sexta-feira, 31 de agosto de 2012
Clarice Lispector:
Meu Deus, me dê a coragem de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites, todos vazios de Tua presença. Me dê a coragem de considerar esse vazio como uma plenitude. Faça com que eu seja a Tua amante humilde, entrelaçada a Ti em êxtase. Faça com que eu possa falar com este vazio tremendo e receber como resposta o amor materno que nutre e embala. Faça com que eu tenha a coragem de Te amar, sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo. Faça com que a solidão não me destrua.Faça com que a solidão me sirva de companhia. Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar. Faça com que eu saiba ficar com o nada e mesmo assim me sentir como se estivesse plena de tudo. Receba em teus braços o meu pecado de pensar.
ATIVIDADE NEGATIVA:
Atividade
negativa: segundo John Keats: “quando um homem é capaz de estar em incertezas,
mistérios, dúvidas, sem qualquer tentativa irritável de alcançar fato e razão”.
Esquecimento
ENSAIOS DE AMOR,
Alain de Botton
ESQUECER, PG. 212
“Então, inevitavelmente, eu comecei a esquecer.
Poucos meses após romper com ela, descobri-me na área de Londres em que ela
havia vivido e reparei que pensar nela não me causava mais tanta agonia, eu até
notei que meu primeiro pensamento não era para ela (embora aquelas fosse
exatamente suas vizinhanças), mas para o encontro que eu havia marcado com
alguém num restaurante nas proximidades. Percebi que a lembrança de Chloe havia
se neutralizado e se tornado parte da história. Mas a culpa acompanhava esse
esquecimento. Não era mais a ausência dela que me feria, mas a minha crescente
indiferença por ela.”
“Aconteceu uma reconquista gradual do eu, novos
hábitos foram criados e uma identidade desvinculada de Chloe foi erigida. Minha
identidade havia sido por tanto tempo forjada em torno de “nós” que voltar ao
“eu” envolveu uma reinvenção quase completa de mim mesmo. Foi preciso um longo
tempo para que as centenas de associações que Chloe e eu havíamos acumulado
juntos se desvanecessem. Tive que viver com meu sofá por meses antes que a
imagem dela deitada nele de camisola fosse substituída por outra imagem, de um
amigo lendo um livro nele, ou meu casaco jogado sobre ele... tive que revisitar
quase todos os locais físicos, rescrever todos os tópicos de conversação, tocar
de novo cada música e repassar cada atividade que ela e eu havíamos
compartilhado para reconquistá-las para o presente, para desfigurar suas
associações. Mas aos poucos eu me esqueci”.
quinta-feira, 30 de agosto de 2012
DECÁLOGO DA SERENIDADE
(Papa João
XXIII)
Ainda sobre a pressa:
Certo dia, uma amiga me disse um ditado:
Seja voce leão, seja você gazela, Corra!
Eu respondi: Eu não sou um leão, não sou uma gazela, não moro na África.
segunda-feira, 27 de agosto de 2012
E Riobaldo fala da saudade:
(Da série: como Guimarães Rosa pode mudar sua vida, parte 4)
E Riobaldo
fala da saudade pela primeira vez. Estamos na página 49.
“Moço: toda saudade é uma espécie
de velhice.”
E pouco
adiante Diadorim pergunta pelas lembranças que Riobaldo tem de sua mãe:
“Mas Diadorim mais não supriu
o que mais não explicava. E, quem sabe para deduzir da conversa, me perguntou:
– “Riobaldo, se lembra certo da senhora sua mãe? Me conta o jeito de bondade
que era a dela...
Na ação de ouvir, digo ao
senhor, tive um menos gosto, na ação da pergunta. Só faço, que refugo, sempre
quando outro quer direto saber o que é próprio o meu no meu, ah. Mas desci
disso, o minuto, vendo que só mesmo Diadorim era que podia acertar esse tento,
em sua amizade delicadeza. Ao que entendi. Assim devia de ser. Toda mãe vive de
boa, mas cada uma cumpre sua paga prenda singular, que é a dela e dela, diversa
bondade. E eu nunca tinha pensado nessa ordem. Para mim, minha mãe era a minha
mãe, essas coisas. Agora, eu achava. A bondade especial de minha mãe tinha sido
a de amor constando com a justiça, que eu menino precisava. E a de, mesmo no
punir meus demaseios, querer-bem às minhas alegrias. A lembrança dela me
fantasiou, fraseou – só face dum momento – feito grandeza cantável, feito entre
madrugar e manhecer. – “... Pois a minha eu não conheci...” – Diadorim
prosseguiu no dizer. E disse com curteza simples, igual quisesse falar: barra
– beiras – cabeceiras... Fosse cego, de nascença.”
Riobaldo, ao saber que Diadorim
não conhecera a própria mãe lembra-se que ele não conheceu o próprio pai:
“Por mim, o que pensei, foi:
que eu não tive pai; quer dizer isso, pois nem eu nunca soube autorizado o nome
dele. Não me envergonho, por ser de escuro nascimento. Orfão de conhecença e de
papéis legais, é o que a gente vê mais, nestes sertões. Homem viaja, arrancha,
passa: muda de lugar e de mulher, algum filho é o perdurado. Quem é pobre,
pouco se apega, é um giro-ogiro no vago dos gerais, que nem os pássaros de rios
e lagoas. O senhor vê: o Zé-Zim, o melhor meeiro meu aqui, risonho e
habilidoso. Pergunto: – “Zé-Zim, por que é que você não cria galinhas-d’angola,
como todo o mundo faz?” – “Quero criar nada não...” – me deu resposta: – “Eu
gosto muito de mudar...””
Riobaldo se irrita com o
excesso de mudanças de nomes das cidades, ou talvez diríamos que ele se irrita
com o excesso de mudanças da vida.
“Está aí, está com uma mocinha
cabocla em casa, dois filhos dela já tem. Belo um dia, ele tora. É assim.
Ninguém discrepa. Eu, tantas, mesmo digo. Eu dou proteção. Eu, isto é – Deus,
por baixos permeios... Essa não faltou também à minha mãe, quando eu era menino,
no sertãozinho de minha terra – baixo da ponta da Serra das Maravilhas, no
entre essa e a Serra dos Alegres, tapera dum sítio dito do Caramujo, atrás das
fontes do Verde, o Verde que verte no Paracatu. Perto de lá tem vila grande –
que se chamou Alegres – o senhor vá ver. Hoje, mudou de nome, mudaram.
Todos os nomes eles vão alterando. É em senhas. São Romão todo não se
chamou de primeiro Vila Risonha? O Cedro e o Bagre não perderam o
ser? O Tabuleiro-Grande? Como é que podem remover uns nomes assim? O
senhor concorda? Nome de lugar onde alguém já nasceu, devia de estar sagrado.
Lá como quem diz: então alguém havia de renegar o nome de Belém – de
Nosso-Senhor-Jesus-Cristo no presépio, com Nossa Senhora e São José?! Precisava
de se ter mais travação. Senhor sabe: Deus é definitivamente; o demo é o
contrário Dele... Assim é que digo: eu, que o senhor já viu que tenho retentiva
que não falta, recordo tudo da minha meninice. Boa, foi. Me lembro dela com
agrado; mas sem saudade. Porque logo sufusa uma aragem dos acasos.”
Como lidar com a
indeterminação do futuro? O futuro não está pré-determinado. Isso é ao mesmo
tempo nosso céu e nosso inferno, nossa possibilidade de liberdade e nossa fonte
de angústia. Liberdade por que só somos livres porque o futuro está em aberto
diante de nós e o que vai ser feito da nossa vida depende daquilo que formos
escolhendo. Angústia porque diante destas escolhas tememos. Tememos errar,
tememos pecar, tememos escolher e sermos responsabilizados por nossas escolhas.
Ou, nas palavras de Ho Chi Mim:
“Há ainda uma
coisa estranha nesse mundo,
as pessoas
correm para prender suas pernas em grilhões.
Uma vez
acorrentadas, podem dormir em paz.
De outra
maneira elas não teriam onde descansar a cabeça.”
Diria
Hanna Arendt que o recurso diante da imprevisibilidade da ação, da caótica
incerteza do futuro, está na capacidade de prometer e cumprir promessas. Esta
capacidade teria uma função estabilizadora, possibilitando criar ilhas de
segurança no futuro que é um oceano de incertezas.
E Riobaldo volta a falar da
saudade:
“Para trás, não há paz. O
senhor sabe: a coisa mais alonjada de minha primeira meninice, que eu acho na
memória, foi o ódio, que eu tive de um homem chamado Gramacedo... Gente melhor
do lugar eram todos dessa família Guedes, Jidião Guedes; quando saíram de lá,
nos trouxeram junto, minha mãe e eu. Ficamos existindo em território baixio da
Sirga, da outra banda, ali onde o de-Janeiro vai no São Francisco, o senhor
sabe. Eu estava com uns treze ou quatorze anos...”(pg 52)
A saudade
traz em si um vazio, algo que se interrompeu e que não poderia ter sido
interrompido, um vazio sem descanso... “Para trás, não há paz”. Um vazio tenso,
ansioso, desesperado, tal como a descrição que Álvaro Andrade Garcia faz do
quadro “A saudade”, de Nello Nuno:
“O quadro era quase todo uma mancha verde. Vários
tons dessa cor, sobrepostos com vigorosas pinceladas, formavam uma gradação que
partia da cor mais escura embaixo à mais clara na parte superior da tela. Dessa
forma os planos ficavam aparentemente confusos. Mas a impressão que se tinha
era de que o primeiro plano continuava por algo que seria uma janela, dando
para montanhas ao fundo. Algumas pinceladas brancas, em forma de retângulos e
triângulos, pareciam indicar uma cidade no canto superior esquerdo. Atrás dela,
uma porção verde-oliva: as montanhas. No canto superior direito, o verde escuro
das porções inferiores dava a impressão de haver algo tenso, inexplicável. Nas
proximidades dessa mancha, um velocípede e uma planta davam um ar de
familiaridade à cena. Finalmente, algumas pinceladas vermelhas no centro da
tela, um pouco à esquerda, formavam algo entre uma grade e as chamas de uma
fogueira. Reunindo o branco e o vermelho, em proporções mínimas, diluídos no
verde, o artista conseguiu transmitir uma estranha sensação de leveza. Ao mesmo
tempo, detalhes como uma fissura ao longo do centro de gravidade da cena ou o
imobilismo do velocípede remetiam o observador atento a um estado de
primitivismo e até mesmo de ausência.”
Cito
aqui um trecho que escrevi sobre a saudade, num escrito que fiz sobre a pressa:
“Há autores que consideram a saudade como sendo
decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação no passado,
pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse contexto a
pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do futuro?
Assim como a nostalgia é a saudade do passado, a
ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.
Temos saudade do passado quando poderíamos ter feito algo
naquele tempo, e era muito importante que ao menos tentássemos, mas não o
fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do futuro, por seu lado,
seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer chegar ao sucesso futuro
antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a vontade de certeza
absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa, e acabamos
aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de conseguir certeza
sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de forma provisória,
descolados do presente, descolados do que seria possível que fizéssemos já,
descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada pequeno passo
que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e confiança, no desejo
de se preparar para o futuro que virá.
A nostalgia, a saudade do passado, teria assim um vazio
em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A pressa, a saudade do
futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o seu presente, pois
está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem constrói o seu futuro,
pois se precipita na pressa e no imediatismo.”
Tenho uma
irmã, muito querida, que por sua vez tinha uma melhor amiga que considero ter
sido, certamente, uma das pessoas que ela mais amou na vida. Certo dia,
conversando comigo e com minha esposa, minha irmã contou que sua amiga estava medicada com anti-depressivos para tratar de uma enxaqueca. Dissemos que esse
tratamento era usual. E ela completou que a amiga também
tivera uma paralisia em uma das pernas. Aí ponderamos que seria melhor que ela
fizesse uma ressonância ou uma tomografia do crânio, que este sintoma estava
fora do esperado para enxaquecas e poderia revelar outros problemas.
A amiga
adiou por uns quinze dias esse exame. Estava com medo. Um tempo antes um amigo
jogara o taro para ela e, nesta ocasião, por duas vezes sucessivas, saíra a carta da
morte. O amigo a tranquilizou, dizendo que isto era simbólico, não literal, e
que indicava que ela teria que passar por uma importante provação.
Mas, com
receios ela adiou o exame por uns 15 dias. Quando finalmente o fez, descobriu
um perigoso aneurisma, com risco de rompimento. Mas foi preciso adiar alguns dias
a necessária cirurgia para melhorar um resultado alterado nos exames
pré-cirúrgicos. Um ou dois dias depois o aneurisma arrebentou e ela faleceu.
Fiquei
muito preocupado com minha irmã. Já tínhamos perdido o pai – ela tinha 6 anos
na época – e agora essa morte repentina. Passei a ligar para ela algumas vezes
por dia para ter notícias. Três ou quatro dias depois liguei e perguntei
como ela estava. Ela disse:
-
Agradecendo.
Eu não
entendi. E retruquei:
-
Agradecendo o que?
-
Agradecendo a Deus. Por ter me dado 10 anos com Dodora. Eu poderia não te-la
conhecido. E foi tão bom ter sido amiga dela. Ela me ajudou tanto. E sei que eu
também ajudei tanto a ela. Deus é muito bom. Me deu uma amizade tão bonita pra
viver...
- Gabi –
respondi – você está me dizendo uma coisa muito importante. Pela
primeira vez, hoje a noite, vou agradecer a Deus os 10 anos que ele me deu com
nosso pai. Sempre xinguei os 60 anos que ele me teria roubado. Tenho tanto
dele, mesmo me lembrando tão pouco dele... pela primeira vez vou agradecer a
graça de ter convivido com ele por tanto tempo... Ah! Tem mais uma coisa: não
te ligo mais não tá? Se você precisar, você me liga...
A diferença entre saudade e lembrança é que se a saudade tem um vazio irrecuperável, a lembrança se alimenta da convivência verdadeira e plena que houve. Brincamos entre as duas, hora tendendo mais a uma, hora a outra. Parece-me
que minha irmã viveu tão por inteiro as experiências que teve com essa amiga,
elas conviveram tão plenamente, que ficaram muito mais lembranças do que
saudades, muitos mais sentidos do que vazios dolorosos. O amor é farto, faz-se
presença e nutre. Mesmo depois da morte da amiga o amor ainda a preenchia,
fazendo-a plena de sentido.
Nesse
sentido, de modo diverso ao dito por Riobaldo, é possível ter paz no “para
trás”.
Tagore
“Tu me fizeste conhecido de amigos que eu não
conhecia.
Tu
me deste lugares em casas que não eram a minha.
Tu
trouxeste para perto o que estava longe e do estrangeiro fizeste meu irmão.
Sofre
meu coração quando tenho que deixar meu refúgio habitual; eu me esqueço de que
aí, o que é velho habita o que é novo e que aí tu habitas também.
Pelo
nascimento e pela morte neste ou em outros mundos, onde quer que me conduzas,
és tu o mesmo, o companheiro único de minha vida sem fim, que com laços de
alegria sempre une ao alheio o meu coração.”
”Por
todos os meios procuram ter-me preso os que me amam neste mundo. Mas tal não se
dá com teu amor, que é maior que o deles, pois tu me deixas livre.
Com
medo que eu os esqueça nunca se atrevem a me deixar sozinho. No entanto,
passam-se dias e dias e tu não apareces.
Mesmo
que eu não te evoque em minhas preces, mesmo que eu não te leve em meu coração,
teu amor por mim espera assim mesmo o meu amor”.
SEMMELWEISS - A vida e obra de, companhia das letras, 1998.
Formado
em 1844 se interessou pela alta incidência de febre puerperal em pacientes de
médicos e estudantes de medicina, quando comparado às mães que tinham seus
filhos com as parteiras do hospital. Suspeitou que isso se devesse ao fato dos
médicos e estudantes de medicina irem, por vezes, direto da lida com cadáveres
para a sala do parto. Os médicos, que acreditavam ser impossível o contágio por
manipulação de cadáveres - pois a morte era o fim de todo e qualquer manifestação
de vida do paciente e, portanto não havia o que transmitir - e julgaram sua
hipótese estúpida. Para eles a febre se originava do próprio corpo da paciente,
e os esforços de cura eram inúteis. O Doutor insistiu, mandou instalar pias e
exigiu que todos se higienizassem antes do parto. Apesar dos impressionantes
resultados - queda de 18% para 1,2% de contaminação - os médicos e estudantes,
injuriados, resistiram e por fim foram liberados pela direção do hospital de
realizar a higienização. Com alguns profissionais o procedimento não mostrava
tantos resultados positivos... Talvez estes não tomassem realmente as
precauções recomendadas... O Doutor foi perseguido, e apesar do sucesso das
poucas experiências que conseguiu realizar, não obteve reconhecimento. Em 1858
apresentou sua tese na academia de medicina de Paris, que foi rejeitada. Foi
dado como louco e internado. Ao sair da internação, invade o anfiteatro da
faculdade, vai até o cadáver que estava sendo dissecado, fura-o num ponto
infeccioso com o bisturi e corta-se. Morre três dias depois, aos 47 anos.
Segundo
a versão de Celine, o corte foi acidental, num momento de loucura, e o suplício
da morte demorou três semanas, e neste período é que ele foi internado em um
hospício.
Celine
diz ainda que Semmelveis tinha um gênio irascível,
Diz
que seus dois mestres e melhores amigos “procurando apoiá-lo, aconselhá-lo,
várias vezes tentaram moderar seus arroubos impetuosos, convencê-lo da
inutilidade de suas insolências, de suas intermináveis polemicas com
contraditores de má fé”. “Durante os anos de impiedosas provações, quando a
malta dos inimigos uivou seu ódio a Semmelweis acuado, banido, seus dois
mestres envelhecidos e, no entanto cansados de lutas pessoais ainda se unirão
para defendê-lo. Skoda sabia manejar os homens, Semmelweis queria quebrá-los.
Não se quebra ninguém. Quis arrombar todas as portas rebeldes, feriu-se
cruelmente. Elas só se abririam após a sua morte”.
“Em
nome da verdade devemos assinalar um grande defeito de Semmelweis: o de ser
brutal em tudo e, em especial, consigo mesmo.” pg. 67.
quinta-feira, 23 de agosto de 2012
Madrugada com medo
- Nello... Nello..., acorda...
- Hum...?
- Acorda...
- Huummm... que foi?
- João acordou, já tem meia hora, e não tá conseguindo dormir. Já
tentei de tudo para acalmá-lo mas ele não consegue dormir... diz que tá com
medo de você ter morrido...
Era minha esposa cochichando em meu ouvido.
Estávamos todos dormindo no mesmo quarto, na casa de praia
da minha mãe, eu, minha esposa, meu menino de 7 anos e minha menina de 5. Tínhamos
escolhido o quarto maior, dado uma boa limpeza nele e nos acomodado lá. Deviam ser umas duas horas da madrugada.
- Medo de eu ter morrido!?
Perdi meu pai quando eu tinha 10 anos. Tentei nunca pesar
muito essa historia lá em casa para não impressionar os meninos. O pai de minha mãe separou-se, foi embora e não mais voltou. De onde João agora vinha com isso? Certos assuntos parecem mesmo permear certas famílias. Parecem
ser temas que serão sempre abordados nas histórias dessas pessoas... meu filho
com medo que eu morra, ou que eu tenha morrido! Do nada!
- João, você tá acordado?
- Papai, você está aí?
Sua voz estava chorosa...
- Estou João. Você acordou e não está conseguindo dormir de
novo?
- Eu tava com medo de você ter morrido...
- João, eu to aqui, eu não morri...
- Mas eu to com medo papai...
- João, você está sentado na sua cama?
- To.
- Então deita, meu filho... já deitou?
- Já.
- Agora feche os olhos... já fechou?
- Já.
- João, agora você vai imaginar, de olhos fechados, uma foto.
Nessa foto estamos eu, você, mamãe e sua irmã... os quatro... abraçados... nós
estamos abraçados e sorrindo, todo mundo juntinho... você está imaginando?
- To sim, papai...
- João, nós somos uma família.
Nós sempre vamos estar juntos. Agora você é pequeno e papai te ajuda mais, mas você
também me ajuda muito quando eu preciso. Quando papai estiver velhinho você vai
ajudar ainda mais... Mamãe sempre te ajuda quando você precisa e você também a
ela. Você ajuda sua irma e ela a você, e nós a ela e ela também a nós... somos
uma família, João. Estamos juntos, nos amamos e contamos uns com os outros... Eu
sempre vou estar com você. Mamãe e sua irmã também... você nunca vai ficar
sozinho... você entendeu? ... Você está me ouvindo?... João...?
Tinha dormido...
SOBRE A PRESSA - Nello de Moura Rangel Neto
"Só
agora estou sadio, e era doente, porque meu tempo
galopava
e afligia-me o medo do que viria."
A
condição poética - Czeslaw
Milosz
"Eu tenho pressa, tanta coisa me interessa, mas nada tanto assim..."
Kid Abelha
Assim como
a nostalgia é a saudade do passado, a ansiedade é a saudade do presente e a
pressa é a saudade do futuro.
Nello Rangel
Um homem ganhou um carro
no bingo da igreja. Ao ir receber o seu prêmio não conseguiu achar a ignição.
“Onde é que se liga?” “Esse automóvel não precisa de chave. Ele é especial.
Funciona somente com palavras”.“E como é que se dá a partida?” perguntou
aflito. “É só dizer: graças a Deus”.“Graças a Deus!”, exclamou.
E foi embora. Pegou a
estrada e acelerou. “Graças a Deus! Graças a Deus! Graças a Deus!” E aí, no
máximo da velocidade, viu passar a placa: “Perigo, ponte caída”. Percebendo o
enorme precipício que se aproximava, exclamou: “Ich, me esqueci de perguntar
como se freia essa coisa!” Quando já estava quase despencando, já no auge do
desespero, gritou: “Ai, minha Nossa Senhora!!!”
SSSCRIIIINCH!!!! E o
carro parou imediatamente, dependurado na beirada do abismo. Ao que ele
exclamou, aliviado: “Graças a Deus....”
Anedota popular
Festinatio tarda est (A pressa mais
atrasa do que adianta).
Aforismo latino
“Pior, pior... Começamos
a olhar o medo... o medo grande... e a pressa... O medo é uma pressa que vem
de todos os lados, uma pressa sem caminho...”
João Guimarães Rosa, in Sagarana
A nós , nos cabe andar.
Mas o tempo, os seus passos,
são mínimos pedaços
do que há de ficar.
É perda pura
tudo o que é pressa;
só nos interessa
o que sempre dura.
Jovem, não há virtude
na velocidade
e no voo aonde for.
Tudo é quietude:
escuro e claridade,
livro e flor.
Rainer Maria Rilke: "A nós, nos cabe andar" trad. Augusto de Campos
Parafraseando João Guimarães Rosa, que disse "Toda saudade é uma espécie de velhice", afirmamos aqui, sem medo de errar:
Toda pressa é uma espécie de velhice.
Vivemos em uma época de muita pressa.
Temos a impressão de que tudo à nossa volta acontece muito rapidamente.
Novidades surgem a todo momento, novas tecnologias, novos aparelhos, novas
necessidades que antes nem imaginávamos possuir.
Nesse mundo apressado ou nos sentimos
imobilizados, na melhor hipótese, ou ficando para trás, na pior hipótese. Temos
uma permanente sensação de desatualização e sucateamento. Essa sensação por
vezes nos paralisa, quando quedamos desesperançosos de conseguir mudar a
situação. Por vezes nos lança em extrema pressa e agitação, o que acaba por nos
deixar precipitados e irreflexivos, e, por isso mesmo, mais adiante restaremos
igualmente paralisados por nossas precipitações.
Diz um ditado: “Seja você leão, seja você
gazela, corra!”. Ouvimos esse ditado, nas suas mais diversas formas, todos os
dias. E saímos correndo. Só lá muito adiante, e se tivermos sorte, é que
lembramos: “Ora, eu não sou leão, nem sou gazela, nem ao menos moro na África,
o que estou fazendo aqui, correndo como um desesperado?”
Ao consultar um dicionário
vemos que a palavra pressa remete a falta de calma, precipitação, afobação,
urgência. Sua origem é o vocábulo latino préssus, que significa
apertado, imprensado.
O desenho de caricatura de Howard
(fig. 1), de autoria de J. B. Priestley ironiza algumas dessas situações,
próprias de nossos dias: a pressa constante; a corrida desenfreada, sem rumo e
nem sentido; a rivalidade hierárquica; os mecanismos justificadores que
dificultam o processo de tomada de consciência.
fig.
1
Como caricatura, o trabalho de
Priestley tem uma linguagem própria. Alguns aspectos dessa linguagem merecem
ser ressaltados.
O primeiro desenho retrata Howard,
que diz: “Estou correndo, mas não vou a nenhuma parte”.Esta afirmação inicial
encontra-se ressaltada por alguns elementos gráficos presentes na caricatura.
Howard é o único personagem que tem
sombra. Isso ressalta a sensação de que ele não sai do lugar. Também é o único
personagem que não tem traços cinestésicos, que indicam movimento (sugerindo
que a passagem do personagem deixou uma mancha para trás, tamanha sua rapidez).
Esta falta de indicativos de movimento, somada à presença de sombra e às posições
dos braços e pernas de Howard - que indicam uma corrida - transmitem com
perfeição a sensação de que ele realmente está correndo, mas não sai do lugar.
A presença dos traços cinestésicos
nos outros personagens - Murray, Lucille e Irwin - indicam que eles passam
velozmente por Howard. Os traços cinestésicos mais fortes e ao mesmo tempo mais
finos, são de Irwin. Isto realça a impressão de que ele é o mais veloz. O
desenho de seu corpo chega a ser aerodinâmico sugerindo a forma de uma bala, o
que induz à percepção de uma velocidade ainda maior.
A postura de Howard é inicialmente
altiva: costas retas, corpo “empinado”, braços e pernas em posição de resoluta
corrida. Quando ele é ultrapassado por Irwin, sua postura se altera. Seus olhos
se arregalam e seu desenho aparenta estar incompleto, como se fosse um
rascunho. Sua postura se inclina para frente, curvada, perdendo a altivez
anterior. A amplitude dos movimentos de suas pernas diminui, seus passos são
menores, indicando perda de velocidade.
No último quadro, olheiras profundas
indicam o desânimo e depressão que se abateram sobre Howard.
A
estrutura vertical descendente escolhida pelo caricaturista contribui na
construção dos significados. A verticalização do desenho insinua a presença da
hierarquia com seus pressupostos de superior/inferior. O movimento descendente
de leitura do desenho insinua a decadência, que culmina no último desenho, onde
Howard, com expressão de depressão, parece próximo do “fundo do poço”.
O autor rompe com a convenção das
histórias em quadrinhos de separação em telas retangulares. Os desenhos
aparecem sem nenhuma separação, exceto o vazio que os circula. Também não
utiliza outra convenção: os balões onde ficam os textos. Isto ressalta ainda
mais o vazio da caricatura.
Todos esses elementos gráficos
transmitem com propriedade o clima da caricatura: a absurda pressa em que
vivemos, numa absurda corrida desenfreada que não sai do lugar, em busca de
lugar algum. Uma corrida sem sentido que conduz à imobilidade aflita, como se,
ao mesmo tempo, chicoteássemos e freássemos um cavalo de montaria.
Nesse clima, o tempo galopa e escapa
de nossas mãos. Ficamos aflitos, com medos supersticiosos do que pode nos
acontecer. Tomados de pressa e medo, e com a sensação de que estamos ficando
para trás, sucateados, acabamos por perder a prudência e a flexibilidade.
Entramos em cobiça, “em busca do tempo perdido”, e na voracidade, não fazemos
sequer os pequenos atos estratégicos que eram possíveis. Como que em um círculo
vicioso, a própria pressa decorrente da vivência que estamos atrasados, acaba
por paralisar ainda mais nosso movimento.
Por três vezes na caricatura, Howard
se justifica, com leituras apressadas para as ultrapassagens que sofre. Diz que
Murray é uma boa pessoa, e que Lucile faz uso de seu belo rosto, e que, por
estes motivos, não vai amargurar-se. Somente quando ultrapassado por Irwin ele
se altera. Neste momento Howard poderia ter evitado a justificação lamentadora.
Poderia ter entrado em pasmo-surpresa-admiração, parado e perguntado pelo
absurdo da situação. Assim poderia se aproximar do conhecimento, sair da
inconsciência justificadora e se alterar. Poderia assim perceber o mal em si
mesmo, sua inveja, rivalidade, pressa ou medo. Poderia perceber que havia ido
longe demais. Mas não. Howard não ficou em silêncio. Entrou em pasmo-temor,
interditando o conhecer. E, em seguida, em pasmo-desprezo, caindo novamente em
lamentações justificadoras e projetivas. Irwin vira assim uma “má pessoa”,
depositário exclusivo do mal que Howard recusa a perceber em si.
A caricatura em questão trabalha um
paradoxo: desde o início Howard diz que não consegue sair do lugar, “não vai a
lugar nenhum”[1]. Mas em
nenhum momento ele cogita parar, suspender mesmo que momentaneamente o
desespero, tomar consciência do disparate. A situação é absurda, mas não se
considera a possibilidade de mudança de direção, ou de fundamento. Howard
continua brigando com o tempo, correndo atrás de não se sabe o que, e
dissipando suas possibilidades de alteração, como que preso a um destino
predeterminado e imutável.
Para poder sair dessa situação ele
teria que parar e pensar. Houve uma chance quando ele entrou em pasmo. Neste
momento ele poderia ter recuperado a própria experiência, parado e se
perguntado sobre o absurdo de sua situação. Mas ao invés disso ele entrou em
pressa de definir logo a situação, sem deixar silêncio ou vazio. Entrou em
pasmo-temor-desprezo e, com receio de revelar qualquer mal em si mesmo, caiu em
lamentação e rancor, culpando projetivamente Irwin por sua infelicidade.
Semelhante dificuldade teve o piloto
Ayrton Senna.
Senna foi eleito recentemente o maior
piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo
sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua
qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de
carros.
Sua morte trágica, ocorrida durante a
prova de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.
Naquele ano muitas mudanças foram
realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que
no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a
suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos
veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos
das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de
ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o
recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados
na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses
que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.
As queixas de que os carros estavam
mais inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O
próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão
rápidos demais e difíceis de controlar”.
No primeiro dia de treinos Senna ficou
transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo
primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na
aceleração de seu carro e decola sobre
uma zebra da pista, bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta
numa tela protetora. Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.
No dia seguinte Senna assistiu pelo
monitor dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as
equipes de socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito
se descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15
minutos.
Após 12 anos sem um acidente fatal na
formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de
semana Senna também morreria.
A morte de Ratzenberger levou Senna a
liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao
falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto
austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais
tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse:
“Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.
Pouco antes da corrida, na hora da
concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum
chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.
Por que Senna mudou de opinião e decidiu
correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para
julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a
comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que
ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite
já tinha mudado de opinião e decidido correr.
Decisão diferente tomou Emerson
Fittipaldi, em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos
para a prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram
sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente
instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As
pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram
imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos
concordou em correr.
Emerson, ameaçado até de exclusão
definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e
não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas
instantaneamente, e deixou muitos feridos.
Neste caso os fatos posteriores deram
razão a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de
que a prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto
covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser
jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua
decisão.
Ayrton Senna já não era tão moço,
tinha então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi
a primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas.
Rodou na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova
seguinte. Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como
poderia deixar de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que
perdera o arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua
vida, que devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.
Alguns desses pensamentos devem ter
passado pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma
forma ele anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia
seguinte. E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.
Sabemos hoje que o principal elemento
causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians.
Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse
ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de
risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado
primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe
lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se acidentou
muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na corrida
seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se acidentaria
com gravidade, ficando muitos dias em coma.
E Senna percebeu os absurdos, tomou a
decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de
opinião.
Conan Doyle, através de seu famoso
personagem Sherlock Holmes, no romance
“A cidade do medo”, diz de “Um homem que
não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve
dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um homem que não
pode falhar está condenado à pressa e ao medo.
O medo de falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se
falho ou errôneo.
Sherlock Holmes seria a antítese deste
tipo de homem, uma vez que nas suas historias não se precipita nem se apressa.
É um personagem que considera com cuidado a si mesmo e à realidade a sua volta.
Trabalha com hipóteses e serenamente espera que a realidade se manifeste por
inteiro antes de fechar um raciocínio. Não é desconfiado, mas tem a coragem da
prudência. Sua atitude cuidadosa revela a sua humildade. Ele sabe que não sabe
tudo.
É possível ultrapassar quem tem
esperanças, projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na
direção daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe
reconhecer o que sabe e o que não sabe?
É muito interessante comparar a
etimologia da palavra humildade com a etimologia da palavra humano.
Humildade vem do latim humilìtas,átis
, que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra
latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do
homem.
Os dois vocábulos têm em comum o
prefixo HUM, do latim húmus,
significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra,
não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo
próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição
primeiro aos deuses, depois aos outros seres.
É de se notar que as duas palavras,
humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso
sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em
virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos
até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se
próximo do chão, o saber-se finito e limitado. O ser humano seria assim um ser
de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua
vida, nunca chegando a estar pronto.
Mas negamos essa condição de humanos
aprendizes, e almejando a perfeição - perfeição esta inumana por definição -
vivemos numa busca desesperada do sucesso, do não falhar, do chegar, ver e
vencer absolutos. E assim vivemos com pressa, medo e desesperança.
Há autores que consideram a saudade
como sendo decorrente de projetos vitais interrompidos, um tipo de paralisação
no passado, pela não realização de algo que era vital para o sujeito. Nesse
contexto a pressa não seria um tipo de saudade prospectiva, uma saudade do
futuro?
Assim como a nostalgia é a saudade do
passado, a ansiedade é a saudade do presente e a pressa é a saudade do futuro.
Temos saudade do passado quando
poderíamos ter feito algo naquele tempo, e era muito importante que ao menos
tentássemos, mas não o fizemos e então paralisamos, nostálgicos. Ter saudade do
futuro, por seu lado, seria decorrente da pressa, do imediatismo de querer
chegar ao sucesso futuro antes mesmo que o futuro chegue. O medo de falhar e a
vontade de certeza absoluta diante do futuro nos jogam em um estado de pressa,
e acabamos aprisionados no futuro, pensando sempre no futuro no afã de
conseguir certeza sobre a realização de nossos projetos. E acabamos vivendo de
forma provisória, descolados do presente, descolados do que seria possível que
fizéssemos já, descolados daquilo que já está ao alcance da nossa mão, de cada
pequeno passo que poderíamos dar na nossa auto-construção, com calma e
confiança, no desejo de se preparar para o futuro que virá.
A nostalgia, a saudade do passado,
teria assim um vazio em si, daquilo que poderia ter sido e que não foi. A
pressa, a saudade do futuro, teria o vazio da ansiedade, daquele que nem vive o
seu presente, pois está em aflito e paralisado pelo medo do que virá, nem
constrói o seu futuro, pois se precipita na pressa e no imediatismo.
Para nos liberarmos das amarras da
pressa, a estereotipia de nossos dias, é preciso parar e pensar. Não temer a
tomada de consciência do mal que nos cabe, considerar a própria experiência e
ter os olhos abertos para ver a realidade.
BIBLIOGRAFIA
CARROLL, Lewis – Através do espelho
e o que Alice encontrou lá. – Summus Editorial. São Paulo, 1980.
ROSA, João Guimarães – Sagarana
– Editora Record – Rio de Janeiro, 1984.
PRIESTLEY, J. B. – El hombre y el tiempo. Aguilar Ediciones,
Madrid, 1964.
[1]
O paradoxo de correr desesperadamente sem sair do lugar foi muito bem descrito
por Lewis Carroll, em seu livro “Através do espelho e o que Alice encontrou
lá”, que transcrevo abaixo:
“... Quase de imediato, não
se sabe bem como, puseram-se a correr.
Alice nunca pode saber
direito, quando pensou mais tarde, como é que isso tinha começado: tudo que ela
se lembrou é que as duas estavam correndo de mãos dadas, e a Rainha era tão
veloz que tudo que ela podia fazer era tentar acompanhá-la. Mesmo assim, a
Rainha não se cansava de gritar “Mais depressa! Mais depressa!” Alice não podia
ir mais depressa, embora mal tivesse fôlego para dizê-lo. (...)
E iam tão velozes
que pareciam deslizar pelos ares, quase sem tocar o solo com os pés, até que de
súbito, justo quando Alice parecia morrer de cansaço, elas pararam. Alice se
viu sentada no chão, aturdida e sem fôlego. (...) Olhou em volta de si muito
surpreendida. – Ora essa, acho que ficamos sob essa árvore o tempo todo! Está
tudo igualzinho!”
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