terça-feira, 7 de agosto de 2012

A GOVERNANÇA CORPORATIVA E A NOÇÃO DE PESSOA




Com o desenvolvimento do capitalismo e o agigantamento das corporações, ocorreu uma dispersão do capital de controle das empresas, a qual resultou numa fragmentação da propriedade. Isto tudo desembocou no divórcio entre a propriedade e a gestão: os proprietários-acionistas não mais dirigem as empresas. Estas são geridas por executivos contratados. A pulverização do capital associada à separação entre a propriedade e a gestão resultou em conflitos de interesses entre as partes. A governança corporativa se desenvolve então como uma forma de se administrar esses conflitos. E o faz principalmente estabelecendo formas de conduta e de controle, regras para o relacionamento entre as partes e sistemas de registro e fidedignidade das informações.

O interesse pelo assunto governança corporativa ressaltou-se a partir de 2001, particularmente em função dos colapsos de grandes corporações, o que gerou grande desconfiança no mercado. No ano seguinte, o governo federal norte-americano, interessado em tentar restaurar a confiança no modo como as empresas eram administradas, aprovou a lei Sarbannes-Oxley, que estabelecia normas mais rígidas de administração, na tentativa de minimizar os escândalos e as fraudes e maximinizar a boa governança e a prática ética dos negócios.

A governança corporativa se fundamenta, segundo Andrade e Rossetti[1], nos seguintes valores:  Fairness, ou senso de justiça, equidade (considerado em relação ao tratamento dado aos acionistas); Disclosure, ou transparência (das informações, especialmente das de alta relevância); Accountability, ou prestação responsável de contas; e por fim Compiliance, ou conformidade (com as normas e leis).

Neste livro diz-se que esses valores são “das mais importantes dimensões da governança corporativa: os valores lhe dão sustentação, amarrando concepções, práticas e processos de alta gestão”.   

O conceito de valor é por demais complexo. Tem múltiplos significados se avaliado do ponto de vista da economia, da sociologia ou até da teoria do valor. Quando consultamos o dicionário Houaiss encontramos 25 sentidos diferentes para a palavra valor, fora outros tantos conceitos relacionados. Entre os vários significados parece evidente que os autores em questão se referem a um significado específico quando dizem dos valores fundantes da governança corporativa, a dizer, o conjunto de princípios ou normas que regem esta atividade. É importante ressaltar que este enfoque do conceito de valor remeta a uma ética, ou seja, a valores e princípios que orientam a ação humana.

Retornando à axiologia de valores da governança corporativa proposta acima observamos que esta se mostra basicamente instrumental, voltada para fins práticos, e por isso mesmo, pouco valorativa ou axiológica de fato, ou seja, pouco voltada para um sistema de valores que se orientem em direção a convivência, a comunicação humana, a relação entre pessoa-pessoa, sujeito-sujeito.

Equidade no tratamento aos acionistas, transparências nas informações de relevância estratégica, responsabilidade na prestação das contas e conformidade com as normas e leis em questão não são bem um sistema de valores, orientados para a convivência humana, mas antes um sistema de práticas que objetivam um maior controle e manipulação do mundo das coisas.

Há uma forma de contradição ao se propor uma axiologia – um sistema de valores – baseada numa razão instrumental. A razão instrumental se orienta para o êxito, para a manipulação da realidade e não para o entendimento comunicativo. Um sistema de valores diz respeito a normas de convivência. Conviver diz respeito a interação entre sujeitos, a interação comunicativa entre pessoas que buscam o entendimento ( o que, entenda-se,  é diverso de se buscar a concordância).

Os autores citam ainda a “síntese das diversas dimensões da governança corporativa”, Também denominada de “os sete P´s”: propriedade, princípios, propósitos, poder, processos, práticas e perenidade.

A propriedade é definida como um atributo fundamental e diferenciador. Pode ser familiar, consorciada, estatal ou anônima. Pode ser fechada ou aberta, concentrada ou pulverizada. E estas variadas formas de organização direcionam a prática da governança corporativa.

Os princípios são exatamente os referidos valores, citados anteriormente. São tratados como a base ética da governança.

Os propósitos são a maximização do retorno total dos investimentos dos acionistas e a harmonização do retorno daqueles com os interesses de outros grupos relevantes (executivos, funcionários, públicos interno e externo da empresa). E juntando os dois itens anteriores alcançar a chamada  maximização iluminada do valor.

O poder diz respeito a constituição da estrutura de poder da empresa. Quais são as prerrogativa dos proprietários, quais as funções e responsabilidades dos conselhos e da direção. Se diz desejável que decisões de alto impacto sejam de decisão compartilhada. Aqui também cabe o planejamento das sucessões.

Processos se relaciona á constituição de órgãos de governança, a formulação, homologação e monitoramento de estratégias, operações e resultados e a instituição de um sistema de controle de riscos internos e externos.

Práticas trata da gestão do que se denomina conflitos de agencia (gestores versus acionistas), minimização de custos deste gerenciamento e ainda gestão de relacionamentos internos e externos.

Perenidade diz da continuidade no tempo, objetivo ultimo da quase totalidade das organizações. É fortemente associável a gestão eficaz de riscos empresariais, a criação de valor para os acionistas e a conciliação dos interesses dos destes com os de outros grupos de interesse.

Cabe observar que o P de princípios diz fundar a ética da governança corporativa. Mas, como dito anteriormente, aqui se apresenta uma ética instrumental (se é que podemos realmente chamar isto de ética), e não uma ética valorativa e relacional. A interação sujeito-sujeito não é o foco desta suposta ética.

Com a eclosão da bolha imobiliária norte-americana, em agosto de 2008, e com a decorrente crise mundial que veio em seguida, afetando profundamente empresas e países, questionamentos sobre a gestão das empresas e riquezas mundiais se intensificaram. A tentativa de se estabelecer regras e controles mais rígidos para a gestão corporativa, que vinha se desenvolvendo particularmente a partir do início do milênio, se mostrou infrutífera e insuficiente. Novas praticas e normas são discutidas e propostas. Particularmente relevante se torna a questão da sustentabilidade, uma vez que o modelo econômico e empresarial se mostra mais do que incompetente para evitar crises tão profundas, haja visto que este mesmo modelo é apontado como uma das próprias causas da crise. Busca-se então um aprimoramento das ferramentas de gestão e planejamento estratégico de forma a incorporar critérios sócio-ambientas e de sustentabilidade na governança corporativa. 

Com  a 3ª Conferência Global de Sustentabilidade e Transparência, da Global Reporting Inifave, 3 “erres” vem se juntar aos 7 “P´s” da governança corporativa. Repense seus princípios pois o consumo de recursos naturais já ultrapassou os limites do planeta; Refaça suas práticas, pois com a consciência da crise podemos agora reconduzir a economia na direção de práticas sustentáveis agregadoras de valor; e Relate sua experiência, pois a sistematização destas experiências podem ser uma eficaz ferramenta de mudança, na qual tanto os negócios como as pessoas possam ser beneficiados.

É de se destacar, entre os “P´s” da governança coorporativa citados anteriormente, a ausência de um “P” essencial, atualmente considerado fundamental aos processos de gestão empresarial: o “P” de pessoa.

Quem trabalha, dirige, gere, lucra, interage, inova, negocia, e tantas outras ações mais, nas empresas? Onde está a pessoa, esse ser-sujeito oculto nos balanços e na fragmentação do controle acionário? Apesar de difícil de se enxergar, em algum lugar ele deveria estar.

É moda na administração moderna pelo menos aparentar que as pessoas são consideradas. Por isso mesmo é curioso que nos sete “P”s da governança corporativa o “P” de pessoa nem se insinue. Dentro deste contexto fica mais claro o porque da ética da governança corporativa se apresentar tão instrumental e tão pouco relacional, tão prática e tão pouco valorativa, tão monológica e tão pouco dialógica.



A governança corporativa se propõe ser uma política de negociação de interesses divergentes, entre os diversos atores envolvidos. Mas, em virtude da desconsideração da noção de pessoa com um de seus fundamentos, acaba por se tornar uma política baseada na disputa por poder, na qual não se busca verdadeiramente a dialogia entre as partes, nem se considera possível a concórdia de interesses plurais. A negociação de interesses divergentes, baseada na interação dialógica de pessoas interindependentes, fica assim impedida de se realizar.

Nello de Moura Rangel Neto






[1] Andrade, Adriana e Rossetti, José Paschoal. – Governança Corporativa, Fundamentos, desenvolvimento e tendências. 3ª edição. Editora Atlas.

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