(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”,
parte 37)
Após fugirem do cerco na fazenda dos Tucanos o bando, ainda guiado por Zé
Bebelo, consegue novos cavalos e saí em busca dos arreios. Mas se perde. Entra
num caminho com avisos de proibido e encontram uns 15 homens, em farrapos, mas
armados com foices, enxadas e garruchas antigas, que não querem deixar que
sigam. Riobaldo desconfia que sejam doidos.
Quando os quase loucos percebem que o bando que chega é enorme,
estremecem. E desculpas pedem, pensavam que fossem de uma cidadezinha vizinha
possuída pela peste.
Riobaldo até tinha mudado de opinião, novamente, sobre Zé Bebelo. Quando o
conheceu o tinha admirado, por sua coragem, presteza de pensar e inteligência.
Quando estavam cercados na fazenda desconfia dele, de que possa trair a todos.
Depois da fuga volta a admirá-lo. Mas agora o percebe errático, inseguro e político
demais com os poderosos.
Riobaldo começa a achar que Zé Bebelo é falho demais para se manter como
chefe. Ele fez o bando se perder, em seguida passou por dentro de uma cidade
contaminada pela peste, depois perde muito tempo numa fazendinha isolada e, com
seu pessoal doente, não manda ninguém buscar remédios. E Riobaldo também começa
a perceber que Zé Bebelo, sempre tão valente, sente medo de se adoentar.
Riobaldo vê que os jagunços são amigos dos amigos, mas dispostos à maldade
com a gente comum dos vilarejos. E se assusta com isso.
Lacrau, um companheiro de bando, conta a Riobaldo que Hermógenes era
pactário.
E, veja, por que sinais se conhecia em
favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah, pois porque ele não
sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava,
tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento
alguma revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? –
“Ah, que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma em pagamento. Ora, o
que é que vale? Que é que a gente faz com alma?...” O Lacrau se ria, só por
acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que
ele tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo. – “Pra
matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou
a cabeça dele com sangue certo: que foi o de um homem são e justo, sangrado sem
razão...” Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme, medonha
mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do que a de
fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de todos.
(...)Só o Hermógenes, arrenegado,
senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a
maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em
tantas alturas.
E Riobaldo volta atrás na decisão de abandonar a jagunçagem.
Mas Diadorim era quem estava certo: o
acontecimento que se carecia era de terminar com um. Diadorim, o Reinaldo, me
lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando
meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa afundadeira.
Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do
Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.
Aqui estamos em um ponto importante do livro. Riobaldo vai perdendo a
confiança na liderança de Zé Bebelo. E volta a se sentir na obrigação da
vingança. Descobre a crença que Hermógenes tenha feito o pacto com o demo. E se
sente, ele mesmo, tentado a fazer o mesmo.
Aquilo, que eu ainda não tinha sido
capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse.
– “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...” – era como eu me aprazava. O dum
dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar constância da minha
decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo
continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem.
E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto...
Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno – fechar o
trato, fazer o pacto!
Vejo que o senhor não riu, mesmo em
tendo vontade. Também tive. Ah, hoje, ah – tomara eu ter! Rir, antes da hora, engasga.
E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: aí, de sopesar minhas
seguidas forças, como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca
para relumiar.
E veio mesmo outra manhã, sem assunto,
eu decidi comigo: – É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem motivo para
sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não é que, não foi de medo. Nem
eu cria que, no passo daquilo, pudesse se dar alguma visão. O que eu tinha, por
mim – só a invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que algum
tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais – é peta! – nonada. Do
Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma
dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido
sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por
cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia
documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e
forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei.
E Riobaldo desiste, ou melhor, adia o pacto.
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