(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 27)
Então, Riobaldo e Diadorim e mais uns quinze homens foram vigiar as estradas enquanto Joca Ramiro trava o grosso combate. E não é que acabam se defrontando com Zé Bebelo, chefe do bando rival?
“Terrível, tido, por causa da ligeireza com que aquilo veio. Surpresa a gente sempre tem, o senhor sabe, mesmo em espera: dá a vez, e não se vê, à parva. Não se crê que é. Tão de repente. O vento vinha bom, da parte d’eles chegarem, de formas que o galope pronto se ouviu. Escoramos as armas. Assim que eles eram uns vinte. Passaram o ribeirão, com tanta pressa, que a água se esguichou farta, vero bonito aquilo no sol. Demos fogo.”
No meio da confusão eis que surge o chefe do bando adversário.
“Era Zé Bebelo!
Assim eu condenado para matar.”
Mas Riobaldo gostava de Zé Bebelo. Tinha dado aulas pra ele. Tinha sido do seu bando. E se vê agora apavorado e dividido, De novo, nosso Riobaldo não está pronto..
“-“Tralha! Lá vai obra, cão, carujo! Roncolho!” – isto era a voz de Zé Bebelo, gritava. Eu não gritei. Diadorim também atirava calado. Munição deles – quase nenhuma. Eles deviam de ser uns quatro, ou três. O cano do meu rifle esquentava demais. – “Roncolho! Toma...” Um Freitas, nosso, gritou, caiu muito ferido. A bala era de Zé Bebelo. Atiramos, grosso. Eles respondendo. Respondiam pouco. Deviam de ser... os quantos? Digo ao senhor: eu gostava de Zé Bebelo. Redigo – que. eu menos atirava do que pensava. Como era possível, assim, com minha ajuda, a morte dele? Um homem daquela qualidade, o corpo dele, a idéia dele, tudo que eu sabia e conhecia. Nessas coisas eu pensei. Sempre – Zé Bebelo – a gente tinha que pensar. Um homem, coisa fraca em si, macia mesmo, aos pulos de vida e morte, no meio das duras pedras. Senti, em minha goela. Aquela culpa eu carregava?”
E Riobaldo tenta arrumar, de supetão, uma saída.
“Arresto gritei: – “Joca Ramiro quer esse homem vivo! Joca Ramiro quer este homem vivo! Joca Ramiro faz questão!...” A que nem não sei como tive o repente de isso dizer – falso, verdadeiro, inventado...
Gritei firme, repeti.
Os outros companheiros aceitavam aquilo, diziam também, até João Curiol: – loca Ramiro quer este homem vivo!” – “É ordem de Joca Ramiro!””
Mas Riobaldo, num átimo, pensa que pode ter feito besteira...
“Ali Zé Bebelo eu salvasse. Todos aprovaram. Eu sei, eu sei? O senhor agora vai não me entendes, O como são as coisas. Todos me aprovaram – e, aí, extraordinariamente, eu dei um salto de espírito. O que? Mas, então, eu não tinha pensado tudo, o real?! O que era que eu estava fazendo, que era que eu estava querendo – que pegassem vivo Zé Bebelo, em carnes e ossos, para depois judiarem com ele, matarem de outro pior jeito, a fácil?! Minha raiva deu em mim. Me mordi, me abri, me-amargo. Tanto tudo ia sendo sempre’ por minha culpa! E daí pedi tudo ao rifle é às cartucheiras. Eu atirava, atirava: queria, por toda a lei, alcançar um tiro em Zé Bebelo, para acabar com ele de uma vez, sem martírio de sofrimentos. – “Tu está louco, Riobaldo?” – Diadorim gritou, rastejando para perto de mim, travando em meu braço. – “Joca Ramiro quer o homem vivo! Joca Ramiro quer, deu ordem!” – todos agora me gritavam. Assim contra mim, assim todos. O que eu havia de desmentir? E não vi direito, o fato. O que vi foi Zé Bebelo aparecendo, de repente, garnisé. O que ele tinha numa mão, era o punhal; na outra uma garrucha grande, fogo-central. Mas descarregou a garrucha, atirando no chão, perto dos pés dele, mesmo. Arrancou poeira. Por trás daquela poeira ele reapareceu, dava pensamento assim – aprumado, teso; de briga. Lampejou com o punhal, e esperou. Ele mesmo estava querendo morrer à brava, depressamente. Olhei, olhei. De atirar nele, de todo jeito não tive coragem. Ah, não tinha! E um dos nossos, não sei quem, jogou o laço. Zé Bebelo mal ainda bateu com um pé, por se firmar, e caiu, arrastado, voz que gritou: – “Canalha! Canalha!” Mas todos foram nele, desarmaram do punhal. Eu parei quieto, vago, se me estranho. Não queria, ah não queria que ele me reconhecesse.”
E Riobaldo pergunta, agoniado.
““Agora matam? Vão matar?” Mal perguntei. Mas o João Curiol virou e disse: – “Matar não. Vão dar julga; mento...”
– “Julgamento?” – não ri, não entendi.
– “Aposto que sei. Aí foi ele mesmo quem quis. O homem estúrdio! Foi defrontar com Joca Ramiro, e, assim agarrado preso, do jeito como desgraçado estava, brabo gritou: – Assaca! Ou me matam logo, aqui, ou então eu exijo julgamento correto legal!... e foi. Aí Joca Ramiroconsentiu, apraz-me, prometeu julgamento já...””
O julgamento acontece. É um dos maiores trechos do livro. E no seu transcorrer Joca Ramiro pede opinião aos sub-líderes do bando, e em seguida a quem mais quiser se manifestar. As opiniões são as mais diversas.
Hermógenes, homem de muitas vinganças, quer amarrar e sangrar como porco ou passar com os cavalos em cima.
Só Candelário acha que podia resolver na faca, em briga de duelo. Ou então que se devia soltá-lo para que ele reunisse os seus homens de novo e “a guerra poder continuar mais, perfeita, diversificada...”
Ricardão concorda com Hermógenes, que Zé Bebelo veio caçar a eles e que perdeu. E muitos morreram e ficaram feridos. E que agora chegou a hora da vingança. E que se o bando tivesse perdido a guerra estariam todos mortos ou presos.
Riobaldo fica triste de concordar com Ricardão.
“Mire e veja o senhor: e o pior de tudo era que eu mesmo tinha de achar correto o razoado do Ricardão, reconhecer a verdade daquelas palavras relatadas. Isso achei, meio me entristeci. Por quê? O justo que era, aquilo estava certo. Mas, de outros modos – que bem não sei – não estava. Assim, por curta idéia que eu queira dividir: certo, no que Zé Bebelo tinha feito; mas errado no que Zé Bebelo era e não era. Quem sabe direito o que uma pessoa é? Antes sendo: julgamento é sempre defeituoso, porque o que a gente julga é o passado.”
Riobaldo já começa a dizer da dificuldade de se julgar as pessoas, de se ter uma posição definitiva sobre o mérito de cada qual. Com maestria o autor volta a mostrar Riobaldo lidando com as incertezas. No momento do aprisionamento de Zé Bebelo, no decorrer do julgamento, em vários momentos Riobaldo oscilará entre posições diversas. Não é que ele esteja dividido. Antes ele está sem posição definida, sem a opinião fechada. Riobaldo assim fica em muitos momentos. E fica angustiado, é verdade. Mas não dividido. É que ele tem fôlego para esses momentos de incertezas e dúvidas. Mas também é verdade que ele ainda tem a ilusão que poderá se livrar delas, tem a ilusão de que com a valentia de Diadorim – que ele busca desesperadamente – ele conseguirá se livrar do movimento próprio da vida.
É como se o livro nos dissesse: Olha, é mais complexo do que você gostaria... Ouse colocar cercas para demarcar com precisão cada território. Elas cairão por terra. Ouse definir apressadamente quem é bom e quem é mau, quem merece morrer e quem não merece. Mudarás logo de opinião.
Titão Passos diz então sua opinião, que Zé Bebelo não tinha crime constável. Que ele quis guerrear e achou guerreiros. Que a guerra acabou e que agora ali não era um matadouro, que ele não apoiava matá-lo.
Riobaldo se sente melhor com as palavras de Titão Passos.
João Goanhá vota como Só Candelário e com Titão Passos, que não tem crime não. E que não seria o caso de matar não.
Joca Ramiro pergunta então aos outros homens se alguém tinha alguma palavra pra dar, de defesa ou de acusação.
Riobaldo quer falar, mas hesita e outro fala em seu lugar. Quando esse termina Riobaldo demora um tiquinho de novo e outro toma a frente, novamente. Riobaldo então não marca mais bobeira e fala, finalmente.
–... Eu conheço este homem bem, Zé Bebelo. Estive do lado dele, nunca menti que não estive, todos aqui sabem. Saí de lá, meio fugido. Saí, porque quis, e vim guerrear aqui, com as ordens destes famosos chefes, vós... Da banda de cá, foi que briguei, e dei mão leal, com meu cano e meu gatilho... Mas, agora, eu afirmo: Zé Bebelo é homem valente de bem, e inteiro, que honra o raio da palavra que dá! Aí. E é chefe jagunço, de primeira, sem ter ruindades em cabimento, nem matar os inimigos que prende, nem consentir de com eles se judiar... Isto, afirmo! Vi. Testemunhei. Por tanto, que digo, ele merece um absolvido escorreito, mesmo não merece de morrer matado à-toa... (...)–... A guerra foi grande, durou tempo que durou, encheu este sertão. Nela todo o mundo vai falar, pelo Norte dos Nortes, em Minas e na Bahia toda, constantes anos, até em outras partes... Vão fazer cantigas, relatando as tantas façanhas... Pois então, xente, hão de se dizer que aqui na SempreVerde vieram se reunir os chefes todos de bandos; com seu cabras valentes, montoeira completa, e com o sobregoverno de Joca Ramiro – só para, no fim, fim, se acabar com um homenzinho sozinho – se condenar de matar Zé Bebelo, o quanto fosse um boi de corte? Um fato assim é honra? Ou é vergonha?...”
A fala de Riobaldo surte efeito e vários concordam com ele, que ainda coloca mais alguns argumentos.
Pois então Zé Bebelo teve ordem pra falar e se defender.
“– “... Agradeço os que por mim bem falaram e puniram...Vou depor. Vim para o Norte, pois vim, com guerra e gastos, à frente de meus homens, minha guerra... Sou crescido valente, contra homens valentes quis dar o combate. Não está certo? Meu exemplo, em nomes, foram estes: Joca Ramiro, Joãozinho Bem- Bem, Só Candelário!... e tantos outros afamados chefes, uns aqui presentes, outros que não estão... Briguei muito mediano, não obrei injustiça nem ruindades nenhumas; nunca disso me reprovam. Desfaço de covardes e de biltragem! Tenho nada ou pouco com o Governo, não nasci gostando de soldados... Coisa que eu queria era proclamar outro governo, mas com a ajuda, depois, de vós, também. Estou vendo que a gente só brigou por um mal-entendido, maximé. Não obedeço ordens de chefes políticos. Se eu alcançasse, entrava para a política, mas pedia ao grande Joca Ramiro que encaminhasse seus brabos cabras para votarem em mim, para deputado... Ah, este Norte em remanência: progresso forte, fartura para todos, a alegria nacional! Mas, no em mesmo, o afã de política, eu tive e não tenho mais... A gente tem de sair do sertão! Mas só se sai do sertão é tomando conta dele a dentro... Agora perdi. Estou preso. Mudei para adiante! Perdi – isto é – por culpa de má-hora de sorte; o que não creio. Altos descuidos alheios... De ter sido guardado prisioneiro vivo, e estar defronte de julgamento, isto é que eu louvo, e que me praz. Prova de que vós nossos jagunços do Norte são civilizados de calibre: que não matam com o distrair de mão um qualquer inimigo pegado. Isto aqui não são essas estrebarias... Estou a cobro de desordens malinas. Estimei. Dou viva Joca Ramiro, seus outros chefes, comandantes de seus terços. E viva sua valente jagunçada! Mas, homem sou. Sou de altas cortesias. Só que medo não tenho; nunca tive, no travável...” Anda que fez um gesto bonito. Assaz, aí, se espiritou. Ao que, de vez, foi grandeúdo: – “... Uê, vim guerrear, de peito aberto, com estrondos. Não vim socolor de disfarces, com escondidos e logro. Perdi, por um desguardo. Não por má chefia minha! Não devia de ter querido contra Joca Ramiro dar combate, não devia-de. Não confesso culpa nem retrauta, porque minha regra é: tudo que fiz, valeu por bem feito. É meu consueto. Mas, hoje, sei: não deviade. Isto é: depende da sentença que vou ter, neste nobre julgamento. Julgamento, digo, que com arma ainda na mão pedi; e que deste grande Joca Ramiro mereci, de sua alta fidalguia... Julgamento – isto, é o que a gente tem de sempre pedir! Para quê? Para não se ter medo! É o que comigo é. Careci deste julgamento, só por verem que não tenho medo... Se a condena for às ásperas, com a minha coragem me amparo. Agora, se eu receber sentença salva, com minha coragem vos agradeço. Perdão, pedir, não peço: que eu acho que quem pede, para escapar com vida, merece é meia-vida e dobro de morte. Mas agradeço, fortemente. Também não posso me oferecer de servir debaixo d’armas de Joca Ramiro – porque tanto era honra, mas não condizia bem. Mas minha palavra dando, minha palavra as mil vezes cumpro! Zé Bebelo nunca roeu nem torceu. E, sem mais por dizer, espero vossa distinta sentença. Chefe. Chefes.””
E Joca Ramiro decide.
“– “O julgamento é meu, sentença que dou vale em todo este norte. Meu povo me honra. Sou amigo dos meus amigos políticos, mas não sou criado deles, nem cacundeiro. A sentença vale. A decisão. O senhor reconhece?”
– “Reconheço” – Zé Bebelo aprovou, com firmeza de voz, ele já descabelado demais. Se fez que as três vezes, até: – “Reconheço. Reconheço! Reconheço...” – estreques estalos de gatilho e pinguelo – o que se diz: essas detonações.
– “Bem. Se eu consentir o senhor ir-se embora para Goiás, o senhor põe a palavra, e vai?” Zé Bebelo demorou resposta. Mas foi só minutozinho. E, pois:
– “A palavra e vou, Chefe. Só solicito que o senhor determine minha ida em modo correto, como compertence.”
– “A falando?”
– “Que: se ainda tiver homens meus vivos, presos também por aí, que tenham ordem de soltura, ou licença de vir comigo, igualmente...”
Ao que Joca Ramiro disse: – “Topo. Topo.” – “ ... E que, tendo nenhum, eu viaje daqui sem vigia nenhuma, nem guarda, mas o senhor me fornecendo animal-desela arreado, e as minhas armas, ou boas outras, com alguma munição, mais o de-comer para os três dias, legal...”
Ao que aí Joca Ramiro assim três vezes: – “Topo. Topo!”
– “... Então, honrado vou. Mas, agora, com sua licença, a pergunta faço: pelo quanto tempo eu tenho de estipular, sem voltar neste Estado, nem na Bahia? Por uns dois, três anos?”
– “Até enquanto eu vivo for, ou não der contra-ordem...” – Joca Ramiro ai disse, em final. E se levantou, num de repente. Ah, quando ele levantava, puxava as coisas consigo, parecia – as pessoas, o chão, as árvores desencontradas. E todos também, ao em um tempo – feito um boi só, ou um gado em círculos, ou um relincho de cavalo. Levantaram campo. Reinou zoeira de alegria: todo o mundo já estava com cansaço de dar julgamento, e se tinha alguma certa fome.”
O julgamento de Zé Bebelo ocupa um lugar central na narrativa do livro. É dos trechos mais extensos, o que não deve ser considerado aleatório no caso de João Guimarães Rosa. Até o julgamento a narrativa vai e volta no tempo, não obedecendo uma ordem cronológica. Após o julgamento os fatos são narrados cronologicamente. E vamos juntos, acompanhando a epopeia de Riobaldo.
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