(Da
série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 36)
Diadorim insiste que Riobaldo não abandone o cangaço.
– ele
botou-se adiante. – “Riobaldo, põe tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o
que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você
pode – mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a
guerra varia de figura...”
Riobaldo Resiste. Nunca considerou que tivesse serventia
para a chefia.
“Arredei:
– “Tu diz missa, Diadorim. Isso comigo não me toca...”
Da
maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável diguice, queria abrandar
minha opinião. Então eu ia crer? Então eu não me conhecia? Um com o meu retraimento,
de nascença, deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros – eu era o contrário
de um mandador. A pra, agora, achar de levantar em sanha todas as armas contra
o Hermógenes e o Ricardão, aos instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas
o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força
se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns
trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela. Eu sabia,
eu via. Eu disse: nãozão! Me desinduzi. Talento meu era só o aviável de uma boa
pontaria ótima, em arma qualquer. Ninguém nem mal me ouvia, achavam que eu era
zureta ou impostor, ou vago em aluado. Mesmo eu não era capaz de falar a ponto.
A conversa dos assuntos para mim mais importantes amolava o juizo dos outros,
caceteava. Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma.”
E Diadorim insiste.
“Diadorim
disse: – “Ei, retenteia! Coragem faz coragem...”
Demais
eu disse: – “Sou Capitão-General?!...”
Antes
tantas astúcias, em empalhar que eu não fosse embora, que eu ficasse preso
naquele urjo de guerra, sem cabo nem ponta, sem costas nem frente, e que
maçava. Recachei. A mão dele, doçura de dada, de leve na minha. Temi afracar. E
em duro repostei, com outra ombrada:
– “Vou
e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre. Lá eu requeiro para mim um
cavalo bom. E trovejo no mundo...”
E Diadorim muda de tom, mas Riobaldo acha que ele tá de
zombaria, ao dizer que ele vai procurar por Otacília. Ou por outras. Mas a
conversa é longa e no percorrer Riobaldo vai se envolvendo com as palavras de
Diadorim e parece não mais ver ironias. No fim, parece nem achar que se trata
de ciúmes de Diadorim. Riobaldo não está irritado, mas com dó.
–
“Então, que quer mesmo ir, vai. Riobaldo, eu sei que você vai para onde:
relembrado de rever a moça clara da cara larga, filha do dono daquela grande
fazenda, nos gerais da Serra, na Santa Catarina... Com ela, tu casa. Cês dois
assentam bem, como se combinam...” Nonde nada eu não disse. Se menos pensei em
Otacília. Nem maldisse Diadorim, de que não se calava. A mais, pirraçou: –
“Vai-te, pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de presente de noivado...” Demorei
no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha
do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o
goiano, que é a caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela,
crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a vereda. Com o
tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti revira altas palmas. A por
perto, se ouvia a algazarra dos companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena
sincera de Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira arara
já revoava. – “... Ou quem sabe você resolve melhor mandar de dádiva para
aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da feiticeira... Arte que
essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do mundo, dá açúcar e sal a todo
passante...” Não era na Rama-de-Ouro – era na Aroeirinha. Mas, por que era que
ele falava no nome de Nhorinhá, com tão cravável lembrança? Ao crer, que
soubesse mais do que eu mesmo o que eu produzia no coração, o encoberto e o
esquecido. Nhorinhá – florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... E tudo neste mundo
podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio. Por isso era que eu gostava
dele em paz? No não: gostava por destino, fosse do antigo do ser, donde vem a
conta dos prazere e sofrimentos. Igual gostava de Nhorinhá – a sem-mesquinhice,
para todos formosa, de saia cor-de-limão, prostitutriz. Só que, de que gostava
de Nhorinhá, eu ainda não sabia, filha de Ana Duzuza. O senhor estude: o buriti
é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o
coquinho as águas mesmas replantam; dai o buritizal, de um lado e do outro se
alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo. – “... Você se casa,
Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei;
ela é bonita, reconheço, gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha sempre
muito amor... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos
dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa
branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...” Diadorim mesmo
repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava
me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de
sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas
borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de
Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando
compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem
deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto
íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de imagem, e já
aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às
festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol.
Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido
o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice.
Com o coração que batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro que
no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele
até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito
definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim foi que foi. Até que
vieram uns companheiros, com João Concliz, Sidurino e João Vaqueiro, que ajuntaram
lenhas e armaram um fogo bem debaixo do paratudo. Ao relançar das labaredas, e
o refreixo das cores dando lá acima nos galhos e folhas, essas trocavam tantos
brilhos e rebrilhos, de dourado, vermelhos e alaranjado às brasas, essas
esplendências, com mais realce que todas as pedras de Araçuaí, do Jequitinhonha
e da Diamantina. Era dia-de-anos daquela árvore? Ao quando bem anoiteceu, foi
assim. A gente só sabe bem aquilo que não entende.
E Riobaldo fala do bloqueio das memórias. Diadorim era o
proibido, o interditado, aquilo no qual ele não poderia nem pensar nem lembrar.
O
senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria recordar muito mais
coisas, que valessem, do esquisito e do trivial; mas não posso. Coisas que se
deitaram, esqueci fora do rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo
nenhum. Acho que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e eu
gostava demais dele.
Riobaldo
não podia lembrar-se de Diadorim, seja por viver no mundo da jagunçagem, seja por
saber que tem responsabilidade pessoal em ter perdido Diadorim.
Quando
presos em preconceitos e estereótipos não podemos ver além de todos os
pré-juízos que nos cercam.
Mas
Riobaldo também não pode lembrar-se de Diadorim por saber que, como ele mesmo
disse, esteve perto do que era dele, e não sabia, não sabia, não sabia. E que,
justamente ao negar si mesmo, em seus medos e inquietações, negou juntamente
sua sensibilidade e percepção. E acabou fechado, duro, valente, provocando a
morte de Diadorim.
E resta então a saudade e seus vazios.
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