(Da
série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 38)
Depois de fugir do cerco na fazenda dos Tucanos, se perder com o bando,
passar pela vila tomada pela peste e ficar mais de um mês esperando que o bando
se recupere de várias doenças, tudo isso sob a liderança errática de Zé Bebelo,
Riobaldo resolve fazer o pacto.
Ele sai sozinho à noite, cavalga até uma encruzilhada, nas chamadas
Veredas Mortas, e começa a esperar o Maligno.
Quem é que era o Demo, o Sempre-Sério, o Pai da
Mentira? Ele não tinha carnes de comida da terra, não possuía sangue
derramável. Viesse, viesse, vinha para me obedecer. Trato? Mas trato de iguais
com iguais. Primeiro, eu era que dava a ordem. E ele vinha para supilar o ázimo
do espírito da gente? Como podia? Eu era eu – mais mil vezes – que estava ali,
querendo, próprio para afrontar relance tão desmarcado. Destes meus olhos
esbarrarem num ror de nada.
E a
espera começa a se prolongar. Mas ele não se cansa.
Esperar, era o poder meu; do que eu vinha em cata.
E eu não percebia nada. Isto é, que mesmo com o escuro e as coisas do escuro,
tudo devia de parar por lá, com o estado e aspecto. O chirilil dos bichos.
Arre, quem copia o riso da coruja, o gritado. Arrepia os cabelos das carnes.
E não conheci arriação, nem cansaço.
E não
podia fraquejar ou se prender a pertencencias antigas.
E por isso eu não tinha licença de não me ser, não
tinha os descansos do ar. A minha idéia não fraquejasse. Nem eu pensava em
outras noções. Nem eu queria me lembrar de pertencências, e mesmo, de quase
tudo quanto fosse diverso, eu já estava perdido provisório de lembrança; e da primeira
razão, por qual era, que eu tinha comparecido ali. E, o que era que eu queria?
Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa,
a coisa, esta coisa: eu somente queria era – ficar sendo!
E a
noite seguia. E o demo não vinha. E Riobaldo começa a apelar.
Sapateei, então me assustando de que nem gota de
nada sucedia, e a hora em vão passava. Então, ele não queria existir? Existisse.
Viesse! Chegasse, para o desenlace desse passo. Digo direi, de verdade: eu
estava bêbado de meu. Ah, esta vida, às nãovezes, é terrível bonita,
horrorosamente, esta vida é grande. Remordi o ar:
– “Lúcifer! Lúcifer!...” – aí eu bramei,
desengolindo.
Não. Nada. O que a noite tem é o vozeio dum ser-só
– que principia feito grilos e estalinhos, e o sapo-cachorro, tão arranhão.
Riobaldo
insiste.
– “Lúcifer! Satanás!...”
Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio
é? É a gente mesmo, demais.
– “Ei, Lúcifer! Satanás, dos meus Infernos!”
Mas
ele não aparece. E Riobaldo pensa.
E foi aí. Foi. Ele não existe, e não apareceu nem
respondeu – que é um falso imaginado. Mas eu supri que ele tinha me ouvido. Me ouviu,
a conforme a ciência da noite e o envir de espaços, que medeia. Como que
adquirisse minhas palavras todas; fechou o arrocho do assunto.
Riobaldo
ainda espera pelo fim da noite, que demora a passar. E, apesar do sem nome não
ter aparecido, Riobaldo acredita que foi escutado e volta ao bando,
transformado. Agora ele tem certezas, demais. Agora ele vai ser o chefe. Não é
mais Riobaldo, nem tatarana, seu apelido. Agora ele é Urutu Branco.
Na sociologia poderíamos dizer que esse fenômeno se chama profecia
auto-realizável. Na psicologia temos vários nomes, de certa forma semelhantes:
viés de confirmação, dissonância cognitiva, auto-sugestão.
Digamos que todos falam da tendência que temos de, ao acreditarmos em
algo, acabarmos por provocar ou incentivar seu acontecimento. Imagine alguém
que acha que não consegue aprender matemática. Essa pessoa nunca estudará
matemática como estuda outras matérias, com o mesmo fôlego e disposição. Na
certeza de que não consegue aprender, ao menor obstáculo, abandonará o intento.
E depois da prova dirá: “Ta vendo? Olha essa nota baixa! Eu não dou mesmo pra
matemática”. E confirmará a certeza subjetiva, realizará a profecia
auto-realizável. E não compreenderá que, na verdade, ela poderia sim aprender
qualquer matéria, tendo um bom professor, bom material de estudo e disposição
de realmente tentar.
Ou imagine alguém que não acredita que o(a) parceiro(a) o(a) ama. Nada que
se faça para esse decrente no amor será suficiente para que ele se convença de
que é amado. E qualquer sinal insignificante será suficiente para ele julgar
que não é amado. E ao fim de provavelmente muitos anos de sofrimento o(a) parceiro(a)
desistirá, exausto de tentar, e será obrigado a ouvir: “Tá vendo! Eu sabia que
você não me amava!”
A vida é farta em falsos problemas que, apesar de falsos, geram consequências
verdadeiras.
2 comentários:
O que é melhor?
Ou menos ruim?
Não acreditar que se é amado, quando se é?
Ou acreditar-se amado, mesmo quando não se é?
Voto no segundo. No primeiro, ao não acreditar acabo não vivenciando o amor e, de fato, é como se ele não existisse. No segundo, pode ser por ilusão, mas ao menos um pouco podemos nos deleitar... e vai que o amor acaba acontecendo?
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