(Da
série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 26)
Riobaldo
e Diadorim estão agora junto ao bando de Sô Candelário, homem dos mais
valentes.
“Esse era alto, trigueiro azul, quase preto, com bigode
amarelecido. Homem forçoso, homem de fúria. Mandou que mandava. Em hora de
fogo, pulava à frente de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo
dele o Hermógenes parecia um diabo coitado. Só Candelário era o para enfrentar
Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo.”
E
juntos todos vão ao encontro do grande líder, Joca Ramiro. E juntos todos irão
para a guerra. Com Joca Ramiro a frente a vitoria é certa.
“Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, noutra
coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas armas: Joca Ramiro
entrava direto em combate, então ia ser o fim da guerra!”
Mas Sô Candelário, o mais valente dos valentes, não
poderá ir direto ao calor da batalha. Joca Ramiro não quer.
““Só Candelário queria ir também, mas teve de aceitar
ordem de ficar...” – Diadorim me explicou. Segundo disse – que Só Candelário,
por aquela ânsia e soência, de avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a
boa regra de tudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o
mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado: que nosso grupo se
repartisse, em aos três ou quatro piquetes, para valer de vigiar bem os vaus e
suas estradas.”"
Sô
Candelário trazia em si a desmedida da valentia. E Joca Ramiro disso sabia. Riobaldo
explica.
“Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos sabiam
e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E bebia, quase
constantemente, sua forte cachaça. Por quê? Digo o senhor: ele tinha medo de
estar com o mal-de-lázaro. Pai dele tinha adoecido disso, e os irmãos dele
também, depois e depois, os que eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: ai é
que o homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê? Disso é que decerto
sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de idéia. Lepra demora tempos,
retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer hora, aquilo podia
variar de aparecer. Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a
camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se
arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada.
Danado de tudo. A gente sabia que ele tomava certos remédios – acordava com o
propor da aurora, o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em
poço, para a beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos dava.
Hoje, que penso, de todas as pessoas Só Candelário é o que mais entendo. As
favas fora, ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do
tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava
resultado que mandava mortes, e matava. Doido, era? Quem não é, mesmo eu ou o
senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido
motivo.”
A
certeza da morte terrível, da doença estigmatizante, fazia com que Sô
Candelário se tornasse um homem imprudente. A pressa o tomava ( E Guimarães
Rosa, no seu livro anterior, “Sagarana”, já dissera que medo e pressa são
praticamente iguais) e ele avançava sem cuidado na direção daquilo que julgava
ser seu fim inevitável. Toda pressa traz em si bastante certeza. E nos cega
para a realidade. Com pressa não conseguimos esperar que ela se manifeste, se
revele por inteiro. E acabamos precipitados.
Joca
Ramiro, em sua grande sabedoria, julga por bem não levar Sô Candelário para a
frente da guerra.
Temos
em nossa cultura outro exemplo de pressa levando à falsa consciência e à
decisão equivocada.
Trata-se
do autor da frase abaixo, a nós presenteada por Públio Ataíde.
"Tenho medo da morte e da dor, mas
convivo bem com isso. O medo me fascina."
Ayrton Senna
Em
trabalho sobre a pressa, analiso os acontecimentos que culminaram com seu
falecimento.
“Senna foi eleito recentemente o maior
piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo
sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua
qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de
carros.
Sua morte trágica, ocorrida durante a prova
de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.
Naquele ano muitas mudanças foram
realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que
no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a
suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos
veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os
custos das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de
ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o
recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados
na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses
que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.
As queixas de que os carros estavam mais
inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O
próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão
rápidos demais e difíceis de controlar”.
No primeiro dia de treinos Senna ficou
transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo
primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na
aceleração de seu carro e decola sobre uma zebra da pista, bate e salta
acima dos pneus de proteção e se arrebenta numa tela protetora. Quase que
milagrosamente sobrevive com poucas lesões.
No dia seguinte Senna assistiu pelo monitor
dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as equipes de
socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito se
descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15
minutos.
Após 12 anos sem um acidente fatal na
formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de
semana Senna também morreria.
A morte de Ratzenberger levou Senna a
liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao
falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto
austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais
tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse:
“Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.
Pouco antes da corrida, na hora da
concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum
chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.
Por que Senna mudou de opinião e decidiu
correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para
julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a
comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que
ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite
já tinha mudado de opinião e decidido correr.
Decisão diferente tomou Emerson Fittipaldi,
em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos para a
prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram
sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente
instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As
pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram
imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos
concordou em correr.
Emerson, ameaçado até de exclusão
definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e
não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas
instantaneamente, e deixou muitos feridos.
Neste caso os fatos posteriores deram razão
a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de que a
prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto
covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser
jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua
decisão.
Ayrton Senna já não era tão moço, tinha
então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi a
primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas. Rodou
na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova seguinte.
Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como poderia deixar
de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que perdera o
arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua vida, que
devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.
Alguns desses pensamentos devem ter passado
pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma forma ele
anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia seguinte.
E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.
Sabemos hoje que o principal elemento
causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians.
Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse
ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de
risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado
primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe
lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se
acidentou muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na
corrida seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se
acidentaria com gravidade, ficando muitos dias em coma.
E Senna percebeu os absurdos, tomou a
decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de
opinião.
Conan Doyle, através de seu famoso
personagem Sherlock Holmes, no romance “A cidade do medo”, diz de
“Um homem que não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo
que faz deve dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um
homem que não pode falhar está condenado à pressa e ao medo. O medo de
falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se falho ou
errôneo.
É possível ultrapassar quem tem esperanças,
projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na direção
daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe
reconhecer o que sabe e o que não sabe?”
Nenhum comentário:
Postar um comentário