42. E Riobaldo tem mostras do amigo que é
Diadorim
(Da
série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 42)
Certo
grego já disse que, para diferenciar um amigo de um bajulador é importante
observar como a pessoa se porta quando a fortuna nos sorri, quando as coisas
nos engrandecem e nos fazem sentir maiores do que somos. O bajulador, agora que
somos os tais, vem a nos adular e a ressaltar assim nosso auto-engano, nossa
ilusão de que nossa frágil e humana condição foi superada. O amigo não, esse
vem tentar nos trazer de volta a terra, nos atentar para nossa vaidade e da
importância de se relembrar o que realmente tem valor em nossa vida.
Eis
Diadorim a tentar acordar Riobaldo do entorpecimento de quando a fortuna lhe
sorriu, de quando virou o novo chefe.
E era o que Diadorim agora desfazia em mim, no amargoso.
- “Repuno: que você está diferente de toda pessoa, Riobaldo...
Você quer dansação e desordem...”
Riobaldo
não gosta muito do que ouviu.
Mexi meu cuspe dentro da boca.
Diadorim
continua.
- “ ... A bem é que falo, Riobaldo, não se agaste
mais... E o que está demudando, em você, é o cômpito da alma – não é razão de
autoridade de chefias...”
Riobaldo
sente a amizade de amor na voz de Diadorim. Mas tem dificuldades, mesmo assim,
de receber o dito.
Diadorim disse, e a voz dele, ecosa, me rodeou; as
certas sinceridades. Amizade de amor surpreende uns sinais da alma da gente, a
qual é arraial escondido por detrás de sete serras? Aí, demorei. Eu ia aceitar
essa repreensão? Ah, nunca.
Mas
Riobaldo fica preocupado, Diadorim falou da alma. Como poderia ele saber da
noite na encruzilhada, tentando o pacto? E o pacto nem ocorreu...
Não vê, que nem precisava. Eu tinha guardado meus
ouvidos. Eu não queria escutar o reto, naquela ocasião, por desânimo de ser.
Diadorim tinha citado alma. O que ele soubesse, não soubesse, não tinha ciência
de coisa nenhuma, da arte em que eu tinha ido estipular o Oculto, nas Veredas Mortas,
no ermo da encruzilhada... Aquilo não formava meu segredo? E, mesmo, na dita
madrugada de noite, não tinha sucedido, tão pois. O pacto nenhum – negócio não
feito. Aprova minha, era que o Demônio mesmo sabe que ele não há, só por só,
que carece de existência. E eu estava livre limpo de contrato de culpa, podia
carregar nômina; rezo o bendito!
Diadorim
estranhava os novos comportamentos de Riobaldo. Como quando se defrontou com nhô
Constâncio Alves e resolveu, do nada, que teria que matá-lo. Mas é verdade que ficou
dividido, matava ou não matava? E arrumou uma solução alternativa: faria a ele
uma pergunta. Respondendo mal, morreria.
Aí a pergunta seguinte: - “Se sendo que o senhor é
de minha terra, a pois: conheceu um homem que se chamava Gramacedo? Será, o
senhor é parente dele?”
Só esperei. Ele dissesse que tinha conhecido o
outro, e, aí, morria, por eu não poder não-matar; por quanto a salvação dele mermava,
que nem morrão de candeia. E assim, com obrigação minha mesma, eu tinha para
sempre combinado.
Mas,
quando a mão de Riobaldo já tinha pousado no revólver, Nhô Constâncio Alves
disse que não tinha conhecido ninguém com esse nome.
Riobaldo
decide não matá-lo. Mas quando ele vai embora, diz a todos, novamente tentando
se impor poderoso:
- “Perdoei este; mas, o primeiro que se surgir,
destas estradas, paga!”
Eu disse. Eu ia cumprir?
E mais
adiante encontram um sujeito, que vinha montado numa égua, acompanhado por um
cachorrinho. Riobaldo vai se convencendo que ele merece morrer, que não merece
dó. Ele pergunta pro menino que segue com o bando, o Guirigó, se deveras mata
este homem. O sujeito parece escutar a conversa e começa a tremer.
E
Riobaldo perde a vontade de matar. Por mais que queria eliminar de si qualquer
delicadeza, segue não conseguindo. Queria permitir que o homem fosse embora. Mas
se sentia na obrigação de matar. Porque não podia voltar atrás na palavra dada.
E começa a arrumar justificativas. Diz que viu primeiro o cachorrinho, e que
ele é que deve morrer. E manda soltar o homem e mandá-lo embora.
O povo
começa a preparar o bicho para a execução e Riobaldo fica com dó de novo. E agora
diz que viu primeiro foi a égua. Mas um colega de bando acaba vendo valor na
égua, e pede pra ficar com ela. E Riobaldo então diz:
Delibero o certo: o primeiro que eu vi, foi essa
égua. Ela tinha de receber a morte... Ah, mas égua não é gente, não é pessoa
que existe. E que? Ah, então, não é cabível que se mate a égua, por tanto que a
minha palavra decidida era de se matar um homem!
Não executo. A alçada da palavra se perdeu por si e
se gastou – pois não está dito? Acho e dou que o negócio veio ao terminado.”
Verdadeiramente, com alegria, foi que todos me
aprovaram. Ou seja que me admiravam em real, pela esperteza de toda solução que
eu achava(...)
Riobaldo
volta a interrogar Diadorim, sobre o recado que teria mandado a alguém, ainda
incomodado com o amigo. Descobre que o recado foi para Otacília, sua noiva.
Diadorim esperou, sempre com serenidade. O amor
dele por mim era de todo quilate: ele não tartameava mais de ciúme nem de medo.
Disse assim:
- “Pedi a ela que rezasse por você, Riobaldo...
Assim pela esperança de saudade que ela tivesse, que não esbarrasse de rezar, o
todo tempo, por costume antigo...”
Riobaldo
retruca.
- “Ah, não! Ah, você acha que eu careço de suas
rezas orações, por minha ajuda, Diadorim?”
- “Acho, de manhã à noite, Riobaldo... Demais. Nem
sei mesmo se alguém te botou o malefício... Tua mãe, mesma, que estivesse viva,
achava...”
Riobaldo
se envergonha e se ofende. Ainda não consegue receber o amigo que com ele se
preocupa.
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