sábado, 20 de outubro de 2012

Habermas e a Ação Comunicativa


Jürgen Habermas é considerado o principal membro da segunda geração da chamada Escola de Frankfurt. Este grupo de intelectuais abordava a investigação social numa ótica de fundamento predominantemente marxista e, pode-se dizer, pretendiam, desde sua primeira geração de pensadores, gerar a emancipação das viseiras ideológicas, trazendo à consciência as condições e deformações de nosso conhecimento do mundo. A tese de base é que o mundo social carece do caráter "dado" do mundo natural e deve ser visto como nossa construção. E, por isso mesmo, o mundo social poderia ser diferente. Executar um projeto como este exige uma forma de ciência social que seja reflexiva, ou seja, capaz de fornecer uma consideração de suas próprias origens. Este enfoque recebeu o nome de Teoria Crítica.

A expressão "Escola de Frankfurt" indica assim uma abordagem teórico-social que emprega métodos de ciência social qualitativa para desta forma tentar expor a ideologia responsável por diversas patologias sociais.

Podemos dizer que a diferença da abordagem de Habermas em relação à teoria crítica foi o seu interesse em especificar as condições sob as quais as interações humanas estariam livres de dominação. Enquanto a primeira geração da dita escola havia examinado diversas formas de crises econômicas, políticas ou psicanalíticas como fontes de possíveis impulsos emancipadores, Habermas procurou estes impulsos no ideal de interação interpessoal livre, encontrado na vida comum e, especificamente, na comunicação lingüística.

Em termos de desenvolvimentos teóricos, os anos importantes para a segunda geração da Escola de Frankfurt foram de 1971 a 1981. Habermas reuniu a equipe de pesquisadores que deu nova direção à teoria social crítica, produzindo teses sobre a identidade d ego, competência comunicativa, desenvolvimento moral, patologias sociais, processos de racionalização, evolução jurídica e assim por diante. Esse também foi o período em que Habermas intensificou seu estudo da filosofia analítica da linguagem como parte do desenvolvimento de sua pragmática universal da comunicação.

Esse trabalho culminou no texto que orientou a segunda geração da Escola de Frankfurt: a "Teoria da Ação Comunicativa", de Habermas, publicado pela primeira vez em 1981.

Para Habermas e sua geração, o programa dos fundadores da Escola de Frankfurt perdeu a plausibilidade ao não conseguir solucionar o problema das bases normativas. Inspirando-se no conceito de alienação de Marx e em teses de Weber sobre os processos de racionalização ocidentais, Adorno, Horkheimer, Marcuse, Fromm, Benjamin e outros se opuseram à "reificação" do espírito humano pelas forças capitalistas e burocráticas. Na medida em que eles pensavam que seus padrões críticos necessitavam de análise, ofereceram como opção  uma defesa quase metafísica, em vez de uma justificação normativa. Além disso, apesar da aspiração a fornecer uma fundamentação de sua crítica em uma forma auto-reflexiva de ciência social, não conseguiam explicar como pretendiam ocupar um ponto de vista privilegiado do qual poderiam expor a ideologia. Em outras palavras, deixaram de aplicar seu padrão de reflexividade crítica a sua própria teoria.

Tornou-se assim tarefa da Teoria da Ação Comunicativa definir um novo rumo. Nas palavras do próprio Habermas, seu objetivo era desenvolver "uma teoria social preocupada em validar seu próprio padrão crítico".

Para Habermas, as bases normativas da teoria social crítica se encontram na compreensão adequada da ação comunicativa, em particular das "pressuposições idealizadoras" que devem ser efetuadas por uma pessoa que tenta chegar ao entendimento sobre algo com alguém. Essa abordagem combina uma teoria de bases normativas, de como é possível a ação social coordenada, com uma "teoria do discurso", de como as afirmações são justificadas.

Habermas se concentra nas características universais e gerais da ação comunicativa, afirmando que estas fornecem uma base mais defensável para a crítica social.

A Teoria da Ação Comunicativa tem como base o estudo do uso comunicativo cotidiano (Resolvi negritar esta palavra pelo fato de que a compreensão destes processos comunicativos serem do cotidiano talvez tenha sido a maior surpresa que tive com suas aulas, eles ocorrem no dia a dia, e entre pessoas normais. Não são processos especiais em condições controladas... eu não tinha entendido isso ainda em meus estudos.) da linguagem por sujeitos que interagem. Habermas denomina  Pragmática Universal à investigação que tem como objetivo descobrir as regras necessárias, independentemente da língua e do contexto, para se produzir orações bem formadas e proferi-las adequadamente. Assim, podemos dizer que ele aborda não apenas a competência para formar orações, mas a competência de formá-las e empregá-las, como atos de fala, em processos de entendimento, na prática comunicativa cotidiana.

“Todo sujeito que fala tem a intenção de expressar, de forma inteligível, conteúdos verdadeiros sobre o mundo objetivo, corretos em relação às normas vigentes e verazes em relação ao seu mundo subjetivo, para que possa chegar ao entendimento com o ouvinte. Com seu ato de fala, ele levanta pretensões universais de validade, respectivamente, inteligibilidade, verdade, correção normativa e veracidade.”

“Revela-se, aqui, um dos mais importantes elementos da Teoria da Ação Comunicativa, salto de qualidade que a distancia do positivismo e das ciências empírico-análiticas, a saber, o entendimento de que não só as questões de verdade proposicional, mas também as questões normativas e vivenciais são passíveis de fundamentação racional, o que se faz possível em face de uma racionalidade alargada”( Melo, 2005).

Três são os tipos de ação fundamentais na Teoria da Ação Comunicativa.

Ação teleológica (ou instrumental): O ator realiza um fim ou faz com que se produza o estado de coisas desejado, elegendo, em uma situação dada, os meios mais congruentes e aplicando-os de maneira adequada. É uma ação solitária e dirigida ao êxito. 

Ação estratégica: É o tipo de ação que visa ao êxito e ao sucesso de um relacionamento objetivante e manipulativo entre os atores. Passa de ação teleológica para ação propriamente estratégica quando no cálculo se considera as expectativas de ação de pelo menos mais um agente. A cooperação aqui se dá somente pelo cálculo egocêntrico de utilidades. É uma ação social, pois envolve mais de um ator, e tem como característica sempre possuir um elemento de coerção. 

Ação comunicativa: se refere à interação de pelo menos dois sujeitos capazes de linguagem e de ação que entram em relação interpessoal. Os participantes buscam entender-se sobre uma situação de ação para poder assim coordenar de comum acordo seus planos de ação e com eles suas ações. O conceito nuclear aqui é de interpretação, e se refere primordialmente à negociação de definições da situação suscetíveis de consenso. É o tipo de ação que é coordenado pelo entendimento, onde os sujeitos agem desprovidos de reserva e isentos de qualquer força que não sejam as forças de suas razoes. Não aceita nenhum elemento de coerção.

Habermas critica Mead e Durkheim que tentaram desenvolver uma teoria da ação a partir da perspectiva “de dentro”, i. é, dos próprios atores. Ele considera que esta perspectiva é unilateral, porque omite a perspectiva da sociedade enquanto sistema, ou seja, sua abordagem a partir de um observador externo. Um conceito aceitável precisa integrar os dois pólos, o mundo vivido e o sistema.

O mundo vivido é o pano de fundo comum a todos os atores envolvidos numa mesma situação. Partindo do conceito husserliano de horizonte Habermas distingue entre o horizonte individual e coletivo. O primeiro é o conjunto de convicções de base, de saber pessoal e social, de experiência vivida, de intuição, mas especialmente de cultura e linguagem, que permitem ao ator se movimentar de forma inquestionada, numa situação concreta. O horizonte social se compõe do que é partilhado por todos os atores, compondo-se da experiência comum, das mesmas tradições, da língua e da cultura compartilhada.

O mundo vivido reflete, pois, o óbvio, o inquestionado, podendo no entanto modificar-se, na medida em que se modificam as estruturas da sociedade global (especialmente a econômica e a política, responsáveis pela reprodução material da sociedade).

O mundo vivido apresenta assim duas facetas:

A faceta da continuidade, porque é nele que se dão a reprodução cultural, a integração social e a socialização.

A faceta da mudança, porque é nele que se questionam e reformulam as aspirações de validade dos atores em relação aos três mundos formais (o mundo objetivo, o mundo social e o mundo subjetivo). É portanto no mundo vivido que podem ser contestadas as afirmações sobre a verdade dos fatos relativos ao mundo objetivo, a validade das normas relativas ao mundo social e a veracidade das manifestações subjetivas relativas ao mundo das vivencias e subjetividade.

O conceito complementar ao do mundo vivido é o conceito da ação comunicativa. A situação interativa é o lugar onde a tensão entre ambos se concretiza. O saber acumulado, o sempre já sabido e o tradicionalmente repetido constituem  o solo que nós sustenta, mas esta solidez é estremecida pela ação comunicativa. O que sempre foi pode ser posto em questão numa situação de ação comunicativa e debatida pelo grupo, que só respeitará o que tiver sido consensualmente acordado.

Somente depois do entendimento geral, alcançado através da ação comunicativa, pode a solidez do mundo vivido ser restaurada.

Olhado na perspectiva dos participantes, o mundo da vida tem a função de formar contexto e de prover recursos para a ação comunicativa; por sua vez, a ação comunicativa serve à reprodução do mundo da vida. Os participantes da ação comunicativa, ao se entenderem entre si, reproduzem e renovam a cultura; ao coordenarem lingüisticamente a ação, reproduzem lealdades; e a criança, ao participar das interações, incorpora valores sociais e desenvolve habilidades; portanto, a ação comunicativa tem as funções de, no que diz respeito à cultura, realizar a reprodução cultural, isto é, a reprodução e renovação do saber válido; no que diz respeito à sociedade, garantir integração social e produzir solidariedade, logo, estabilidade das ordens sociais; e, no que diz respeito à personalidade, promover os processos de socialização, que formam sujeitos capazes de fala e ação. Dessa maneira, ação comunicativa e mundo na vida se relacionam de forma circular: os sujeitos que interagem uns com os outros utilizando a linguagem são ao mesmo tempo produto e produtores do contexto onde estão inseridos.

Já o conceito de sistema serve para caracterizar as estruturas societárias responsáveis pela reprodução material da sociedade: a economia e o estado burocrático. Trata-se de mecanismos de regulamentação que dispensam a linguagem e o entendimento mútuo, regendo a interação de forma quase automatizada. Constituem meio de orientação para a ação instrumental, assegurando previsibilidade e calculabilidade, tecnificando o mundo material, político e mesmo social. Trata-se de uma ordem social cuja forma predominante de integração não é mais a comunicativa e, sim, a sistêmica, através das formas automáticas do dinheiro e do poder.

Segundo Habermas dois são os processos centrais que marcam a passagem das sociedades ditas primitivas para a modernidade.

O primeiro é a disjunção do mundo vivido e do sistema. Estes constituíam originalmente, uma unidade que foi se desmembrando e desenvolvendo mecanismos autônomos de integração: a integração social, assegurada pela ação comunicativa, e a integração sistêmica, assegurada por mecanismos que dispensam, em princípio, a regulamentação consensual. Nesta última atuam os mecanismos do dinheiro e do poder.

O segundo consiste na colonização do mundo vivido por mecanismos de integração sistêmicos. A ação comunicativa vai sendo gradualmente substituída – também na esfera do mundo vivido – pelos mecanismos dinheiro e poder.

Enquanto herdeira da teoria crítica, a teoria da ação comunicativa tem como tarefa principal denunciar os processos que levam a comunicação sistematicamente distorcida, e a patologias geradas pela colonização do mundo vivido. Cabe-lhe promover a descolonizarão do mundo vivido, ou seja, a expulsão da razão instrumental e a consolidação da ação comunicativa que assegura, através do entendimento e do consenso, a integração social.

Situações isentas de coação, em que se torne possível uma comunicação plena, não distorcida, em que as aspirações de validade possam ser explicitadas, questionadas ou confirmadas consensualmente, constituem o objetivo a ser alcançado na sociedade moderna. 

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