sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Clarice Lispector:


Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua.Faça com que a solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.

ATIVIDADE NEGATIVA:



Atividade negativa: segundo John Keats: “quando um homem é capaz de estar em incertezas, mistérios, dúvidas, sem qualquer tentativa irritável de alcançar fato e razão”. 

Esquecimento


ENSAIOS DE AMOR, Alain de Botton

ESQUECER, PG. 212

“Então, inevitavelmente, eu comecei a esquecer. Poucos meses após romper com ela, descobri-me na área de Londres em que ela havia vivido e reparei que pensar nela não me causava mais tanta agonia, eu até notei que meu primeiro pensamento não era para ela (embora aquelas fosse exatamente suas vizinhanças), mas para o encontro que eu havia marcado com alguém num restaurante nas proximidades. Percebi que a lembrança de Chloe havia se neutralizado e se tornado parte da história. Mas a culpa acompanhava esse esquecimento. Não era mais a ausência dela que me feria, mas a minha crescente indiferença por ela.”

“Aconteceu uma reconquista gradual do eu, novos hábitos foram criados e uma identidade desvinculada de Chloe foi erigida. Minha identidade havia sido por tanto tempo forjada em torno de “nós” que voltar ao “eu” envolveu uma reinvenção quase completa de mim mesmo. Foi preciso um longo tempo para que as centenas de associações que Chloe e eu havíamos acumulado juntos se desvanecessem. Tive que viver com meu sofá por meses antes que a imagem dela deitada nele de camisola fosse substituída por outra imagem, de um amigo lendo um livro nele, ou meu casaco jogado sobre ele... tive que revisitar quase todos os locais físicos, rescrever todos os tópicos de conversação, tocar de novo cada música e repassar cada atividade que ela e eu havíamos compartilhado para reconquistá-las para o presente, para desfigurar suas associações. Mas aos poucos eu me esqueci”.

quinta-feira, 30 de agosto de 2012

DECÁLOGO DA SERENIDADE


(Papa João  XXIII)


1 - Procurarei viver, pensando apenas no dia de hoje, exclusivamente este dia, sem querer resolver todos os problemas da minha vida de uma só vez.


2 - Hoje, apenas hoje, procurarei ter o máximo cuidado na minha convivência: cortês nas minhas maneiras, a ninguém criticarei, nem pretenderei melhorar ou corrigir à força ninguém, senão a mim mesmo.


3 - Hoje, apenas hoje, serei feliz na certeza de que fui criado para a felicidade, não só no outro mundo, mas também já neste.


4 - Hoje, apenas hoje, adaptar-me-ei às circunstâncias, sem pretender que sejam todas as circunstâncias a se adaptarem aos meus desejos.


5 - Hoje, apenas hoje, dedicarei dez minutos do meu tempo, a uma boa leitura; recordando que, assim como o alimento é necessário para a vida do corpo, assim a boa leitura é necessária para a vida da alma.


6 - Hoje, apenas hoje, farei uma boa ação e não o direi a ninguém.


7 - Hoje, apenas hoje, farei ao menos uma coisa que me custe fazer; e se me sentir ofendido nos meus sentimentos, procurarei que ninguém o saiba.


8 - Hoje, apenas hoje, executarei um programa pormenorizado. Talvez não o cumpra perfeitamente, mas ao menos escreve-lo-ei. E fugirei de dois males: a pressa e a indecisão.


9 - Hoje, apenas hoje, acreditarei firmemente - embora as circunstâncias mostrem o contrário - que a Providência de Deus se ocupa de mim como se não existisse mais ninguém no mundo.


10 - Hoje, apenas hoje, não terei nenhum temor. De modo especial não terei medo de gozar o que é belo e de crer na bondade.


Posso praticar o bem durante doze horas e me desanimaria se pensasse que o deveria praticar durante a minha vida.


Reino - 15

Ainda sobre a pressa:

Certo dia, uma amiga me disse um ditado:


Seja voce leão, seja você gazela, Corra!


Eu respondi: Eu não sou um leão, não sou uma gazela,  não moro na África.

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

E Riobaldo fala da saudade:

(Da série: como Guimarães Rosa pode mudar sua vida, parte 4)



E Riobaldo fala da saudade pela primeira vez. Estamos na página 49.

“Moço: toda saudade é uma espécie de velhice.”

E pouco adiante Diadorim pergunta pelas lembranças que Riobaldo tem de sua mãe:

“Mas Diadorim mais não supriu o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou: – “Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade que era a dela...
Na ação de ouvir, digo ao senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento, em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre madrugar e manhecer. – “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra – beiras – cabeceiras... Fosse cego, de nascença.”

Riobaldo, ao saber que Diadorim não conhecera a própria mãe lembra-se que ele não conheceu o próprio pai:

“Por mim, o que pensei, foi: que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Orfão de conhecença e de papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha, passa: muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre, pouco se apega, é um giro-ogiro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios e lagoas. O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e habilidoso. Pergunto: – “Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-d’angola, como todo o mundo faz?” – “Quero criar nada não...” – me deu resposta: – “Eu gosto muito de mudar...””

Riobaldo se irrita com o excesso de mudanças de nomes das cidades, ou talvez diríamos que ele se irrita com o excesso de mudanças da vida.

“Está aí, está com uma mocinha cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim. Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus, por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino, no sertãozinho de minha terra – baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das fontes do Verde, o Verde que verte no Paracatu. Perto de lá tem vila grande – que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram. Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado. Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o contrário Dele... Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos.”

Como lidar com a indeterminação do futuro? O futuro não está pré-determinado. Isso é ao mesmo tempo nosso céu e nosso inferno, nossa possibilidade de liberdade e nossa fonte de angústia. Liberdade por que só somos livres porque o futuro está em aberto diante de nós e o que vai ser feito da nossa vida depende daquilo que formos escolhendo. Angústia porque diante destas escolhas tememos. Tememos errar, tememos pecar, tememos escolher e sermos responsabilizados por nossas escolhas. Ou, nas palavras de Ho Chi Mim:

“Há ainda uma coisa estranha nesse mundo,
as pessoas correm para prender suas pernas em grilhões.
Uma vez acorrentadas, podem dormir em paz.
De outra maneira elas não teriam onde descansar a cabeça.”

Diria Hanna Arendt que o recurso diante da imprevisibilidade da ação, da caótica incerteza do futuro, está na capacidade de prometer e cumprir promessas. Esta capacidade teria uma função estabilizadora, possibilitando criar ilhas de segurança no futuro que é um oceano de incertezas.

E Riobaldo volta a falar da saudade:

“Para trás, não há paz. O senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacedo... Gente melhor do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá, nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixio da Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...”(pg 52)

A saudade traz em si um vazio, algo que se interrompeu e que não poderia ter sido interrompido, um vazio sem descanso... “Para trás, não há paz”. Um vazio tenso, ansioso, desesperado, tal como a descrição que Álvaro Andrade Garcia faz do quadro “A saudade”, de Nello Nuno:



“O quadro era quase todo uma mancha verde. Vários tons dessa cor, sobrepostos com vigorosas pinceladas, formavam uma gradação que partia da cor mais escura embaixo à mais clara na parte superior da tela. Dessa forma os planos ficavam aparentemente confusos. Mas a impressão que se tinha era de que o primeiro plano continuava por algo que seria uma janela, dando para montanhas ao fundo. Algumas pinceladas brancas, em forma de retângulos e triângulos, pareciam indicar uma cidade no canto superior esquerdo. Atrás dela, uma porção verde-oliva: as montanhas. No canto superior direito, o verde escuro das porções inferiores dava a impressão de haver algo tenso, inexplicável. Nas proximidades dessa mancha, um velocípede e uma planta davam um ar de familiaridade à cena. Finalmente, algumas pinceladas vermelhas no centro da tela, um pouco à esquerda, formavam algo entre uma grade e as chamas de uma fogueira. Reunindo o branco e o vermelho, em proporções mínimas, diluídos no verde, o artista conseguiu transmitir uma estranha sensação de leveza. Ao mesmo tempo, detalhes como uma fissura ao longo do centro de gravidade da cena ou o imobilismo do velocípede remetiam o observador atento a um estado de primitivismo e até mesmo de ausência.”

Cito aqui um trecho que escrevi sobre a saudade, num escrito que fiz sobre a pressa:

“Há autores que consideram a saudade como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?

Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Temos saudade do passado quando poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá. 

A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.”

Tenho uma irmã, muito querida, que por sua vez tinha uma melhor amiga que considero ter sido, certamente, uma das pessoas que ela mais amou na vida. Certo dia, conversando comigo e com minha esposa, minha irmã contou que sua amiga estava medicada com anti-depressivos para tratar de uma enxaqueca. Dissemos que esse tratamento era usual. E ela completou que a amiga também tivera uma paralisia em uma das pernas. Aí ponderamos que seria melhor que ela fizesse uma ressonância ou uma tomografia do crânio, que este sintoma estava fora do esperado para enxaquecas e poderia revelar outros problemas.

A amiga adiou por uns quinze dias esse exame. Estava com medo. Um tempo antes um amigo jogara o taro para ela e, nesta ocasião, por duas vezes sucessivas, saíra a carta da morte. O amigo a tranquilizou, dizendo que isto era simbólico, não literal, e que indicava que ela teria que passar por uma importante provação.

Mas, com receios ela adiou o exame por uns 15 dias. Quando finalmente o fez, descobriu um perigoso aneurisma, com risco de rompimento. Mas foi preciso adiar alguns dias a necessária cirurgia para melhorar um resultado alterado nos exames pré-cirúrgicos. Um ou dois dias depois o aneurisma arrebentou e ela faleceu.

Fiquei muito preocupado com minha irmã. Já tínhamos perdido o pai – ela tinha 6 anos na época – e agora essa morte repentina. Passei a ligar para ela algumas vezes por dia para ter notícias. Três ou quatro dias depois liguei e perguntei como ela estava. Ela disse:

- Agradecendo.

Eu não entendi. E retruquei:

- Agradecendo o que?

- Agradecendo a Deus. Por ter me dado 10 anos com Dodora. Eu poderia não te-la conhecido. E foi tão bom ter sido amiga dela. Ela me ajudou tanto. E sei que eu também ajudei tanto a ela. Deus é muito bom. Me deu uma amizade tão bonita pra viver...

- Gabi – respondi – você está me dizendo uma coisa muito importante. Pela primeira vez, hoje a noite, vou agradecer a Deus os 10 anos que ele me deu com nosso pai. Sempre xinguei os 60 anos que ele me teria roubado. Tenho tanto dele, mesmo me lembrando tão pouco dele... pela primeira vez vou agradecer a graça de ter convivido com ele por tanto tempo... Ah! Tem mais uma coisa: não te ligo mais não tá? Se você precisar, você me liga...

A diferença entre saudade e lembrança é que se a saudade tem um vazio irrecuperável, a lembrança se alimenta da convivência verdadeira e plena que houve. Brincamos entre as duas, hora tendendo mais a uma, hora a outra. Parece-me que minha irmã viveu tão por inteiro as experiências que teve com essa amiga, elas conviveram tão plenamente, que ficaram muito mais lembranças do que saudades, muitos mais sentidos do que vazios dolorosos. O amor é farto, faz-se presença e nutre. Mesmo depois da morte da amiga o amor ainda a preenchia, fazendo-a plena de sentido.

Nesse sentido, de modo diverso ao dito por Riobaldo, é possível ter paz no “para trás”.

Tagore

“Tu me fizeste conhecido de amigos que eu não conhecia.

Tu me deste lugares em casas que não eram a minha.

Tu trouxeste para perto o que estava longe e do estrangeiro fizeste meu irmão.

Sofre meu coração quando tenho que deixar meu refúgio habitual; eu me esqueço de que aí, o que é velho habita o que é novo e que aí tu habitas também.

Pelo nascimento e pela morte neste ou em outros mundos, onde quer que me conduzas, és tu o mesmo, o companheiro único de minha vida sem fim, que com laços de alegria sempre une ao alheio o meu coração.”


”Por todos os meios procuram ter-me preso os que me amam neste mundo. Mas tal não se dá com teu amor, que é maior que o deles, pois tu me deixas livre.

Com medo que eu os esqueça nunca se atrevem a me deixar sozinho. No entanto, passam-se dias e dias e tu não apareces.

Mesmo que eu não te evoque em minhas preces, mesmo que eu não te leve em meu coração, teu amor por mim espera assim mesmo o meu amor”.

SEMMELWEISS - A vida e obra de, companhia das letras, 1998.



Formado em 1844 se interessou pela alta incidência de febre puerperal em pacientes de médicos e estudantes de medicina, quando comparado às mães que tinham seus filhos com as parteiras do hospital. Suspeitou que isso se devesse ao fato dos médicos e estudantes de medicina irem, por vezes, direto da lida com cadáveres para a sala do parto. Os médicos, que acreditavam ser impossível o contágio por manipulação de cadáveres - pois a morte era o fim de todo e qualquer manifestação de vida do paciente e, portanto não havia o que transmitir - e julgaram sua hipótese estúpida. Para eles a febre se originava do próprio corpo da paciente, e os esforços de cura eram inúteis. O Doutor insistiu, mandou instalar pias e exigiu que todos se higienizassem antes do parto. Apesar dos impressionantes resultados - queda de 18% para 1,2% de contaminação - os médicos e estudantes, injuriados, resistiram e por fim foram liberados pela direção do hospital de realizar a higienização. Com alguns profissionais o procedimento não mostrava tantos resultados positivos... Talvez estes não tomassem realmente as precauções recomendadas... O Doutor foi perseguido, e apesar do sucesso das poucas experiências que conseguiu realizar, não obteve reconhecimento. Em 1858 apresentou sua tese na academia de medicina de Paris, que foi rejeitada. Foi dado como louco e internado. Ao sair da internação, invade o anfiteatro da faculdade, vai até o cadáver que estava sendo dissecado, fura-o num ponto infeccioso com o bisturi e corta-se. Morre três dias depois, aos 47 anos.

Segundo a versão de Celine, o corte foi acidental, num momento de loucura, e o suplício da morte demorou três semanas, e neste período é que ele foi internado em um hospício.
Celine diz ainda que Semmelveis tinha um gênio irascível,
Diz que seus dois mestres e melhores amigos “procurando apoiá-lo, aconselhá-lo, várias vezes tentaram moderar seus arroubos impetuosos, convencê-lo da inutilidade de suas insolências, de suas intermináveis polemicas com contraditores de má fé”. “Durante os anos de impiedosas provações, quando a malta dos inimigos uivou seu ódio a Semmelweis acuado, banido, seus dois mestres envelhecidos e, no entanto cansados de lutas pessoais ainda se unirão para defendê-lo. Skoda sabia manejar os homens, Semmelweis queria quebrá-los. Não se quebra ninguém. Quis arrombar todas as portas rebeldes, feriu-se cruelmente. Elas só se abririam após a sua morte”.
“Em nome da verdade devemos assinalar um grande defeito de Semmelweis: o de ser brutal em tudo e, em especial, consigo mesmo.” pg. 67.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Madrugada com medo


- Nello... Nello..., acorda...
- Hum...?
- Acorda...
- Huummm... que foi?
- João acordou, já tem meia hora, e não tá conseguindo dormir. Já tentei de tudo para acalmá-lo mas ele não consegue dormir... diz que tá com medo de você ter morrido...

Era minha esposa cochichando em meu ouvido.

Estávamos todos dormindo no mesmo quarto, na casa de praia da minha mãe, eu, minha esposa, meu menino de 7 anos e minha menina de 5. Tínhamos escolhido o quarto maior, dado uma boa limpeza nele e nos acomodado lá. Deviam ser umas duas horas da madrugada.

- Medo de eu ter morrido!?

Perdi meu pai quando eu tinha 10 anos. Tentei nunca pesar muito essa historia lá em casa para não impressionar os meninos. O pai de minha mãe separou-se, foi embora e não mais voltou. De onde João agora vinha com isso? Certos assuntos parecem mesmo permear certas famílias. Parecem ser temas que serão sempre abordados nas histórias dessas pessoas... meu filho com medo que eu morra, ou que eu tenha morrido! Do nada!

- João, você tá acordado?
- Papai, você está aí?
Sua voz estava chorosa...
- Estou João. Você acordou e não está conseguindo dormir de novo?
- Eu tava com medo de você ter morrido...
- João, eu to aqui, eu não morri...
- Mas eu to com medo papai...
- João, você está sentado na sua cama?
- To.
- Então deita, meu filho... já deitou?
- Já.
- Agora feche os olhos... já fechou?
- Já.
- João, agora você vai imaginar, de olhos fechados, uma foto. Nessa foto estamos eu, você, mamãe e sua irmã... os quatro... abraçados... nós estamos abraçados e sorrindo, todo mundo juntinho... você está imaginando?
- To sim, papai...
 - João, nós somos uma família. Nós sempre vamos estar juntos. Agora você é pequeno e papai te ajuda mais, mas você também me ajuda muito quando eu preciso. Quando papai estiver velhinho você vai ajudar ainda mais... Mamãe sempre te ajuda quando você precisa e você também a ela. Você ajuda sua irma e ela a você, e nós a ela e ela também a nós... somos uma família, João. Estamos juntos, nos amamos e contamos uns com os outros... Eu sempre vou estar com você. Mamãe e sua irmã também... você nunca vai ficar sozinho... você entendeu? ... Você está me ouvindo?... João...?

Tinha dormido...

SOBRE A PRESSA - Nello de Moura Rangel Neto






"Só agora estou sadio, e era doente, porque meu tempo
galopava e afligia-me o medo do que viria."

A condição poética - Czeslaw Milosz


"Eu tenho pressa, tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim..."

Kid Abelha



   Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Nello Rangel




Um homem ganhou um carro no bingo da igreja. Ao ir receber o seu prêmio não conseguiu achar a ignição. “Onde é que se liga?” “Esse automóvel não precisa de chave. Ele é especial. Funciona somente com palavras”.“E como é que se dá a partida?” perguntou aflito. “É só dizer: graças a Deus”.“Graças a Deus!”, exclamou.
E foi embora. Pegou a estrada e acelerou. “Graças a Deus! Graças a Deus! Graças a Deus!” E aí, no máximo da velocidade, viu passar a placa: “Perigo, ponte caída”. Percebendo o enorme precipício que se aproximava, exclamou: “Ich, me esqueci de perguntar como se freia essa coisa!” Quando já estava quase despencando, já no auge do desespero, gritou: “Ai, minha Nossa Senhora!!!”
SSSCRIIIINCH!!!! E o carro parou imediatamente, dependurado na beirada do abismo. Ao que ele exclamou, aliviado: “Graças a Deus....”

Anedota popular


Festinatio tarda est (A pressa mais atrasa do que adianta).

Aforismo latino


“Pior, pior... Começamos a olhar o medo... o medo grande... e a pressa... O medo é uma pressa que vem de todos os lados, uma pressa sem caminho...”

João Guimarães Rosa, in Sagarana





A nós , nos cabe andar.

Mas o tempo, os seus passos,

são mínimos pedaços
do que há de ficar.



É perda pura

tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.

Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.

Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.

Rainer Maria Rilke: "A nós, nos cabe andar" trad. Augusto de Campos




Parafraseando João Guimarães Rosa, que disse "Toda saudade é uma espécie de velhice", afirmamos aqui, sem medo de errar:
Toda pressa é uma espécie de velhice.







Vivemos em uma época de muita pressa. Temos a impressão de que tudo à nossa volta acontece muito rapidamente. Novidades surgem a todo momento, novas tecnologias, novos aparelhos, novas necessidades que antes nem imaginávamos possuir.

Nesse mundo apressado ou nos sentimos imobilizados, na melhor hipótese, ou ficando para trás, na pior hipótese. Temos uma permanente sensação de desatualização e sucateamento. Essa sensação por vezes nos paralisa, quando quedamos desesperançosos de conseguir mudar a situação. Por vezes nos lança em extrema pressa e agitação, o que acaba por nos deixar precipitados e irreflexivos, e, por isso mesmo, mais adiante restaremos igualmente paralisados por nossas precipitações.

Diz um ditado: “Seja você leão, seja você gazela, corra!”. Ouvimos esse ditado, nas suas mais diversas formas, todos os dias. E saímos correndo. Só lá muito adiante, e se tivermos sorte, é que lembramos: “Ora, eu não sou leão, nem sou gazela, nem ao menos moro na África, o que estou fazendo aqui, correndo como um desesperado?”

Ao consultar um dicionário vemos que a palavra pressa remete a falta de calma, precipitação, afobação, urgência. Sua origem é o vocábulo latino préssus, que significa apertado, imprensado.

O desenho de caricatura de Howard (fig. 1), de autoria de J. B. Priestley ironiza algumas dessas situações, próprias de nossos dias: a pressa constante; a corrida desenfreada, sem rumo e nem sentido; a rivalidade hierárquica; os mecanismos justificadores que dificultam o processo de tomada de consciência.


fig. 1

            Como caricatura, o trabalho de Priestley tem uma linguagem própria. Alguns aspectos dessa linguagem merecem ser ressaltados.

            O primeiro desenho retrata Howard, que diz: “Estou correndo, mas não vou a nenhuma parte”.Esta afirmação inicial encontra-se ressaltada por alguns elementos gráficos presentes na caricatura.

            Howard é o único personagem que tem sombra. Isso ressalta a sensação de que ele não sai do lugar. Também é o único personagem que não tem traços cinestésicos, que indicam movimento (sugerindo que a passagem do personagem deixou uma mancha para trás, tamanha sua rapidez). Esta falta de indicativos de movimento, somada à presença de sombra e às posições dos braços e pernas de Howard - que indicam uma corrida - transmitem com perfeição a sensação de que ele realmente está correndo, mas não sai do lugar.

            A presença dos traços cinestésicos nos outros personagens - Murray, Lucille e Irwin - indicam que eles passam velozmente por Howard. Os traços cinestésicos mais fortes e ao mesmo tempo mais finos, são de Irwin. Isto realça a impressão de que ele é o mais veloz. O desenho de seu corpo chega a ser aerodinâmico sugerindo a forma de uma bala, o que induz à percepção de uma velocidade ainda maior.

            A postura de Howard é inicialmente altiva: costas retas, corpo “empinado”, braços e pernas em posição de resoluta corrida. Quando ele é ultrapassado por Irwin, sua postura se altera. Seus olhos se arregalam e seu desenho aparenta estar incompleto, como se fosse um rascunho. Sua postura se inclina para frente, curvada, perdendo a altivez anterior. A amplitude dos movimentos de suas pernas diminui, seus passos são menores, indicando perda de velocidade.

No último quadro, olheiras profundas indicam o desânimo e depressão que se abateram sobre Howard.
           
            A estrutura vertical descendente escolhida pelo caricaturista contribui na construção dos significados. A verticalização do desenho insinua a presença da hierarquia com seus pressupostos de superior/inferior. O movimento descendente de leitura do desenho insinua a decadência, que culmina no último desenho, onde Howard, com expressão de depressão, parece próximo do “fundo do poço”.

            O autor rompe com a convenção das histórias em quadrinhos de separação em telas retangulares. Os desenhos aparecem sem nenhuma separação, exceto o vazio que os circula. Também não utiliza outra convenção: os balões onde ficam os textos. Isto ressalta ainda mais o vazio da caricatura.

            Todos esses elementos gráficos transmitem com propriedade o clima da caricatura: a absurda pressa em que vivemos, numa absurda corrida desenfreada que não sai do lugar, em busca de lugar algum. Uma corrida sem sentido que conduz à imobilidade aflita, como se, ao mesmo tempo, chicoteássemos e freássemos um cavalo de montaria.

            Nesse clima, o tempo galopa e escapa de nossas mãos. Ficamos aflitos, com medos supersticiosos do que pode nos acontecer. Tomados de pressa e medo, e com a sensação de que estamos ficando para trás, sucateados, acabamos por perder a prudência e a flexibilidade. Entramos em cobiça, “em busca do tempo perdido”, e na voracidade, não fazemos sequer os pequenos atos estratégicos que eram possíveis. Como que em um círculo vicioso, a própria pressa decorrente da vivência que estamos atrasados, acaba por paralisar ainda mais nosso movimento.

            Por três vezes na caricatura, Howard se justifica, com leituras apressadas para as ultrapassagens que sofre. Diz que Murray é uma boa pessoa, e que Lucile faz uso de seu belo rosto, e que, por estes motivos, não vai amargurar-se. Somente quando ultrapassado por Irwin ele se altera. Neste momento Howard poderia ter evitado a justificação lamentadora. Poderia ter entrado em pasmo-surpresa-admiração, parado e perguntado pelo absurdo da situação. Assim poderia se aproximar do conhecimento, sair da inconsciência justificadora e se alterar. Poderia assim perceber o mal em si mesmo, sua inveja, rivalidade, pressa ou medo. Poderia perceber que havia ido longe demais. Mas não. Howard não ficou em silêncio. Entrou em pasmo-temor, interditando o conhecer. E, em seguida, em pasmo-desprezo, caindo novamente em lamentações justificadoras e projetivas. Irwin vira assim uma “má pessoa”, depositário exclusivo do mal que Howard recusa a perceber em si.
           
A caricatura em questão trabalha um paradoxo: desde o início Howard diz que não consegue sair do lugar, “não vai a lugar nenhum”[1]. Mas em nenhum momento ele cogita parar, suspender mesmo que momentaneamente o desespero, tomar consciência do disparate. A situação é absurda, mas não se considera a possibilidade de mudança de direção, ou de fundamento. Howard continua brigando com o tempo, correndo atrás de não se sabe o que, e dissipando suas possibilidades de alteração, como que preso a um destino predeterminado e imutável.

            Para poder sair dessa situação ele teria que parar e pensar. Houve uma chance quando ele entrou em pasmo. Neste momento ele poderia ter recuperado a própria experiência, parado e se perguntado sobre o absurdo de sua situação. Mas ao invés disso ele entrou em pressa de definir logo a situação, sem deixar silêncio ou vazio. Entrou em pasmo-temor-desprezo e, com receio de revelar qualquer mal em si mesmo, caiu em lamentação e rancor, culpando projetivamente Irwin por sua infelicidade.

Semelhante dificuldade teve o piloto Ayrton Senna.

Senna foi eleito recentemente o maior piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de carros.

Sua morte trágica, ocorrida durante a prova de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.

Naquele ano muitas mudanças foram realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.

As queixas de que os carros estavam mais inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão rápidos demais e difíceis de controlar”.

No primeiro dia de treinos Senna ficou transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na aceleração de seu carro e  decola sobre uma zebra da pista, bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta numa tela protetora. Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.

No dia seguinte Senna assistiu pelo monitor dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as equipes de socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito se descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15 minutos.

Após 12 anos sem um acidente fatal na formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de semana Senna também morreria.

A morte de Ratzenberger levou Senna a liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse: “Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.

Pouco antes da corrida, na hora da concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.

Por que Senna mudou de opinião e decidiu correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite já tinha mudado de opinião e decidido correr.

Decisão diferente tomou Emerson Fittipaldi, em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos para a prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos concordou em correr.

Emerson, ameaçado até de exclusão definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas instantaneamente, e deixou muitos feridos.

Neste caso os fatos posteriores deram razão a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de que a prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua decisão.

Ayrton Senna já não era tão moço, tinha então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi a primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas. Rodou na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova seguinte. Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como poderia deixar de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que perdera o arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua vida, que devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.

Alguns desses pensamentos devem ter passado pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma forma ele anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia seguinte. E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.

Sabemos hoje que o principal elemento causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians. Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se acidentou muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na corrida seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se acidentaria com gravidade, ficando muitos dias em coma.

E Senna percebeu os absurdos, tomou a decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de opinião.

Conan Doyle, através de seu famoso personagem Sherlock Holmes, no  romance “A cidade do medo”,  diz de “Um homem que não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um homem que não pode falhar está condenado à pressa e ao medo.  O medo de falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se falho ou errôneo.

Sherlock Holmes seria a antítese deste tipo de homem, uma vez que nas suas historias não se precipita nem se apressa. É um personagem que considera com cuidado a si mesmo e à realidade a sua volta. Trabalha com hipóteses e serenamente espera que a realidade se manifeste por inteiro antes de fechar um raciocínio. Não é desconfiado, mas tem a coragem da prudência. Sua atitude cuidadosa revela a sua humildade. Ele sabe que não sabe tudo.

É possível ultrapassar quem tem esperanças, projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na direção daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe reconhecer o que sabe e o que não sabe?

É muito interessante comparar a etimologia da palavra humildade com a etimologia da palavra humano.

Humildade vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.

          Os dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.

É de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. O ser humano seria assim um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua vida, nunca chegando a estar pronto.

Mas negamos essa condição de humanos aprendizes, e almejando a perfeição - perfeição esta inumana por definição - vivemos numa busca desesperada do sucesso, do não falhar, do chegar, ver e vencer absolutos. E assim vivemos com pressa, medo e desesperança.

Há autores que consideram a saudade como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?

Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.

Temos saudade do passado quando poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá. 

            A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.

            Para nos liberarmos das amarras da pressa, a estereotipia de nossos dias, é preciso parar e pensar. Não temer a tomada de consciência do mal que nos cabe, considerar a própria experiência e ter os olhos abertos para ver a realidade.

           



BIBLIOGRAFIA


CARROLL, Lewis – Através do espelho e o que Alice encontrou lá. – Summus Editorial. São Paulo, 1980.

ROSA, João Guimarães – Sagarana – Editora Record – Rio de Janeiro, 1984.

PRIESTLEY, J. B. – El hombre y el tiempo. Aguilar Ediciones, Madrid, 1964.









[1] O paradoxo de correr desesperadamente sem sair do lugar foi muito bem descrito por Lewis Carroll, em seu livro “Através do espelho e o que Alice encontrou lá”, que transcrevo abaixo:
“... Quase de imediato, não se sabe bem como, puseram-se a correr.
Alice nunca pode saber direito, quando pensou mais tarde, como é que isso tinha começado: tudo que ela se lembrou é que as duas estavam correndo de mãos dadas, e a Rainha era tão veloz que tudo que ela podia fazer era tentar acompanhá-la. Mesmo assim, a Rainha não se cansava de gritar “Mais depressa! Mais depressa!” Alice não podia ir mais depressa, embora mal tivesse fôlego para dizê-lo. (...)
E iam tão velozes que pareciam deslizar pelos ares, quase sem tocar o solo com os pés, até que de súbito, justo quando Alice parecia morrer de cansaço, elas pararam. Alice se viu sentada no chão, aturdida e sem fôlego. (...) Olhou em volta de si muito surpreendida. – Ora essa, acho que ficamos sob essa árvore o tempo todo! Está tudo igualzinho!”