Dom
Miguel de Unamuno, grande filósofo e humanista, em 1936, no início da guerra
civil espanhola, responde aos gritos de “viva
la muerte!” pronunciados pelos partidários do General Millán Astray, defensor
junto com o Generalíssimo Franco da guerra civil, que acabara de discursar na
universidade de Salamanca.
“...Acabo
de ouvir um grito necrófilo e insensato. E eu, que passei a vida formando
paradoxos que despertaram a ira da incompreensão alheia, devo dizer-lhes, como
autoridade especializada, que este paradoxo bizarro me é repelente. O general
Millán Astray é um aleijado. Digamos isso sem qualquer disfarce. Ele é um
inválido da guerra. Assim foi também Cervantes. Infelizmente há demasiados
aleijados na Espanha agora. E cedo haverá ainda mais se Deus não vier em nosso
auxílio. Dói-me pensar que o General deva ditar o modelo da psicologia da massa.
Um aleijado desprovido da grandeza espiritual de um Cervantes está habituado a
procurar sinistro alívio provocando mutilação em torno de si”.
Diante
destas palavras Millán Astray não pode mais controlar-se, gritando “Abaixo a
inteligência! Viva a morte!” E é aplaudido pelos companheiros falangistas. Mas
Unamuno não se abateu e continuou:
”Este
é o templo do intelecto. E eu sou seu sumo sacerdote. É você que profana seu
sagrado recinto. Você ganhará porque dispõe de mais do que suficiente força
bruta. Mas você não convencerá. Para convencer é mister persuadir. E a fim de
persuadir você precisa do que lhe falta: Razão e direito na luta. Considero
fútil exortá-lo a pensar na Espanha. Eu pensei”.
Unamuno
ficou preso em casa até a sua morte poucos meses depois.
Necrofilia
significa amor aos mortos, literalmente. Em seu grau máximo é uma perversão
sexual.
A
pessoa com orientação necrófila é atraída e fascinada por tudo o que não é
vivo, tudo que está morto: cadáveres, decomposição, fezes, sujeira. Gostam de
falar de enterros, doenças e morte. Enchem-se de vida justamente quando podem
falar de morte.
Os
necrófilos moram no passado, nunca no futuro. Seus sentimentos são
essencialmente sentimentais, isto é, alimentam a memória dos sentimentos que
foram sentidos ontem. São frios, distantes, devotos da lei e da ordem.
Amam
a força, entendida como força para matar. Para eles só há dois sexos: os fortes
e os fracos, os poderosos e os impotentes, os matadores e os mortos. Enquanto a
vida se caracteriza pelo crescimento, a pessoa necrófila ama tudo que não
cresce, tudo que é mecânico. É impelida pelo desejo de transformar o orgânico
em inorgânico, de aproximar-se da vida mecanicamente, como se todas as pessoas
fossem coisas. Todos os processos, sentimentos e pensamentos vivos são
transformados em coisas. Memória em vez de experiência, ter em vez de ser, é o
que interessa. O necrófilo pode relacionar-se com um objeto - uma flor ou uma
pessoa - somente se possuir esta; por isso uma ameaça às suas posses é uma
ameaça a ele mesmo; se perder a posse perderá o contato com o mundo. Ele gosta
do controle e, no ato de controlar, ele mata a vida. Teme profundamente a vida
por ser esta pela própria natureza desordenada e incontrolável. Para o
necrófilo, justiça significa divisão correta, e dispõe-se a matar ou morrer
pelo bem daquilo que denomina justiça. “Lei e ordem” para ele são ídolos - tudo
que ataca a lei e a ordem é sentido como um ataque satânico contra seus valores
supremos.
A
pessoa necrófila é atraída pela escuridão e pela noite. Ele quer voltar às
trevas do útero e ao passado da existência inorgânica ou animal. É
intrinsecamente orientado para o passado, não para o futuro que odeia e teme.
Relacionado com isso há seu anelo de certeza. Mas a vida nunca é certa, nunca é
previsível, nunca é controlável; a fim de tornar a vida controlável ela tem que
ser convertida em morte; a morte é, de falto, a única certeza na vida.
A
pessoa necrófila é ordeira, obsessiva e pedante.
A
pessoa biófila: sua essência é o amor à vida. É qualidade inerente à toda
substancia viva viver e preservar sua existência. “Tudo na medida em que é ele
mesmo, esforça-se por persistir em seu próprio ser”. Espinosa, Ética, III,
prop. VI.
O
pleno desabrochar da biofilia é encontrado na orientação produtiva. A pessoa
que ama a vida completamente é atraída pelo processo da vida e do crescimento
em todas as esferas. Prefere construir a conservar. É capaz de maravilhar-se, e
prefere ver algo novo à segurança de encontrar a confirmação do velho.
A
consciência da pessoa biófila não é a de se obrigar a abster-se do mal e fazer
o bem. A consciência biófila é motivada por sua atração pela vida e alegria; o
esforço moral consiste em fortalecer o aspecto amante da vida em si mesmo. Por
essa razão o biófilo não fica com remorso e sentimento de culpa que, afinal de
contas, são somente aspectos de autodesprezo e tristeza. Ele se volta
rapidamente para a vida e tenta fazer o bem.
As
formas puras das orientações necrófilas e biófilas são raras. O que importa é
qual das duas tendências é dominante.
A
condição mais importante para o desenvolvimento do amor à vida na criança é ela
estar com pessoas que amam a vida.
Walt
Whitman: “Passar (oh, sempre vivendo) e deixar os cadáveres para trás”.
Extratos
do capítulo “Amor à morte e amor à vida”, do livro “o coração do homem”, de
Erich Fromm.
Nenhum comentário:
Postar um comentário