(Da
série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 35)
Enfim libertos do cerco dos inimigos, Riobaldo oferece um presente a
Diadorim.
“–
“Diadorim, um mimo eu tenho, para você destinado, e de que nunca fiz menção...”
– o qual era a pedra de safira, que do Araçuaí eu tinha trazido, e que à espera
de uma ocasião sensata eu vinha com cautela guardando, enrolada numa pouca de algodão,
dentro dum saquitel igual ao de um breve, costurado no forro da bolsa
menorzinha da minha mochila.
De
desde que falei, Diadorim quis muito saber o presente qual era, assim apertando
comigo com perguntas, que sem aperreio deixei de responder, até de tarde,
quando fizemos estância. A parança que foi – conforme estou vivo lembrado – numa
vereda sem nome nem fama, corguinho deitado demais, de água muito simplificada.
Aí, quando ninguém não viu, eu saquei a mochila, desfiz a ponta de faca as
costuras, e entreguei a ele o mimo, com estilo de silêncio para palavras.”
Diadorim
fica surpreso e, literalmente, de boca aberta. Mas, quase de imediato, recua e
se endurece.
“Diadorim
entrefez o pra-trás de uma boa surpresa, e sem querer parou aberto com os lábios
da boca, enquanto que os olhos e olhos remiravam a pedra-de-safira no covo de
suas mãos. Ao que, se sofreou no bridado, se transteve sério, apertou os beiços;
e, sem razão sensível nem mais, tornou a me dar a pedrinha, só dizendo:
–
“Deste coração te agradeço, Riobaldo, mas não acho de aceitar um presente
assim, agora. Aí guarda outra vez, por um tempo. Até em quando se tenha
terminado de cumprir a vingança por Joca Ramiro. Nesse dia, então, eu
recebo...””
Ele
não se pode permitir o amor enquanto guarda o dever de vingança. Riobaldo pela
primeira vez tenta convencer Diadorim a deixar o cangaço.
“–
“Escuta, Diadorim: vamos embora da jagunçagem, que já é o depois-de-véspera,
que os vivos também têm de viver por só si, e vingança não é promessa a Deus,
nem sermão de sacramento. Não chegam os nossos que morremos, e os Judas que
matamos, para documento do fim de Joca Ramiro?!””
Foi Diadorim
ouvir e retrucou, com dureza:
“–
“Riobaldo, você teme?””
Riobaldo
diz que não se ofendeu e parece decidido no que pensa. Mas logo adiante mostra
que ficou ofendido, sim. E Diadorim tenta chamá-lo ao compromisso antes
assumido, de vingar a morte de Joca Ramiro.
“–
“Tem que temerei! Você, aí faz o quem seu querer esteja. Eu viro minha boa
volta...”
Dar o
mal por mal: assim. Eu tinha a quanta razão. Eu guardei a pedrinha na
algibeira, depois melhor botei, no bolso do cinto; contei minhas favas,
refavas. Diadorim respirava muito. Dele foi o relance:
–
“Riobaldo, você pensa bem: você jurou vinga, você é leal. E eu nunca imaginei
um desenlace assim, de nossa amizade...””
Há
diferenças importantes entre fidelidade e lealdade. Somos fieis a normas. Somos
leais a vida. Fidelidade é estar preso a uma norma ou combinado sem que as
condições razoáveis para a manutenção do acordo ainda existam. Lealdade nunca é
a alguém específico, mas a uma proposta ou condição que remeta àquilo que é
vitalizado.
Os
dois conceitos se relacionam diretamente aos conceitos de coerência e consistência.
Sou coerente em relação às minhas ideias. Sou consistente em relação a minha
vida. Se me aferro demasiadamente à coerência acabo facilmente manipulado: “Mas
não foi isso que você disse antes!” Se sou consistente, simplesmente posso
responder: “mudei”.
As
crianças costumam ser naturalmente consistentes e leais. Se combinarmos com um
sobrinho que levaremos um bombom para ele e, ao chegarmos à sua casa ele
percebe que nos esquecemos, teremos diante de nós uma criança chateada, triste
e provavelmente com raiva. Mas se, no instante seguinte, ela percebe um novo e
interessante chaveiro em nossas mãos e começa a brincar com ele, teremos então
uma criança novamente tranquila e envolvida. Essa aparente instabilidade recebe
o nome adequado de estabilidade emocional. A criança é orientada pela vida. Queria
o bombom. Esse não veio. Ficou chateada, mas não tem jeito. Chaveiro interessante? Dane-se o bombom! Ela é consistente com a vida. Não está nem um pouco
preocupada em se aprisionar a alguma coerência.
Meu
filho - acho que com dois anos - tinha há poucos dias parado de chupar o seu
bico durante o dia, quando me pediu ele de volta.
-
Papai, to com uma saudade do meu bico...
- É meu
filho? Mas você já tá tão grandinho e nós já explicamos que o bico faz os
dentes ficarem doentes...
- É...
Mas to com uma saudade... Deixa só eu matar a saudade. Só um pouquinho... Menor
que um cocô de cupim (devia ser a menor coisa que ele conhecia).
- Só
um pouquinho mesmo?
- É!
-
Então tá. Tá aqui o bico.
Chup, chup, chup........ Alguns minutos
depois...
-
João, já passou o tempinho que combinamos. Me devolve o bico, agora que você já
matou a saudade?
- Papai, mudei de ideia.
Ri demais! Maravilhosamente
consistente e leal a vida, esse meu filho!
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