder e fiel a Joca Ramiro. Mas Riobaldo nunca se deixou enganar. Até esse dia, quando foi o primeiro convocado para a perigosa batalha, perdendo então sua humana humildade.

E como já dissemos, em postagem anterior:

Humildade vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.

Os dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.

É de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. E por ser assim incompleto o ser humano encontra o seu próprio mistério, que é ser um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua vida, nunca chegando a estar pronto.

Ou, nas palavras de São João da Cruz

“Nesta desnudez acha o espírito o seu descanso,
porque não cobiçando nada,
 nada o fatiga para cima
e nada o oprime para baixo,
porque está no centro de sua humildade.”

Não me lembro mais quem, mas alguém já disse:
“Por mais que eu tenha tentado, a vida inteira, ser maior ou menor do que eu sou, nunca consegui ser senão eu mesmo, nunca consegui passar senão na porta que tinha exatamente o meu tamanho.”

Foi Plutarco, em seu livro “Como distinguir o amigo do bajulador”, que afirmou que a hora que realmente precisamos de um amigo é a hora na qual a fortuna nos sorri, e tudo parece dar certo. O verdadeiro  amigo nos atenta para que não nos deixemos engrandecer demasiadamente. Já o bajulador procuraria inflar ainda mais o balão.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

E Riobaldo fala de quando optamos pela tristeza e morte




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 17)



“Por que é, então, que deixo de lado? Acho que o espírito da gente é cavalo que escolhe estrada: quando ruma para tristeza e morte, vai não vendo o que é bonito e bom.”


Riobaldo diz aqui de como optamos, às vezes, pela tristeza e morte. E nestes momentos não conseguimos ver o que é bonito e bom. Optar pela morte é uma definição perfeita de necrofilia. Esse conceito, e o conceito irmão de biofilia, foram muito bem elaborados por Erich Fromm, nos extratos selecionados abaixo.



(...)
Dom Miguel de Unamuno, grande filósofo e humanista, em 1936, no início da guerra civil espanhola, responde aos gritos de “viva la muerte!” pronunciados pelos partidários do General Millán Astray, defensor junto com o Generalíssimo Franco da guerra civil, que acabara de discursar na universidade de Salamanca.
“...Acabo de ouvir um grito necrófilo e insensato. E eu, que passei a vida formando paradoxos que despertaram a ira da incompreensão alheia, devo dizer-lhes, como autoridade especializada, que este paradoxo bizarro me é repelente. O general Millán Astray é um aleijado. Digamos isso sem qualquer disfarce. Ele é um inválido da guerra. Assim foi também Cervantes. Infelizmente há demasiados aleijados na Espanha agora. E cedo haverá ainda mais se Deus não vier em nosso auxílio. Dói-me pensar que o General deva ditar o modelo da psicologia da massa. Um aleijado desprovido da grandeza espiritual de um Cervantes está habituado a procurar sinistro alívio provocando mutilação em torno de si”.
Diante destas palavras Millán Astray não pode mais controlar-se, gritando “Abaixo a inteligência! Viva a morte!” E é aplaudido pelos companheiros falangistas. Mas Unamuno não se abateu e continuou:
”Este é o templo do intelecto. E eu sou seu sumo sacerdote. É você que profana seu sagrado recinto. Você ganhará porque dispõe de mais do que suficiente força bruta. Mas você não convencerá. Para convencer é mister persuadir. E a fim de persuadir você precisa do que lhe falta: Razão e direito na luta. Considero fútil exortá-lo a pensar na Espanha. Eu pensei”.
Unamuno ficou preso em casa até a sua morte poucos meses depois.
Necrofilia significa amor aos mortos, literalmente. Em seu grau máximo é uma perversão sexual.
A pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada por tudo o que não é vivo, tudo que está morto: cadáveres, decomposição, fezes, sujeira. Gostam de falar de enterros, doenças e morte. Enchem-se de vida justamente quando podem falar de morte.
Os necrófilos moram no passado, nunca no futuro. Seus sentimentos são essencialmente sentimentais, isto é, alimentam a memória dos sentimentos que foram sentidos ontem. São frios, distantes, devotos da lei e da ordem.
Amam a força, entendida como força para matar. Para eles só há dois sexos: os fortes e os fracos, os poderosos e os impotentes, os matadores e os mortos. Enquanto a vida se caracteriza pelo crescimento, a pessoa necrófila ama tudo que não cresce, tudo que é mecânico. É impelida pelo desejo de transformar o orgânico em inorgânico, de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos vivos são transformados em coisas. Memória em vez de experiência, ter em vez de ser, é o que interessa. O necrófilo pode relacionar-se com um objeto - uma flor ou uma pessoa - somente se possuir esta; por isso uma ameaça às suas posses é uma ameaça a ele mesmo; se perder a posse perderá o contato com o mundo. Ele gosta do controle e, no ato de controlar, ele mata a vida. Teme profundamente a vida por ser esta pela própria natureza desordenada e incontrolável. Para o necrófilo, justiça significa divisão correta, e dispõe-se a matar ou morrer pelo bem daquilo que denomina justiça. “Lei e ordem” para ele são ídolos - tudo que ataca a lei e a ordem é sentido como um ataque satânico contra seus valores supremos.
A pessoa necrófila é atraída pela escuridão e pela noite. Ele quer voltar às trevas do útero e ao passado da existência inorgânica ou animal. É intrinsecamente orientado para o passado, não para o futuro que odeia e teme. Relacionado com isso há seu anelo de certeza. Mas a vida nunca é certa, nunca é previsível, nunca é controlável; a fim de tornar a vida controlável ela tem que ser convertida em morte; a morte é, de falto, a única certeza na vida.
A pessoa necrófila é ordeira, obsessiva e pedante.
A pessoa biófila: sua essência é o amor à vida. É qualidade inerente à toda substancia viva viver e preservar sua existência. “Tudo na medida em que é ele mesmo, esforça-se por persistir em seu próprio ser”. Espinosa, Ética, III, prop. VI.
O pleno desabrochar da biofilia é encontrado na orientação produtiva. A pessoa que ama a vida completamente é atraída pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas. Prefere construir a conservar. É capaz de maravilhar-se, e prefere ver algo novo à segurança de encontrar a confirmação do velho.
A consciência da pessoa biófila não é a de se obrigar a abster-se do mal e fazer o bem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo. Por essa razão o biófilo não fica com remorso e sentimento de culpa que, afinal de contas, são somente aspectos de autodesprezo e tristeza. Ele se volta rapidamente para a vida e tenta fazer o bem.
As formas puras das orientações necrófilas e biófilas são raras. O que importa é qual das duas tendências é dominante.
A condição mais importante para o desenvolvimento do amor à vida na criança é ela estar com pessoas que amam a vida.
Walt Whitman: “Passar (oh, sempre vivendo) e deixar os cadáveres para trás”.
(...)




Optar pela vida encontra bela expressão no trecho bíblico abaixo, paradoxalmente localizado em “lamentações 3;21”.

“Quero trazer à memória aquilo que me traz esperança.”

E seguimos escolhendo entre o que nos vitaliza ou o que nos esmorece.

E Riobaldo fala da memória




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 16)



“Ah, mas falo falso. O senhor sente? Desmente? Eu desminto. Contar é muito, muito dificultoso. Não pelos anos que se já passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas – de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. O que eu falei foi exato? Foi. Mas teria sido? Agora, acho que nem não. São tantas horas de pessoas, tantas coisas em tantos tempos, tudo miúdo recruzado.”

Todo o livro é Riobaldo contando sua história (estória) para alguém que responde, mas cuja resposta não é transcrita no texto. E agora ele próprio desmente o que contou, duvidando que o que tenha dito seja exato.

O que de nossa memória pode ser dito exato? O que é tudo misturado, experiência, vivencia, sustos e quereres? A memória é fluida e, mesmo que fosse mais constante, ainda assim o que relatamos é o nosso olhar sobre o passado, é o olhar de alguém que já não é o mesmo e agora tem outro ponto de vista. E amanhã terá ainda outro, e depois de amanhã, outro...

Ecléa Bossi nos diz que "Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar, com imagens e ideias de hoje, as experiências do passado. A memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da sobrevivência do passado, "tal como foi", e que se daria no inconsciente de cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelo materiais que estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam nossa consciência atual. Por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância, porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e, com ela, nossas ideias, nossos juízos de realidade e de valor. O simples fato de lembrar o passado, no presente, exclui a identidade entre as imagens de um e de outro, e propõe a sua diferença em termos de ponto de vista."

É fácil afirmar que não podemos mudar o passado. Que o que passou, passou, aconteceu, é fato. Mas podemos mudar o que compreendemos do passado, podemos dar outra leitura, é isso é, em sua substância, mudar o passado. Pois o passado passou e o que fica é a leitura que temos dele. 

Quando Maria me procurou estava muito deprimida e queixava-se de que ninguém em sua casa gostava dela. Dizia que seu pai gostava de seu irmão mais velho, que tinha feito engenharia e fazia tudo que o pai achava certo. A mãe gostava da irmã mais nova, que era feminina e delicada, ao contrário de Maria, que tinha o caráter forte do pai. De modo que pra ela sobrava o cachorro. Aliás, nem o Rex, pois ele era da irmã.
Após Maria me contar grande parte da sua história ponderei a ela que em todas as situações realmente graves que o pai tinha vivido, a primeira pessoa a quem ele recorreu foi ela: após sua falência, após grave acidente de carro e após urgente cirurgia cardíaca. Ela ficou surpresa ao constatar isso. Mas contestou sua importância dizendo que o pai nunca era carinhoso com ela. Lembrei-a então que, na verdade, carinhoso como todos são ele nunca seria, rígido e fechado como era. Mas que ele tinha seu jeito próprio de manifestar carinho e afeição. Ao menos duas destas formas eu já conhecia: convidar alguém para ver televisão com ele e um temido beliscão rodado na barriga, que deixava imensa mancha roxa, e que era reservado somente aos momentos que ele estava profundamente amoroso com alguém.
Ela concordou e disse que já tinha sido alvo, por diversas vezes, dos dois procedimentos.
E ressimbolizar a imagem do pai foi muito importante para ela e provocou muitas mudanças em sua vida.

Não podemos mudar o que aconteceu, mas podemos ressimbolizar muitas das coisas que se sucederam em nossas vidas.

Ou, repetindo Rosa: “Mire e veja:  o mais importante e bonito, do mundo, é isto:  que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.  Afinam ou desafinam.  Verdade maior.  É o que a vida me ensinou.  Isso que me alegra, montão.”

terça-feira, 23 de outubro de 2012

E Riobaldo fala da amizade


(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 13)


Um pouco antes no romance Riobaldo qualifica a amizade de Diadorim.

“Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza.”

E começa assim, justapondo amizade e delicadeza, a pensar sobre a amizade. A amizade seria assim um amor sutil, delicado e cuidadoso.

Um pouco mais adiante ele volta à amizade, ao narrar o momento no qual Diadorim conta a ele que não se chama Reinaldo, mas sim Diadorim. Começa a aparecer o dilema de Diadorim: por ser o único filho de um grande chefe de jagunços, Joca Ramiro, foi criado como menino e era isso que todos pensavam. Neste ponto da historia Diadorim ainda não revela que é uma mulher a Riobaldo. Na verdade nunca o dirá. Mas a aproximação dos dois vai revelando o amor-amizade que os une. E dizer só a Riobaldo que não se chama Reinaldo é um estreitar amizades. 

“ – “Riobaldo, pois tem um particular que eu careço de contar a você, e que esconder mais não posso... Escuta: eu não me chamo Reinaldo, de verdade. Este é nome apelativo, inventado por necessidade minha, carece de você não me perguntar por quê. Tenho meus fados. A vida da gente faz sete voltas – se diz. A vida nem é da gente...”
Ele falava aquilo sem rompante e sem entonos, mais antes com pressa, quem sabe se com tico de pesar e vergonhosa suspensão.
– “Você era menino, eu era menino... Atravessamos o rio na canoa... Nos topamos naquele porto. Desde aquele dia é que somos amigos.”
Que era, eu confirmei. E ouvi:
– “Pois então: o meu nome, verdadeiro, é Diadorim... Guarda este meu segredo. Sempre, quando sozinhos a gente estiver, é de Diadorim que você deve de me chamar, digo e peço, Riobaldo...”
Assim eu ouvi, era tão singular. Muito fiquei repetindo em minha mente as palavras, modo de me acostumar com aquilo. E ele me deu a mão. Daquela mão, eu recebia certezas. Dos olhos. Os olhos que ele punha em mim, tão externos, quase tristes de grandeza. Deu alma em cara. Adivinhei o que nós dois queríamos – logo eu disse: – “Diadorim... Diadorim!”com uma força de afeição. Ele sério sorriu. E eu gostava dele, gostava, gostava. Aí tive o fervor de que ele carecesse de minha proteção, toda a vida: eu terçando, garantindo, punindo por ele. Ao mais os olhos me perturbavam; mas sendo que não me enfraqueciam. Diadorim. Sol-se-pôr, saímos e tocamos dali, para o Canabrava e o Barra.  Aquele dia fora meu, me pertencia. Íamos por um plaino de varjas; lua lá vinha. Alimpo de lua. Vizinhança do sertão – esse Alto-Norte brabo começava. – Estes rios têm de correr bem! – eu de mim dei. Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo. Dia da lua. O luar que põe a noite inchada.

Reinaldo, Diadorim, me dizendo que este era real o nome dele – foi como dissesse notícia do que em terras longes se passava. Era um nome, ver o quê. Que é que é um nome? Nome não dá: nome recebe. Da razão desse encoberto, nem resumi curiosidades. Caso de algum crime arrependido, fosse, fuga de alguma outra parte; ou devoção a um santo-forte. Mas havendo o ele querer que só eu soubesse, e que só eu esse nome verdadeiro pronunciasse. Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda alegria, no mesmo do momento, abre saudade. Até aquela-alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate suas asinhas no chão.”

“Amizade dada é amor.” E Riobaldo faz assim a definitiva junção da amizade com o amor.

Eros é o deus grego responsável pela uniao dos seres vivos. Nos gregos vamos encontrar que fomos seres completos que foram cindidos porque ficaram arrogantes. Esta é a concepçao de aristófanes. Antes éramos completos e tínhamos a felicidade plena. Eros seria assim associado a uma falta que se sente enquanto tal e procura uma completude. Aqui temos claramente um ideal de perfeição que por si só nega a condição humana. Eros assim um desejo de completude. Mas seu preço é a perda do pessoal.
Então temos a philia, que seria afinidade, uniao, amizade. A amizade não acaba na sua realização, não é somente um desejo de poder, de conquistar. Ela se alimenta de si mesma. Aristoteles diz que o amigo é um outro de mim mesmo. A amizade é uma experiencia de alegria e contentamento, de envolvimento com o viver, um tipo de biofilia.
O amigo é aquele que você está com ele e quer continuar encontrando. A relaçao se alimenta de si. Se eros quer permanecer teria que virar amizade.

Santa Tereza Dávila completaria: “Oh! Como é bom o entendimento entre duas almas. Há sempre o que dizer sem cansaço!”

Para Marilena Chauí a “A adulação é contrafação (fingimento, simulaçao, falsificaçao, imitaçao fraudulenta) da amizade... A conspiraçao é a contrafação da companhia, a cumplicidade, contrafaçao da amizade, e sua marca, o assemelhar-se em crueldade.””Entre os maus, quando se juntam, há conspiraçao, não uma companhia; eles não se entre-amam, porém se entre-temem; não sao amigos, porém cúmplices””.

 Julián Marías, em seu “Tratado sobre a convivência” diz “Coexiste tudo o que existe juntamente e ao mesmo tempo. As coisas coexistem, e o homem com elas; conviver é viver juntos, e se refere às pessoas como tais. Isto é, com suas diferenças, com suas discrepâncias, com seus conflitos, com suas lutas no âmbito da convivência, dessa operação que consiste em viver juntos.
(...) Isto é precisamente a concórdia, cuja condição é o escrupuloso respeito ao que é verdade, ou seja, à estrutura da realidade, o que exclui a homogeneidade, a unanimidade, que escassas vezes existe.”

Conviver é deixar-se alterar pelo outro, abrir-se a ele e revelar-se, vinculando-se. A amizade é fundamentada na convivência, nesta característica essencial do humano. Ela nos constituí, vitaliza e dá sentido. E é o melhor sinônimo de amor possível.

Ou, voltando a Riobaldo...
"A amizade dele, ele me dava. E amizade dada é amor."
"Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. (...) Ou - amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por quê é que é."




sábado, 20 de outubro de 2012

E Riobaldo fala da dificuldade de se saber o que se quer



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 14)


“Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.”



Saber o quer se quer pode ser, de fato, muito dificultoso. Pois fazemos muitas confusões e somos, em muitos aspectos, cindidos.

Ao falarmos podemos nos referir a três aspectos diferentes da realidade: ao mundo das coisas e dos fatos, ao mundo das normas ou ao mundo das vivências.

Ao falarmos das coisas nossas proposições serão adequadamente avaliadas se utilizarmos as categorias de verdadeiro ou falso. Se digo que determinada pedra é dura, posso aperta-la e ver se o que disse era verdadeiro ou falso, se era fato ou não.

Ao falarmos das normas que regulam a nossa interação não podemos avaliar nossas proposições com as mesmas categorias. Não cabe perguntar se a norma que definiu a existência de mão e contramão nas estradas é verdadeira ou falsa. Cabe perguntar se as normas são justas ou injustas, se facilitam ou dificultam a convivência.

 Mas que categorias devemos utilizar ao mundo das vivências? Quando falamos do que sentimos devemos perguntar se o que dissemos foi verdadeiro ou falso? Ou se foi justo ou injusto?

Habitualmente aplicamos ao mundo das vivências as categorias de justo ou injusto. Se estou com raiva de alguém ou com inveja de outrem, questiono se é justo sentir essa raiva ou essa inveja. Normalmente questionamos moralmente o que sentimos.

Mas seria melhor aplicar nesse contexto as categorias de verdadeiro/falso, ou seja, analisar se as vivências são verdadeiras ou se são um desvio, uma dissonância cognitiva, uma afetação ou fingimento, visando frequentemente ganhos secundários.

A aplicação indevida das categorias de justo/injusto às proposições referentes ao mundo das vivências revela uma atitude de exagerado ajuizamento que acaba por confundir nossa percepção sobre aquilo que sentimos.

Uai, é possível a gente não saber o que sente?

É sim.

Uma vez que as vivências surgem não devemos pensar que só o fato delas terem aparecido significa que são próximas da realidade. É comum se usar o argumento de que “Eu senti assim”. “Mas é assim que eu sinto”. Como se o fato de sentirmos algo desse mais consistência ou veracidade ao nosso modo de ver a situação. Como se isso bastasse, se sinto assim, não posso estar enganado a respeito do que eu sinto. Mas posso mesmo me confundir. Posso achar que estou sentindo uma coisa, mas na verdade estou sentindo outra bem diversa. As vivências podem ser verdadeiras ou falsas.

Certa vez, durante um grupo, um participante se queixava do seu cunhado argentino. Dizia que, como se não bastasse o fato de um argentino “estar pegando” a sua irmã, ele tinha conseguido um emprego de engenheiro aeronáutico na Embraer, se mudado para São Paulo e levado a querida irmã com ele. Essa abriu mão de sua carreira profissional em Belo Horizonte para acompanhar o portenho, denominado egoísta pelo irmão revoltado.

Mas o argentino, não se dando por satisfeito, resolve tentar trabalho nos EUA e acaba conseguindo uma vaga na Boing. E lá vai mais uma vez a irmã, abandona tudo de novo e agora muda de país.  

Questionado sobre o que sentia diante da situação da irmã, o participante foi bem claro: fico indignado com o egoísmo do argentino.

Os outros participantes do grupo começaram a questionar se o que ele sentia era isso mesmo. E logo ficou bem claro: “aquele desgraçado, além de tá com minha irmã, ainda ganha melhor que eu, em dólar, trabalha nos EUA... eu fico aqui, trabalhando muito mais e ganhando muito menos, justo eu, que estudei muito mais que ele...”

E ria, admitindo que o que sentia era, na verdade, inveja.

Enfim, temos que saber se o que sentimos é aquilo mesmo ou se, na verdade, por fazer um juízo moral equivocado sobre nossos próprios sentimentos acabamos por nem saber o que sentimos.

E se não sabemos o que sentimos como saber o que queremos?

Não bloquear as vivências com juízos morais apressados é o primeiro passo para ter-se e saber-se. Seja por temor do erro e da culpa, seja por excessivo racionalismo, o bloqueio das vivências nos distancia do que realmente somos.

Yen-Men, sábio oriental disse: “Se queres a verdade clara, não te preocupes com o certo e o errado. O conflito entre o certo e o errado é a doença da mente”.

De certa forma, Nello Nuno parece ter alcançado a condição de se saber o que se quer, indo até o rabo da palavra, no seu poema-testamento:

“O simples guarda o enígma que é grande e permanente.
Viver - filosofar depois.
Sentir – pensar depois.
Agir – caminhar, os vales e montanhas de Ana Amélia.
Os filhos, brincar de roda, rodar risadas, sorrir lembranças.
Essa é minha estrada sem atalhos.
Minha pintura é meu sentir momentos, meu sorrir lembranças, meu
briquedo de vida.
Pássaro branco, cavalo alado, pomba e paz.
É a procura do simples e do alegre.
Da ternura e da carne.
Do gesto e da música.
Do grito e do riso.
É o meu amor à vida.”

Habermas e a Ação Comunicativa


Jürgen Habermas é considerado o principal membro da segunda geração da chamada Escola de Frankfurt. Este grupo de intelectuais abordava a investigação social numa ótica de fundamento predominantemente marxista e, pode-se dizer, pretendiam, desde sua primeira geração de pensadores, gerar a emancipação das viseiras ideológicas, trazendo à consciência as condições e deformações de nosso conhecimento do mundo. A tese de base é que o mundo social carece do caráter "dado" do mundo natural e deve ser visto como nossa construção. E, por isso mesmo, o mundo social poderia ser diferente. Executar um projeto como este exige uma forma de ciência social que seja reflexiva, ou seja, capaz de fornecer uma consideração de suas próprias origens. Este enfoque recebeu o nome de Teoria Crítica.

A expressão "Escola de Frankfurt" indica assim uma abordagem teórico-social que emprega métodos de ciência social qualitativa para desta forma tentar expor a ideologia responsável por diversas patologias sociais.

Podemos dizer que a diferença da abordagem de Habermas em relação à teoria crítica foi o seu interesse em especificar as condições sob as quais as interações humanas estariam livres de dominação. Enquanto a primeira geração da dita escola havia examinado diversas formas de crises econômicas, políticas ou psicanalíticas como fontes de possíveis impulsos emancipadores, Habermas procurou estes impulsos no ideal de interação interpessoal livre, encontrado na vida comum e, especificamente, na comunicação lingüística.

Em termos de desenvolvimentos teóricos, os anos importantes para a segunda geração da Escola de Frankfurt foram de 1971 a 1981. Habermas reuniu a equipe de pesquisadores que deu nova direção à teoria social crítica, produzindo teses sobre a identidade d ego, competência comunicativa, desenvolvimento moral, patologias sociais, processos de racionalização, evolução jurídica e assim por diante. Esse também foi o período em que Habermas intensificou seu estudo da filosofia analítica da linguagem como parte do desenvolvimento de sua pragmática universal da comunicação.

Esse trabalho culminou no texto que orientou a segunda geração da Escola de Frankfurt: a "Teoria da Ação Comunicativa", de Habermas, publicado pela primeira vez em 1981.

Para Habermas e sua geração, o programa dos fundadores da Escola de Frankfurt perdeu a plausibilidade ao não conseguir solucionar o problema das bases normativas. Inspirando-se no conceito de alienação de Marx e em teses de Weber sobre os processos de racionalização ocidentais, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm, Benjamin e outros se opuseram à "reificação" do espírito humano pelas forças capitalistas e burocráticas. Na medida em que eles pensavam que seus padrões críticos necessitavam de análise, ofereceram como opção  uma defesa quase metafísica, em vez de uma justificação normativa. Além disso, apesar da aspiração a fornecer uma fundamentação de sua crítica em uma forma auto-reflexiva de ciência social, não conseguiam explicar como pretendiam ocupar um ponto de vista privilegiado do qual poderiam expor a ideologia. Em outras palavras, deixaram de aplicar seu padrão de reflexividade crítica a sua própria teoria.

Tornou-se assim tarefa da Teoria da Ação Comunicativa definir um novo rumo. Nas palavras do próprio Habermas, seu objetivo era desenvolver "uma teoria social preocupada em validar seu próprio padrão crítico".

Para Habermas, as bases normativas da teoria social crítica se encontram na compreensão adequada da ação comunicativa, em particular das "pressuposições idealizadoras" que devem ser efetuadas por uma pessoa que tenta chegar ao entendimento sobre algo com alguém. Essa abordagem combina uma teoria de bases normativas, de como é possível a ação social coordenada, com uma "teoria do discurso", de como as afirmações são justificadas.

Habermas se concentra nas características universais e gerais da ação comunicativa, afirmando que estas fornecem uma base mais defensável para a crítica social.

A Teoria da Ação Comunicativa tem como base o estudo do uso comunicativo cotidiano (Resolvi negritar esta palavra pelo fato de que a compreensão destes processos comunicativos serem do cotidiano talvez tenha sido a maior surpresa que tive com suas aulas, eles ocorrem no dia a dia, e entre pessoas normais. Não são processos especiais em condições controladas... eu não tinha entendido isso ainda em meus estudos.) da linguagem por sujeitos que interagem. Habermas denomina  Pragmática Universal à investigação que tem como objetivo descobrir as regras necessárias, independentemente da língua e do contexto, para se produzir orações bem formadas e proferi-las adequadamente. Assim, podemos dizer que ele aborda não apenas a competência para formar orações, mas a competência de formá-las e empregá-las, como atos de fala, em processos de entendimento, na prática comunicativa cotidiana.

“Todo sujeito que fala tem a intenção de expressar, de forma inteligível, conteúdos verdadeiros sobre o mundo objetivo, corretos em relação às normas vigentes e verazes em relação ao seu mundo subjetivo, para que possa chegar ao entendimento com o ouvinte. Com seu ato de fala, ele levanta pretensões universais de validade, respectivamente, inteligibilidade, verdade, correção normativa e veracidade.”

“Revela-se, aqui, um dos mais importantes elementos da Teoria da Ação Comunicativa, salto de qualidade que a distancia do positivismo e das ciências empírico-análiticas, a saber, o entendimento de que não só as questões de verdade proposicional, mas também as questões normativas e vivenciais são passíveis de fundamentação racional, o que se faz possível em face de uma racionalidade alargada”( Melo, 2005).

Três são os tipos de ação fundamentais na Teoria da Ação Comunicativa.

Ação teleológica (ou instrumental): O ator realiza um fim ou faz com que se produza o estado de coisas desejado, elegendo, em uma situação dada, os meios mais congruentes e aplicando-os de maneira adequada. É uma ação solitária e dirigida ao êxito. 

Ação estratégica: É o tipo de ação que visa ao êxito e ao sucesso de um relacionamento objetivante e manipulativo entre os atores. Passa de ação teleológica para ação propriamente estratégica quando no cálculo se considera as expectativas de ação de pelo menos mais um agente. A cooperação aqui se dá somente pelo cálculo egocêntrico de utilidades. É uma ação social, pois envolve mais de um ator, e tem como característica sempre possuir um elemento de coerção. 

Ação comunicativa: se refere à interação de pelo menos dois sujeitos capazes de linguagem e de ação que entram em relação interpessoal. Os participantes buscam entender-se sobre uma situação de ação para poder assim coordenar de comum acordo seus planos de ação e com eles suas ações. O conceito nuclear aqui é de interpretação, e se refere primordialmente à negociação de definições da situação suscetíveis de consenso. É o tipo de ação que é coordenado pelo entendimento, onde os sujeitos agem desprovidos de reserva e isentos de qualquer força que não sejam as forças de suas razoes. Não aceita nenhum elemento de coerção.

Habermas critica Mead e Durkheim que tentaram desenvolver uma teoria da ação a partir da perspectiva “de dentro”, i. é, dos próprios atores. Ele considera que esta perspectiva é unilateral, porque omite a perspectiva da sociedade enquanto sistema, ou seja, sua abordagem a partir de um observador externo. Um conceito aceitável precisa integrar os dois pólos, o mundo vivido e o sistema.

O mundo vivido é o pano de fundo comum a todos os atores envolvidos numa mesma situação. Partindo do conceito husserliano de horizonte Habermas distingue entre o horizonte individual e coletivo. O primeiro é o conjunto de convicções de base, de saber pessoal e social, de experiência vivida, de intuição, mas especialmente de cultura e linguagem, que permitem ao ator se movimentar de forma inquestionada, numa situação concreta. O horizonte social se compõe do que é partilhado por todos os atores, compondo-se da experiência comum, das mesmas tradições, da língua e da cultura compartilhada.

O mundo vivido reflete, pois, o óbvio, o inquestionado, podendo no entanto modificar-se, na medida em que se modificam as estruturas da sociedade global (especialmente a econômica e a política, responsáveis pela reprodução material da sociedade).

O mundo vivido apresenta assim duas facetas:

A faceta da continuidade, porque é nele que se dão a reprodução cultural, a integração social e a socialização.

A faceta da mudança, porque é nele que se questionam e reformulam as aspirações de validade dos atores em relação aos três mundos formais (o mundo objetivo, o mundo social e o mundo subjetivo). É portanto no mundo vivido que podem ser contestadas as afirmações sobre a verdade dos fatos relativos ao mundo objetivo, a validade das normas relativas ao mundo social e a veracidade das manifestações subjetivas relativas ao mundo das vivencias e subjetividade.

O conceito complementar ao do mundo vivido é o conceito da ação comunicativa. A situação interativa é o lugar onde a tensão entre ambos se concretiza. O saber acumulado, o sempre já sabido e o tradicionalmente repetido constituem  o solo que nós sustenta, mas esta solidez é estremecida pela ação comunicativa. O que sempre foi pode ser posto em questão numa situação de ação comunicativa e debatida pelo grupo, que só respeitará o que tiver sido consensualmente acordado.

Somente depois do entendimento geral, alcançado através da ação comunicativa, pode a solidez do mundo vivido ser restaurada.

Olhado na perspectiva dos participantes, o mundo da vida tem a função de formar contexto e de prover recursos para a ação comunicativa; por sua vez, a ação comunicativa serve à reprodução do mundo da vida. Os participantes da ação comunicativa, ao se entenderem entre si, reproduzem e renovam a cultura; ao coordenarem lingüisticamente a ação, reproduzem lealdades; e a criança, ao participar das interações, incorpora valores sociais e desenvolve habilidades; portanto, a ação comunicativa tem as funções de, no que diz respeito à cultura, realizar a reprodução cultural, isto é, a reprodução e renovação do saber válido; no que diz respeito à sociedade, garantir integração social e produzir solidariedade, logo, estabilidade das ordens sociais; e, no que diz respeito à personalidade, promover os processos de socialização, que formam sujeitos capazes de fala e ação. Dessa maneira, ação comunicativa e mundo na vida se relacionam de forma circular: os sujeitos que interagem uns com os outros utilizando a linguagem são ao mesmo tempo produto e produtores do contexto onde estão inseridos.

Já o conceito de sistema serve para caracterizar as estruturas societárias responsáveis pela reprodução material da sociedade: a economia e o estado burocrático. Trata-se de mecanismos de regulamentação que dispensam a linguagem e o entendimento mútuo, regendo a interação de forma quase automatizada. Constituem meio de orientação para a ação instrumental, assegurando previsibilidade e calculabilidade, tecnificando o mundo material, político e mesmo social. Trata-se de uma ordem social cuja forma predominante de integração não é mais a comunicativa e, sim, a sistêmica, através das formas automáticas do dinheiro e do poder.

Segundo Habermas dois são os processos centrais que marcam a passagem das sociedades ditas primitivas para a modernidade.

O primeiro é a disjunção do mundo vivido e do sistema. Estes constituíam originalmente, uma unidade que foi se desmembrando e desenvolvendo mecanismos autônomos de integração: a integração social, assegurada pela ação comunicativa, e a integração sistêmica, assegurada por mecanismos que dispensam, em princípio, a regulamentação consensual. Nesta última atuam os mecanismos do dinheiro e do poder.

O segundo consiste na colonização do mundo vivido por mecanismos de integração sistêmicos. A ação comunicativa vai sendo gradualmente substituída – também na esfera do mundo vivido – pelos mecanismos dinheiro e poder.

Enquanto herdeira da teoria crítica, a teoria da ação comunicativa tem como tarefa principal denunciar os processos que levam a comunicação sistematicamente distorcida, e a patologias geradas pela colonização do mundo vivido. Cabe-lhe promover a descolonizarão do mundo vivido, ou seja, a expulsão da razão instrumental e a consolidação da ação comunicativa que assegura, através do entendimento e do consenso, a integração social.

Situações isentas de coação, em que se torne possível uma comunicação plena, não distorcida, em que as aspirações de validade possam ser explicitadas, questionadas ou confirmadas consensualmente, constituem o objetivo a ser alcançado na sociedade moderna. 

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sabedoria, esperteza e seriedade


Nil sapientiae odiosius acumine nimio.

Sêneca, citado no conto “A Carta Roubada”, de Edgar Alan Poe.

Esta frase sempre foi por nos traduzida como:  “Nada é mais odioso à sabedoria que um exagerado rigor.”

Mas no livro “A carta roubada e outras histórias de crime & mistério, da editora L&M, tradução  de William Lagos, editado em 2003, a mesma frase é traduzida como:

“Nada é tão prejudicial à sabedoria como a excessiva sagacidade”.

Esta tradução contém um erro e um acerto. O erro é traduzir odiosius por prejudicial. Em latin, odiosius significa odioso, desagradável, importuno, doloroso, funesto. Fica melhor como estava antes, “Nada é mais odioso `a sabedoria...”.

O acerto é a tradução de acumine por sagacidade. Em latim, acúmen é ponta, aguilhão, penetração ou agudeza de espírito, vivacidade ou sutileza. Por sua vez acúmino é tornar agudo, aguçar.

nimio é muito, demasiadamente, excessivamente.

Assim, julgo adequada a tradução “Nada é tão odioso à sabedoria como a excessiva sagacidade”. Esta tradução nos permite pensar que sagacidade aqui possa se associar a esperteza, a tentar ser mais esperto que o mais esperto. 

Certa vez um amigo, ao estacionar o carro para ir ao teatro, propôs a uma criança, que pediu para tomar conta, que se ela conseguisse uma calota igual à que ele tinha perdido lhe daria 10 reais. Ao sair da peça vê sua roda com a calota, fica todo feliz, dá o dinheiro ao menino e vai embora pra casa. Em casa, ao dar a volta no veículo, para apagar a luz da garagem, percebe que a criança havia tirado a calota de um dos lados do carro e passado para o outro lado.

Meu amigo, espertinho demais que queria ser, encontrou um menino bem mais espertinho que ele. 

Contudo, o termo "exagerado rigor", como era traduzido, é interessante ao associar a frase à seriedade. "Nada é tão odioso à sabedoria como o excessivo rigor" nos permite inferir que a seriedade excessiva nos distancia da sabedoria, do saber viver com gosto e sabor, nos tira a flexibilidade, o humor e a graça, que tanto podem nos ensinar. 

Enfim, talvez a tradução devesse mesmo é ficar ao gosto e necessidade de cada qual. 

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

E Riobaldo fala da ambiguidade





(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 15)

Não sei se existe no romance outro trecho que se repita como este se repete: ao todo, ele aparece 4 vezes pelo livro afora.

E é um poema-música, cantado pelos jagunços

“Olererê, baiana...
eu ia e não vou mais: eu faço
que vou
lá dentro, oh baiana!
e volto do meio pra trás...”

Essa era a ... “cantiga de se viajar e
cantar, guerrear e cantar, nosso bando, toda a vida”...

Riobaldo era pessoa inquieta, de muitas dúvidas e angústias. E de muitas mudanças, mesmo no oficio do guerrear: começou no bando de Zé Bebelo, que queria combater os jagunços soltos no sertão, depois passou para um dos bandos de jagunços que antes iria combater... de certa forma essa canção retrata seu caráter, suas dúvidas e oscilações.

E também permite que façamos uma distinção entre ambivalência e ambiguidade.

Riobaldo transita entre a ambivalência e a plurivalência. Hermógenes, o traidor, é ambíguio. “O Hermógenes tinha voz que não era fanhosa nem rouca, mas assim desgovernada desigual, voz que se safava.”

Ambivalênte é o que tem duas valências, dois valores simultâneos, que podem ou não serem conflitantes entre si.

A ambíguo é aquilo que se deixa indefinido, escorregadio. Conforme o interesse se puxa mais para cá ou para lá. A ambiguidade é refratária à definição, à precisão.

Em algumas situações definir seria prejudicial, essas trazem em si dois ou mais valores e podem ser inclusive, além de ambivalentes,  plurivalentes.

Mas a ambiguidade não diz respeito ao caráter fluido do mundo. Diz respeito a deixar uma margem de manobra pra ser utilizada de acordo com o próprio interesse. Conforme for, puxo pra cá, ou puxo pra lá, num jogo de dissimulações.

A ambiguidade é essencialmente manipulativa.

Samuel Butler afirmou “Não me importa a mentira, mas odeio a imprecisão.”

A mentira mais cedo ou mais tarde se revela. Ela parece, mas não é, e isso acaba por colocar-se evidente. Já a imprecisão é irmã da ambiguidade e pode nunca revelar-se fundada no falso. Quando seu caráter de falso ameaça transparecer, ela escorrega para outro ponto. Se tentamos novamente precisá-la, ela torna a escorregar e muda novamente de lugar.

Necrofilia e Biofilia




Dom Miguel de Unamuno, grande filósofo e humanista, em 1936, no início da guerra civil espanhola, responde aos gritos de “viva la muerte!” pronunciados pelos partidários do General Millán Astray, defensor junto com o Generalíssimo Franco da guerra civil, que acabara de discursar na universidade de Salamanca.

“...Acabo de ouvir um grito necrófilo e insensato. E eu, que passei a vida formando paradoxos que despertaram a ira da incompreensão alheia, devo dizer-lhes, como autoridade especializada, que este paradoxo bizarro me é repelente. O general Millán Astray é um aleijado. Digamos isso sem qualquer disfarce. Ele é um inválido da guerra. Assim foi também Cervantes. Infelizmente há demasiados aleijados na Espanha agora. E cedo haverá ainda mais se Deus não vier em nosso auxílio. Dói-me pensar que o General deva ditar o modelo da psicologia da massa. Um aleijado desprovido da grandeza espiritual de um Cervantes está habituado a procurar sinistro alívio provocando mutilação em torno de si”.

Diante destas palavras Millán Astray não pode mais controlar-se, gritando “Abaixo a inteligência! Viva a morte!” E é aplaudido pelos companheiros falangistas. Mas Unamuno não se abateu e continuou:

”Este é o templo do intelecto. E eu sou seu sumo sacerdote. É você que profana seu sagrado recinto. Você ganhará porque dispõe de mais do que suficiente força bruta. Mas você não convencerá. Para convencer é mister persuadir. E a fim de persuadir você precisa do que lhe falta: Razão e direito na luta. Considero fútil exortá-lo a pensar na Espanha. Eu pensei”.

Unamuno ficou preso em casa até a sua morte poucos meses depois.


Necrofilia significa amor aos mortos, literalmente. Em seu grau máximo é uma perversão sexual.
A pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada por tudo o que não é vivo, tudo que está morto: cadáveres, decomposição, fezes, sujeira. Gostam de falar de enterros, doenças e morte. Enchem-se de vida justamente quando podem falar de morte.
Os necrófilos moram no passado, nunca no futuro. Seus sentimentos são essencialmente sentimentais, isto é, alimentam a memória dos sentimentos que foram sentidos ontem. São frios, distantes, devotos da lei e da ordem.
Amam a força, entendida como força para matar. Para eles só há dois sexos: os fortes e os fracos, os poderosos e os impotentes, os matadores e os mortos. Enquanto a vida se caracteriza pelo crescimento, a pessoa necrófila ama tudo que não cresce, tudo que é mecânico. É impelida pelo desejo de transformar o orgânico em inorgânico, de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos vivos são transformados em coisas. Memória em vez de experiência, ter em vez de ser, é o que interessa. O necrófilo pode relacionar-se com um objeto - uma flor ou uma pessoa - somente se possuir esta; por isso uma ameaça às suas posses é uma ameaça a ele mesmo; se perder a posse perderá o contato com o mundo. Ele gosta do controle e, no ato de controlar, ele mata a vida. Teme profundamente a vida por ser esta pela própria natureza desordenada e incontrolável. Para o necrófilo, justiça significa divisão correta, e dispõe-se a matar ou morrer pelo bem daquilo que denomina justiça. “Lei e ordem” para ele são ídolos - tudo que ataca a lei e a ordem é sentido como um ataque satânico contra seus valores supremos.
A pessoa necrófila é atraída pela escuridão e pela noite. Ele quer voltar às trevas do útero e ao passado da existência inorgânica ou animal. É intrinsecamente orientado para o passado, não para o futuro que odeia e teme. Relacionado com isso há seu anelo de certeza. Mas a vida nunca é certa, nunca é previsível, nunca é controlável; a fim de tornar a vida controlável ela tem que ser convertida em morte; a morte é, de falto, a única certeza na vida.
A pessoa necrófila é ordeira, obsessiva e pedante.
A pessoa biófila: sua essência é o amor à vida. É qualidade inerente à toda substancia viva viver e preservar sua existência. “Tudo na medida em que é ele mesmo, esforça-se por persistir em seu próprio ser”. Espinosa, Ética, III, prop. VI.
O pleno desabrochar da biofilia é encontrado na orientação produtiva. A pessoa que ama a vida completamente é atraída pelo processo da vida e do crescimento em todas as esferas. Prefere construir a conservar. É capaz de maravilhar-se, e prefere ver algo novo à segurança de encontrar a confirmação do velho.
A consciência da pessoa biófila não é a de se obrigar a abster-se do mal e fazer o bem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo. Por essa razão o biófilo não fica com remorso e sentimento de culpa que, afinal de contas, são somente aspectos de autodesprezo e tristeza. Ele se volta rapidamente para a vida e tenta fazer o bem.
As formas puras das orientações necrófilas e biófilas são raras. O que importa é qual das duas tendências é dominante.
A condição mais importante para o desenvolvimento do amor à vida na criança é ela estar com pessoas que amam a vida.
Walt Whitman: “Passar (oh, sempre vivendo) e deixar os cadáveres para trás”.

Extratos do capítulo “Amor à morte e amor à vida”, do livro “o coração do homem”, de Erich Fromm.

quinta-feira, 11 de outubro de 2012

E Riobaldo fala da boa tristeza



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 12)

“A tristeza. Aí, o Reinaldo, na paragem, veio para perto de mim. Por causa da minha tristeza, sei que de mim ele mais gostava. Sempre que estou entristecido, é que os outros gostam mais de mim, de minha companhia. Por quê? Nunca falo queixa, de nada. Minha tristeza é uma volta em medida; mas minha alegria é forte demais. Eu atravessava no meio da tristeza, o Reinaldo veio. Ele bem-me-quis, aconselhou brincando: – “Riobaldo, puxa as orelhas do teu jumento...” Mas amuado eu não estava. Respondi somente: – “Amigo...” – e não disse nem mais. Com toda minha cordura. Mas, de feito, eu carecia de sozinho ficar. Nem a pessoa especial do Reinaldo não me ajudava.

Sozinho sou, sendo, de sozinho careço, sempre nas estreitas horas – isso procuro. O Reinaldo comigo par a par, e a tristeza do medo me eivava de a ele não dar valor. Homem como eu, tristeza perto de pessoa amiga afraca. Eu queria mesmo algum desespero. Desespero quieto às vezes é o melhor remédio que há. Que alarga o mundo e põe a criatura solta. Medo agarra a gente é pelo enraizado. Fui indo. De repente, de repente, tomei em mim o gole de um pensamento – estralo de ouro: pedrinha de ouro. E conheci o que é socorro.”


Existem alegrias e tristezas boas e más.

A boa alegria diz respeito ao envolvimento com a vida. E como tudo que é vital é em aberto e encontra-se em transformação, a boa alegria diz respeito a abertura para o novo, à descoberta, à graça diante daquilo que se apresenta para nós e diante daquilo que conseguimos construir. A boa alegria diz respeito ao gozo genuíno do prazer de viver.

Ou, como diria Riobaldo, “O senhor tenha na ordem seu quinhão de boa alegria, que até o sertão ermo satisfaz.”

A má alegria é como uma euforia desmedida e auto-suficiente. Ela diz respeito aos nossos desejos de onipotência e de perfeição, aos nossos desejos de nunca errar e sempre estarmos certos. A má alegria é um tipo de hipomania cobiçosa convencional, na qual nos convencemos que estamos sempre certos e apressados, passamos ao largo da realidade, sem nada ver.

A má tristeza diz respeito à cólera desesperada, à magoa antiga,  ao ressentimento velho e ao rancor mofado. A má tristeza é projetiva e supõe que os outros, e somente eles, é que são responsáveis pelos problemas que temos, se alimentando da embriagante lamentação. A má tristeza procura culpados e não soluções, por vezes até foge das soluções. A má tristeza não leva à compreensão.

O filme “Hiroxima, meu amor” retrata uma boa metáfora da má tristeza quando a atriz principal, ao narrar o enorme sofrimento pelo qual passou durante a Segunda Guerra, vai afundando na dor e na lamentação e por pouco não enlouquece novamente. A má tristeza nos ensina que a dor deve ter sua medida ou nos afogaremos em nossas próprias lágrimas.

A boa tristeza diz respeito ao momento de parada, quando precisamos reavaliar nossos projetos e mudar de direção. A boa tristeza está relacionada à percepção do erro como um elemento de aprendizagem e de aproximação da realidade. A boa tristeza acontece quando compreendemos que as coisas não  transcorreram como gostaríamos, mas que agora, diante da clara realidade que se apresenta, podemos finalmente caminhar com os pés no chão. A boa tristeza leva à compreensão.

Na maior parte das vezes essas tristezas e alegrias se apresentam bem misturadas.

Mas, como diria Riobaldo...

“A gente vive, eu acho, é mesmo para se desiludir e desmisturar.”


segunda-feira, 8 de outubro de 2012

E Riobaldo fala dos diversos tipos de medo




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 11)

E Riobaldo corre o risco de se encontrar com seu antigo grupo, comandado por Zé Bebelo (que tentava combater os grupos de jagunços), e que ele abandonara justamente para se tornar um Jagunço. É então alertado que eles podem matá-lo. E começa a pensar sobre o medo.

“Foi que Titão Passos, pensando mais, me disse: – “Tudo temos de ter cautela... Se eles já souberam notícia de que você fugiu, e te encontram, são sujeitos para quererem logo te matar imediato, por culpas de desertor...” Ouvi retardado, não pude dar resposta. Me amargou no cabo da língua. Medo. Medo que maneia. Em esquina que me veio. Bananeira dá em vento de todo lado. Homem? É coisa que treme. O cavalo ia me levando sem data. Burros e amulas do lote de tropa, eu tinha inveja deles... Tem diversas invenções de medo, eu sei, o senhor sabe. Pior de todas é essa: que tonteia primeiro, depois esvazia. Medo que já principia com um grande cansaço. Em minhas fontes, cocei o aviso de que um suor meu se esfriava. Medo do que pode haver sempre e ainda não há. O senhor me entende: costas do mundo. Em tanto, eu devia de pensar tantas coisas – que de repente podia cursar por ali gente zebebela armada, me pegavam: por al, por mal, eu estava soflagrante encostado, rendido, sem salves, atirado para morrer com o chão na mão. Devia de me lembrar de outros apertos, e dar relembro do que eu sabia, de ódios daqueles homens querentes de ver sangues e carnes, das maldades deles capazes, demorando vingança com toda judiação. Não pude, não pensava demarcado. Medo não deixava. Eu estando com um vapor na cabeça, o miolo volteado. Mudei meu coração de posto. E a viagem em nossa noite seguia. Purguei a passagem do medo: grande vão eu atravessava.”

Riobaldo fala neste trecho sobre os vários tipos de medo.

Maria Ângela Junqueira Reis diferencia dois tipos importantes, o temor e o medo propriamente dito. E fala de suas relações com a ação e com a paralisação da ação. Cito trechos de seu trabalho:

“Então, fiz essa monografia tendo como fio condutor as seguintes perguntas: Qual é o conceito de medo? Qual é o conceito de ação? É possível o medo paralisar a ação? Porque isso aconteceria? Assim, faço uma interlocução entre a terapia ocupacional e a psicologia, que são as duas formações escolhidas por mim.           
O temor está ligado ao sentimento de impotência, na medida em que não se pode dominar aquilo que se teme, o que pode ser traduzido pelo não poder fazer. Quanto maior a impotência, maior o medo.  
É ligado à esperança de salvação. Se há temor, há alguma esperança de salvação, porque só na presença da mesma existe temor. Quando se teme, trava-se uma luta em relação ao que se teme. Para esse movimento existir, a esperança é essencial, caso contrário, a luta seria em vão.  
O temor provoca deformação, fazendo as coisas parecerem maiores ou menores do que são. Se for um pequeno temor que não perturbe muito a razão, leva à deliberação, contribui para se agir bem. Se o temor for grande e prejudicar a razão, impedirá a ação.
Na ação estão presentes a flexibilidade, a indeterminação e a irreversibilidade, ou seja, a impossibilidade de desfazer o que se fez. Para efetivar uma ação, é preciso disposição frente ao indeterminado. É interessante pensar que o medo se dá diante de situações que possuem esse caráter, ou seja, é justamente o que gera temor. Então, o seu movimento é o contrário da ação, sua tentativa é de eliminar essas características que são próprias da ação, paralisando-a.
(...)
Outra saída para o temor é a noção de confiança proposta por Aristóteles. O que gera confiança é o contrário do que gera temor. Significa se aproximar dos meios de salvação, assim como dos meios de reparação e de proteção. Assim, a pessoa se acerca da realidade, do que é possível e do que não é possível a ela fazer, e delibera sobre sua ação. Pode escolher prosseguir, recuar ou parar, o que não se caracteriza uma paralisação por ser uma decisão em virtude da deliberação. Nesse contexto, pode-se pensar o medo enquanto proteção. O que significa, segundo Pacheco, recorrer a própria experiência, o que dá ao homem mais elementos de ação diminuindo, por isso, o temor.”

Assim, poderíamos talvez afirmar que o medo se liga mais a prudência, ao cuidado na ação. E o temor seria aquilo que realmente paralisa e não nos deixa agir, mesmo quando isso seria muito importante.

Em postagem anterior ( "Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 6), fiz uma primeira distinção entre coragem, valentia e covardia:

Coragem é conseguir ultrapassar os receios quando se é fundamental tentar. O medo está presente na coragem e vem temperá-la, para que ela possa se equilibrar com a prudência. Coragem é seguir o ditado: “É hora de se usar a tática da gelatina: vai tremendo, mas vai”. A coragem remete, em sua etimologia, à palavra cordos, coração. E parece sugerir, desta forma, que inclui em si os sentimentos e emoções, e que está perturbado por estas não indica falta de coragem.


Coragem não é não sentir medo. Que mérito haveria em fazer algo sem nenhum resquício de medo? Em que precisei me superar, me alterar, para conseguir realizar, se não senti nenhum receio? O mérito está em sentir medo, mas sabendo ser importante, conseguir ultrapassá-lo e não paralisar.


Quando o medo toma a pessoa por inteiro, chegando a paralisá-la, estamos falando então da covardia. Está é quando a pessoa, diante da necessidade fundamental de tentar, se deixa imobilizar pelo medo.


No polo oposto encontra-se a valentia, que é o agir intempestivo, sem nenhuma prudência. Essa valentia assustadora, aparentemente uma ação sem nenhum tipo de receio, na maior parte das vezes é justamente o contrario disto: é uma ação possuída pelo medo, agora já transformado muitas vezes em pânico. Esse tipo de ação, na maior parte das vezes, está direcionado ao fracasso.”

Acho que ficaria melhor se partíssemos do seguinte: quando se falar de coragem estamos também falando de medo. Quando se falar de valentia assustadora ou de covardia, estamos falando de temor, como tão bem esclareceu Maria Ângela.