terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

37. E Riobaldo fica tentado a fazer o pacto com o que não existe



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 37)


Após fugirem do cerco na fazenda dos Tucanos o bando, ainda guiado por Zé Bebelo, consegue novos cavalos e saí em busca dos arreios. Mas se perde. Entra num caminho com avisos de proibido e encontram uns 15 homens, em farrapos, mas armados com foices, enxadas e garruchas antigas, que não querem deixar que sigam. Riobaldo desconfia que sejam doidos.

Quando os quase loucos percebem que o bando que chega é enorme, estremecem. E desculpas pedem, pensavam que fossem de uma cidadezinha vizinha possuída pela peste.

Riobaldo até tinha mudado de opinião, novamente, sobre Zé Bebelo. Quando o conheceu o tinha admirado, por sua coragem, presteza de pensar e inteligência. Quando estavam cercados na fazenda desconfia dele, de que possa trair a todos. Depois da fuga volta a admirá-lo. Mas agora o percebe errático, inseguro e político demais com os poderosos.

Riobaldo começa a achar que Zé Bebelo é falho demais para se manter como chefe. Ele fez o bando se perder, em seguida passou por dentro de uma cidade contaminada pela peste, depois perde muito tempo numa fazendinha isolada e, com seu pessoal doente, não manda ninguém buscar remédios. E Riobaldo também começa a perceber que Zé Bebelo, sempre tão valente, sente medo de se adoentar.

Riobaldo vê que os jagunços são amigos dos amigos, mas dispostos à maldade com a gente comum dos vilarejos. E se assusta com isso.

Lacrau, um companheiro de bando, conta a Riobaldo que Hermógenes era pactário.

E, veja, por que sinais se conhecia em favor dele a arte do Coisa-Má, com tamanha proteção? Ah, pois porque ele não sofria nem se cansava, nunca perdia nem adoecia; e, o que queria, arrumava, tudo; sendo que, no fim de qualquer aperto, sempre sobrevinha para corrigimento alguma revirada, no instinto derradeiro. E como era a razão desse segredo? – “Ah, que essas coisas são por um prazo... Assinou a alma em pagamento. Ora, o que é que vale? Que é que a gente faz com alma?...” O Lacrau se ria, só por acento. Ele me dizia que a natureza do Hermógenes demudava, não favorecendo que ele tivesse pena de ninguém, nem respeitasse honestidade neste mundo. – “Pra matar, ele foi sempre muito pontual... Se diz. O que é porque o Cujo rebatizou a cabeça dele com sangue certo: que foi o de um homem são e justo, sangrado sem razão...” Mas a valência que ele achava era despropositada de enorme, medonha mais forte que a de reza-brava, muito mais própria do que a de fechamento-de-corpo. Pactário ele era, se avezando por cima de todos.

(...)Só o Hermógenes, arrenegado, senhoraço, destemido. Rúim, mas inteirado, legítimo, para toda certeza, a maldade pura. Ele, de tudo tinha sido capaz, até de acabar com Joca Ramiro, em tantas alturas.

E Riobaldo volta atrás na decisão de abandonar a jagunçagem.

Mas Diadorim era quem estava certo: o acontecimento que se carecia era de terminar com um. Diadorim, o Reinaldo, me lembrei dele como menino, com a roupinha nova e o chapéu novo de couro, guiando meu ânimo para se aventurar a travessia do Rio do Chico, na canoa afundadeira. Esse menino, e eu, é que éramos destinados para dar cabo do Filho do Demo, do Pactário! O que era o direito, que se tinha. O que eu pensei, deu de ser assim.

Aqui estamos em um ponto importante do livro. Riobaldo vai perdendo a confiança na liderança de Zé Bebelo. E volta a se sentir na obrigação da vingança. Descobre a crença que Hermógenes tenha feito o pacto com o demo. E se sente, ele mesmo, tentado a fazer o mesmo.

Aquilo, que eu ainda não tinha sido capaz de executar. Aquilo, para satisfazer honra de minha opinião, somente que fosse. – “Ah, qualquer dia destes, qualquer hora...” – era como eu me aprazava. O dum dia, duma noite. Duma meia-noite. Só para confirmar constância da minha decisão, pois digo, acertar aquela fraqueza. Ao que, alguma espécie aquilo continha? Na verdade real do Arrenegado, a célebre aparição, eu não cria. Nem. E, agora, com isto, que falei, já está ciente o senhor? Aquilo, o resto... Aquilo – era eu ir à meia-noite, na encruzilhada, esperar o Maligno – fechar o trato, fazer o pacto!

Vejo que o senhor não riu, mesmo em tendo vontade. Também tive. Ah, hoje, ah – tomara eu ter! Rir, antes da hora, engasga. E eu me enviava pelo sério. Uma precisão eu encarecia: aí, de sopesar minhas seguidas forças, como quem pula a largura dum barranco, como quem saca sua faca para relumiar.

E veio mesmo outra manhã, sem assunto, eu decidi comigo: – É hoje... Mas dessa vez eu ainda remudei. Sem motivo para sim, sem motivo para não. Delonguei, deveras. Não é que, não foi de medo. Nem eu cria que, no passo daquilo, pudesse se dar alguma visão. O que eu tinha, por mim – só a invenção de coragem. Alguma coisice por principiar. O que algum tivesse feito, por que era que eu não ia poder? E o mais – é peta! – nonada. Do Tristonho vir negociar nas trevas de encruzilhadas, na morte das horas, soforma dalgum bicho de pêlo escuro, por entre chorinhos e estados austeros, e daí erguido sujeito diante de homem, e se representando, canhim, beiçudo, manquinho, por cima dos pés de bode, balançando chapéu vermelho emplumado, medonho como exigia documento com sangue vivo assinado, e como se despedia, depois, no estrondo e forte enxofre. Eu não acreditava, mesmo quando estremecia. T’arreneguei.

E Riobaldo desiste, ou melhor, adia o pacto.



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