(Da
série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 43)
Riobaldo
inicia novo hábito, sair de madrugada, na escuridão, e voltar já com o café
cheirando. Numa dessas voltas ele encontra em cima dos galhos de uma arvore um
homem escondido.
E era um homem em chagas nojentas, leproso mesmo,
um terminado.
Riobaldo
sente horror frente ao doente. E resolve matá-lo.
Eu tinha de esmagalhar aquela coisa desumana.
- “Ô guaimoré!” – xinguei. E gritei pulhas. Acho
que insultava era por de certo modo retardar meu dever?
E,
quando mira da cabeça do homem, ouve alguém se aproximando a cavalo. É Diadorim.
Riobaldo embolsa a arma. E sai a galope.
Mas eu virei rédea e roseteei, com brado, meu
animal cumprindo: rompemos em galope que era um abismo...
Como olhei, Diadorim estava acolá, estacado parado
no lugar, perto da árvore do homem. Por certo ele tinha enxergado a coisa viva,
e estava desentendendo meu espaço, esses desatinos.
E
Riobaldo fala de seu nojo.
A enquanto
sobejasse de viver um lázaro assim, mesmo muito longe, neste mundo, tudo
restava em doente e perigoso, conforme homem tem nojo é do humano.
Temos nojo
daquilo que foge da ordem, do estabelecido, daquilo que sentimos que está fora
do lugar. A saliva trocada durante um beijo carinhoso não enoja. Mas a mesma
saliva vira cuspe se arremessada em nossa direção, se deixada cair em nossa
boca. Riobaldo, depois de tornado chefe, tem nojo daquilo que nele lembra quem
ele de fato é, daquilo que nele lembra o humano que carrega em si.
Humano
remete a terra, solo, em sua etimologia. Somos filhos da terra, em detrimento
dos filhos dos deuses, extraordinários inumanos. Humilde trás em si essa mesma
relação, etimologicamente remete ao de baixa estatura, próximo ao solo.
Riobaldo
sentia sua condição anterior como falha e limitada e fora do que deveria ser. Ele
deveria ser um ser sem medo nem temor. Ele deveria não hesitar nem ter dúvidas.
Mas, por mais que tenha mudado depois do pacto – que nem houve -, Riobaldo
sente dentro de si a presença dele mesmo, daquele que sempre foi, de sua
profunda humanidade. E tem nojo, ela é imperfeita, não está na ordem ideal que
ele almeja. E, tal como o lazarento, deve ser purificada, eliminada.
Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para
emendar o defeituoso.
Riobaldo
volta a galope, arma em punho. Mas a deixa cair ou, não sabe bem, é como se alguém
arrancasse a arma de sua mão.
Cheguei, esbarrei. Meu cavalo, tão airoso, batia
mão, rapava; ele deu um bufo de burro. Vi Diadorim. Mas o leprento tinha ganhado
para se ir, graças que não assisti à arriação dele: decerto descendo às
pressas, se escapando de gatas nas moitas de feijão-bravo. Desse, tive um
cansaço enorme; pode que seja por não saber se matava ou não matava, caso ele
ainda estivesse lá.
Mas,
ao ver Diadorim próximo Riobaldo se abala.
Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado,
reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os
olhos-vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como
o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que
juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão
formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era
belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o
entender da gente por si não alcança.
Era
mais uma coisa saindo da ordem. Riobaldo tenta colocar tudo no lugar certo,
novamente.
Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu
estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo
valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um
homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado
rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era
o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor
bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa... Aquilo eu repeli?
É, ele
tentou repelir, mas não sabe mesmo se conseguiu. E segue Riobaldo lutando sua
luta mais dura: a consigo mesmo.
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