I
INDIFERENÇA INEXPLICÁVEL - DRÁUZIO VARELA
Para quem está habituado a genocídios,
que diferença faz um crime a mais?
Em 2010, a Anvisa realizou uma série de
consultas públicas sobre a conveniência de proibir a adição de aromatizantes e
edulcorantes ao fumo. Na época, escrevi nesta coluna que a medida conseguia a
proeza circense de ser a um só tempo corajosa e covarde.
Corajosa porque finalmente o governo
federal tomava a iniciativa de enfrentar a ganância criminosa dos que adicionam
ao cigarro uma parafernália de substâncias químicas, para tornar a fumaça menos
aversiva ao paladar infantojuvenil.
Covarde porque não tem cabimento uma
agência governamental legalmente encarregada de proteger a saúde dos
brasileiros ser obrigada a consultar o público para coibir uma prática adotada
com a finalidade exclusiva de induzir crianças e adolescentes à mais
escravizadora das dependências de droga.
Apesar desses pesares, em março de
2012, a Anvisa publicou a resolução RDC nº 14, segundo a qual continuavam
permitidos os aditivos essenciais ao processo de fabricação de cigarros, mas
seriam vetados aqueles introduzidos para deixá-lo mais palatável.
Para a adaptação às novas regras foram
fixados prazos generosos: 18 meses para os fabricantes e 24 meses para os
comerciantes.
Essa questão é da maior relevância. Até
a década de 1970 o emprego de aditivos era muito restrito; hoje são acrescentados
mais de 600 deles. Perto de 10% do peso de um cigarro é composto por aditivos
de efeitos mal estudados e imprevisíveis para o organismo.
Pertencem a essa categoria produtos que
conferem gosto de maçã, chocolate, cravo, morango, canela, baunilha ou menta.
Outros, provocam broncodilatação para que a fumaça penetre mais fundo nos
pulmões. Há, ainda, os que aumentam a afinidade dos neurônios à nicotina, para
viciar com mais eficiência.
O mentol, especificamente, adicionado
para anestesiar as vias aéreas e diminuir a irritação causada pela fumaça, além
de aumentar a permeabilidade da mucosa oral às nitrosaminas cancerígenas
liberadas na combustão, é o preferido por mais de 50% das meninas e meninos que
começam a fumar.
A resolução da Anvisa foi contestada
pelo deputado Luiz Carlos Heinz, por meio do PDC 3034/2010, que está para ser
votado em Brasília. Em síntese, o nobre representante do povo contesta a
autoridade da Anvisa para legislar sobre o tema. A alegação é a ladainha de
sempre: como o fumo gera riquezas para o país, qualquer tentativa de reduzir
seu consumo levaria à miséria milhares de famílias empregadas no plantio.
A Advocacia Geral da União já se
pronunciou a favor da legalidade constitucional do papel da Anvisa nessa
questão.
Em relação ao famigerado argumento das
riquezas geradas pelo fumo, vamos lembrar que o Brasil gasta mais de R$ 20
bilhões por ano apenas com o tratamento das doenças causadas por ele, enquanto
arrecada em impostos menos de um terço desse valor.
Já em relação ao desemprego dos pobres
lavradores --bandeira que a bancada do fumo no Congresso desfraldou até para
justificar sua posição contrária à proibição de fumar em ambientes fechados--,
quero dizer que, se todos os brasileiros deixassem de fumar, seriam eles os
menos prejudicados, uma vez que somos o segundo maior exportador mundial.
Mais desemprego haveria entre
cancerologistas, cardiologistas, pneumologistas, cirurgiões, enfermeiras,
atendentes, acompanhantes de inválidos, fabricantes de respiradores, balões de
oxigênio, cadeiras de rodas, motoristas de ambulâncias, coveiros e demais
envolvidos nas tragédias provocadas pelo cigarro.
Reconheço que consigo entender o papel
desprezível dos parlamentares que se prestam a defender os interesses da
indústria. Eles o fazem por questões práticas, como os financiamentos de
campanhas eleitorais ou seja lá que outro nome tenham. O que é inadmissível é a
inércia do poder Executivo.
Por que o Ministério da Saúde e a
própria Anvisa sequer acompanham as sessões da Câmara em que o assunto está para
ser votado? Por que razão a Casa Civil se abstém de convocar a maioria que
detém no Legislativo, para impedir essa afronta à saúde dos brasileiros? Além
das barganhas por ministérios, qual a serventia da base aliada?
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