"O tempo, o tempo, o tempo e suas águas
inflamáveis, esse rio largo
que não cansa de correr, lento e sinuoso, ele
próprio conhecendo seus
caminhos, recolhendo e filtrando de vária
direção o caldo turvo dos
afluentes e o sangue ruivo de outros canais para
com eles construir a
razão mística da história, sempre tolerante,
pobres e confusos
instrumentos, com a vaidade dos que reclamam o
mérito de dar-lhe o
curso, não cabendo contudo competir com ele o
leito em que há de
fluir, cabendo menos ainda a cada um correr
contra a corrente, ai
daquele, dizia o pai, que tenta deter com as
mãos seu movimento: será
consumido por suas águas; ai daquele, aprendiz
de feiticeiro, que abre
a camisa para um confronto: há de sucumbir em
suas chamas, que
toda mudança, antes de ousar proferir o nome,
não pode ser mais que
insinuada; o tempo, o tempo, o tempo e suas
mudanças, sempre cioso
da obra maior, e, atento ao acabamento, sempre
zeloso do concerto
menor, presente em cada sítio, em cada palmo, em
cada grão, e
presente também, com seus instantes, em cada
letra desta minha
história passional, transformando a noite escura
do meu retorno numa
manhã cheia de luz, armando desde cedo o cenário
para celebrar a
minha páscoa, retocando, arteiro e lúdico, a
paisagem rústica lá de
casa, perfumando nossas campinas ainda úmidas,
carregando as cores
de nossas flores, traçando com engenho as linhas
do seu teorema,
atraindo, debaixo de uma enorme peneira azul,
muitas pombas em
revoada, trazendo desde as primeiras horas para
a fazenda nossos
vizinhos e as famílias inteiras de nossos
parentes e amigos lá da vila,
entre eles divertidos tagarelas e crianças muito
traquinas, tecendo
agitações frívolas e ruídos muito propícios,
Zuleika e Huda, ajudadas
por amigas, já transportavam contentes garrafões
de vinho, correndo
sucessivas vezes todos os copos, despejando
risonhas o sangue
decantado e generoso em todos os corpos,
recebido sempre com
saudações efusivas que eram prenuncio de uma
gorda alegria, e foi no
bosque atrás da casa, debaixo das árvores mais
altas que compunham
com o sol o jogo alegre e suave de sombra e luz,
depois que o cheiro
da carne assada já tinha se perdido entre as
muitas folhas das árvores
mais copadas, foi então que se recolheu a toalha
antes estendida por
cima da relva calma, e eu pude acompanhar assim
recolhido junto a
um tronco mais distante os preparativos agitados
para a dança, os
movimentos irrequietos daquele bando de moços e
moças, entre eles
minhas irmãs com seu jeito de camponesas, nos
seus vestidos claros e
leves, cheias de promessas de amor suspensas na
pureza de um amor
maior, correndo com graça, cobrindo o bosque de
risos, deslocando as
cestas de frutas para o lugar onde antes se
estendia a toalha, os melões
e as melancias partidas aos gritos da alegria,
as uvas e as laranjas
colhidas dos pomares e nessas cestas com todo o
viço bem dispostas
sugerindo no centro do espaço o mote para a
dança, e era sublime essa
alegria com o sol descendo espremido entre as
folhas e os galhos, se
derramando às vezes na sombra calma através de
um facho poroso de
luz divina que reverberava intensamente naqueles
rostos úmidos, e foi
então a roda dos homens se formando primeiro, meu
pai de mangas
arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos
eles se dando rijo os
braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da
mão do outro,
compondo ao redor das frutas o contorno sólido
de um círculo como
se fosse o contorno destacado e forte da roda de
um carro de boi, e
logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor
na sua infância,
puxou do bolso a flauta, um caule delicado nas
suas mãos pesadas, e
se pôs então a soprar nela como um pássaro, suas
bochechas se
inflando como as bochechas de uma criança, e
elas inflavam tanto,
tanto, e ele sangüíneo dava a impressão de que
faria jorrar pelas
orelhas, feito torneiras, todo o seu vinho, e ao
som da flauta a roda
começou, quase emperrada, a deslocar-se com
lentidão, primeiro num
sentido, depois no seu contrário, ensaiando
devagar a sua força num
vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos
pés batidos
virilmente contra o chão, até que a flauta voou
de repente, cortando
encantada o bosque, correndo na floração do
capim e varando os
pastos, e a roda então vibrante acelerou o
movimento circunscrevendo
todo o círculo, e já não era mais a roda de um
carro de boi, antes a
roda grande de um moinho girando célere num
sentido e ao toque da
flauta que reapanhava desvoltando sobre seu
eixo, e os mais velhos
que presenciavam, e mais as moças que aguardavam
a sua vez, todos
eles batiam palmas reforçando o novo ritmo, e
quando menos se
esperava, Ana (que todos julgavam sempre na
capela) surgiu
impaciente numa só lufada, os cabelos soltos
espalhando lavas,
ligeiramente apanhados num dos lados por um
coalho de sangue (que
assimetria mais provocadora!), toda ela
ostentando um deboche
exuberante, uma borra gordurosa no lugar da
boca, uma pinta de
carvão acima do queixo, a gargantilha de veludo
roxo apertando-lhe o
pescoço, um pano murcho caindo feito flor da
fresta escancarada dos
seios, pulseiras nos braços, anéis nos dedos,
outros aros nos
tornozelos, foi assim que Ana, coberta com as
quinquilharias
mundanas da minha caixa, tomou de assalto a
minha festa, varando
com a peste no corpo o círculo que dançava,
introduzindo com
segurança, ali no centro, sua petulante
decadência, assombrando os
olhares de espanto, suspendendo em cada boca o
grito, paralisando os
gestos por um instante, mas dominando a todos
com seu violento
ímpeto de vida, e logo eu pude adivinhar, apesar
da graxa que me
escureceu subitamente os olhos, seus passos
precisos de cigana se
deslocando no meio da roda, desenvolvendo com
destreza gestos
curvos entre as frutas e as flores dos cestos,
só tocando a terra na
ponta dos pés descalços, os braços erguidos
acima da cabeça
serpenteando lentamente ao trinado da flauta
mais lento, mais
ondulante, as mãos graciosas girando no alto,
toda ela cheia de uma
selvagem elegância, seus dedos canoros estalando
como se fossem,
estava ali a origem das castanholas, e em torno
dela a roda passou a
girar cada vez mais veloz, mais delirante, as
palmas de fora mais
quentes e mais fortes, e mais intempestiva, e
magnetizando a todos,
ela roubou de repente o lenço branco do bolso de
um dos moços,
desfraldando-o com a mão erguida acima da cabeça
enquanto
serpenteava o corpo, ela sabia fazer as coisas,
essa minha irmã,
esconder primeiro bem escondido sob a língua sua
peçonha e logo
morder o cacho de uva que pendia em bagos
túmidos de saliva
enquanto dançava no centro de todos, fazendo a
vida mais turbulenta,
tumultuando dores, arrancando gritos de
exaltação, e logo entoados
em língua estranha começaram a se elevar os
versos simples, quase
um cântico, nas vozes dos mais velhos, e um primo
menor e mais
gaiato, levado na corrente, pegou duas tampas de
panelas fazendo os
pratos estridentes, e ao som contagiante parecia
que as garças e os
marrecos tivessem voado da lagoa pra se juntarem
a todos ali no
bosque, e Ana, sempre mais ousada, mais
petulante, inventou um novo
lance alongando o braço, e, com graça calculada
(que demônio mais
versátil!), roubou de um circundante a sua taça,
logo derramando
sobre os ombros nus o vinho lento, obrigando a
flauta a um apressado
retrocesso lânguido, provocando a ovação dos que
a cercavam, era a
voz surda de um coro ao mesmo tempo sacro e
profano que subia, era
a comunhão confusa de alegria, anseios e
tormentos, ela sabia
surpreender, essa minha irmã, sabia molhar a sua
dança, embeber a
sua carne, castigar a minha língua no mel
litúrgico daquele favo, me
atirando sem piedade numa insólita embriaguez,
me pondo convulso e
antecedente, me fazendo ver com espantosa
lucidez as minhas pernas
de um lado, os braços de outro, todas as minhas
partes amputadas se
procurando na antiga unidade do meu corpo (eu me
reconstruía nessa
busca! que salmoura nas minhas chagas, que
ardência mais salubre
nos meus transportes!), eu que estava certo,
mais certo do que nunca,
de que era para mim, e só para mim, que ela
dançava (que reviravoltas
o tempo dava! que osso, que espinho virulento,
que glória para o meu
corpo!), e eu, sentado onde estava sobre uma
raiz exposta, num canto
do bosque mais sombrio, eu deixei que o vento
que corria entre as
árvores me entrasse pela camisa e me inflasse o
peito, e na minha
fronte eu sentia a carícia livre dos meus
cabelos, e nessa postura
aparentemente descontraída fiquei imaginando de
longe a pele fresca
do seu rosto cheirando a alfazema, a boca um
doce gomo, cheia de
meiguice, mistério e veneno nos olhos de tâmara,
e os meus olhares
não se continham, eu desamarrei os sapatos,
tirei as meias e com os
pés brancos e limpos fui afastando as folhas
secas e alcançando abaixo
delas a camada de espesso húmus, e a minha
vontade incontida era de
cavar o chão com as próprias unhas e nessa cova
me deitar à
superfície e me cobrir inteiro de terra úmida, e
eu nessa senda oculta
mal percebi de início o que se passava, notei
confusa-mente Pedro,
sempre taciturno até ali, buscando agora por
todos os lados com os
olhos alucinados, descrevendo passos cegos entre
o povo imantado
daquele mercado — a flauta desvairava
freneticamente, a serpente
desvairava no próprio ventre, e eu de. pé vi meu
irmão mais
tresloucado ainda ao descobrir o pai, disparando
até ele, agarrando-lhe
o braço, puxando-o num arranco, sacudindo-o
pelos ombros,
vociferando uma sombria revelação, semeando nas
suas ouças uma
semente insana, era a ferida de tão doída, era o
grito, era sua dor que
supurava (pobre irmão!), e, para cumprir-se a
trama do seu concerto, o
tempo, jogando com requinte, travou os
ponteiros: correntes corruptas
instalaram-se comodamente entre vários pontos,
enxugando de
passagem a atmosfera, desfolhando as nossas
árvores, estorricando
mais rasteiras o verde das campinas, tingindo de
ferrugem nossas
pedras protuberantes, reservando espaços
prematuros para logo
erguer, em majestosa solidão, as torres de
muitos cactus: a testa nobre
de meu pai, ele próprio ainda úmido de vinho,
brilhou um instante à
luz morna do sol enquanto o rosto inteiro se
cobriu de um branco
súbito e tenebroso, e a partir daí todas as
rédeas cederam,
desencadeando-se o raio numa velocidade fatal: o
alfanje estava ao
alcance de sua mão, e, fendendo o grupo com a
rajada de sua ira, meu
pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental
(que vermelho mais
pressuposto, que silêncio mais cavo, que frieza
mais torpe nos meus
olhos!), não teria a mesma gravidade se uma
ovelha se inflamasse, ou
se outro membro qualquer do rebanho caísse
exasperado, mas era o
próprio patriarca, ferido nos seus preceitos,
que fora possuído de
cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a
tábua solene, era a lei que
se incendiava — essa matéria fibrosa, palpável,
tão concreta, não era
descarnada como eu pensava, tinha substância,
corria nela um vinho
tinto, era sangüínea, resinosa, reinava
drasticamente as nossas dores
(pobre família nossa, prisioneira de fantasmas
tão consistentes!), e do
silêncio fúnebre que desabara atrás daquele
gesto, surgiu primeiro,
como de um parto, um vagido primitivo
Pai!
e de outra voz, um uivo
cavernoso, cheio de desespero
Pai!
e de todos os lados, de
Rosa, de Zuleika e de Huda, o mesmo gemido
desamparado
Pai!
eram balidos
estrangulados
Pai! Pai!
onde a nossa segurança? onde a nossa proteção?
Pai!
e de Pedro, prosternado
na terra
Pai!
e vi Lula, essa criança tão cedo
transtornada, rolando no chão
Pai! Pai!
onde a união da
família?
Pai!
e vi a mãe, perdida no seu juízo,
arrancando punhados de cabelo, descobrindo
grotescamente as coxas,
expondo as cordas roxas das varizes, batendo a
pedra do punho contra
o peito
Iohána! Iohána! Iohána! e foram inúteis
todos os socorros, e recusando qualquer consolo,
andando entre
aqueles grupos comprimidos em murmúrio como se
vagasse entre
escombros, a mãe passou a carpir em sua própria
língua, puxando um
lamento milenar que corre ainda hoje a costa
pobre do Mediterrâneo:
tinha cal, tinha sal, tinha naquele verbo áspero
a dor arenosa do
deserto."
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