Olhos abertos
Enquanto a doença não passa rente a nós, a vida nos parece
infinita e acreditamos que sempre haverá tempo para lutarmos pela felicidade.
Antes preciso obter meus diplomas, receber meus créditos, é preciso que as
crianças cresçam, que eu me aposente... mais tarde pensarei na felicidade.
Adiando sempre para o dia seguinte a busca do essencial, corremos o risco de
deixar a vida escoar entre nossos dedos, sem jamais tê-la de fato saboreado.
É essa curiosa miopia, são essas hesitações, que o câncer vem
por vezes abalar. Devolvendo à vida sua verdadeira fragilidade, ele lhe
restitui seu autêntico sabor. Algumas semanas depois de receber o diagnóstico
de câncer no cérebro, tive o sentimento estranho de que tinham acabado de
retirar as lentes cinzentas que velavam minha vista. Um domingo à tarde, eu
olhava Anna no pequeno cômodo ensolarado de nossa minúscula casa. Ela estava
sentada no chão, ao lado de uma mesa baixa, tentando traduzir poemas do francês
para o inglês, com um ar concentrado e calmo. Pela primeira vez eu a via como
ela era, sem me perguntar se eu devia ou não preferi-la em vez de uma outra. Eu
via simplesmente sua mecha de cabelo caindo graciosamente quando ela inclinava
a cabeça sobre o livro, a delicadeza de seus dedos segurando tão levemente a
caneta. Estava surpreso por nunca ter notado a que ponto as imperceptíveis
contrações de seu queixo, quando ela tinha dificuldade para encontrar a palavra
que procurava, podiam ser comovedoras. Tinha a impressão de vê-la de repente
tal como ela era de fato, liberada de minhas questões e minhas dúvidas. Sua
presença se tornava inacreditavelmente enternecedora. O simples fato de
poder partilhar aquele instante me surgia como um privilégio imenso. Como eu
pudera deixar de vê-la assim antes?
Assim, a proximidade da morte pode trazer às vezes uma
espécie de libertação. À sua sombra, a vida adquire de repente uma intensidade,
uma sonoridade, um sabor - todos desconhecidos. Bem entendido, chegada a hora,
não há como não ficar terrivelmente triste por ir embora, como quando se tem de
dizer adeus para sempre a uma pessoa amada. A maior parte de nós teme essa
tristeza. Mas, no fundo, o mais triste não seria partir sem ter provado o sabor
da vida? O mais terrível não seria, no momento de deixar a vida, não ter nenhum
motivo para ficar triste? De minha parte, nunca tinha encarado o mundo sob este
ângulo (7)".
Nenhum comentário:
Postar um comentário