(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”,
parte 22)
E
Riobaldo escuta a estória de Maria Mutema e nada comenta sobre ela. Em todo o
restante do livro o nome Mutema não aparece mais. E esse conto dentro do
romance reúne em si muito do que o
romance diz como um todo.
Para
quem ficou com preguiça de ler na postagem anterior o trecho-conto todo, vai
aqui um resumo:
Maria
Mutema vivia num lugarejo qualquer e em certo amanhecer seu marido está morto,
na cama. Ele é enterrado e, algum tempo depois, a viúva Mutema dá de ir sempre
à igreja, confessando-se a cada 3 dias. O padre da cidade dá claros e
progressivos sinais de irritação e indisposição de ouvir Mutema em confissão.
Ela insiste em confessar-se frequentemente. O padre Ponte vai definhando acaba
por morrer e, após isso, Mutema deixa de ir à igreja. Tempos depois aparecem na
cidadezinha os padres missionários, que iam pelas cidades rezando, casando,
batizando, resolvendo as pendências. Na missa final, a mais importante, bem na
hora do “Salve Rainha”, Mutema adentra na igreja. O padre estrangeiro, que
conduzia a cerimônia, engasga e quase para a oração no meio, o que é proibido.
Mas recupera-se, termina-a e de pronto fala firme: que essa que acabou de
entrar saia já, com seus “maus segredos”. E que, se quiser se confessar que vá
à entrada do cemitério, que é lá que ele irá ouvi-la, lá “onde estão dois
defuntos enterrados”.
Mutema
cai de joelhos e confessa, ali mesmo na igreja, que matou sim, matou o marido
quando este dormia, jogando chumbo derretido em seu ouvido, sem motivo nenhum,
e depois, na igreja, resolveu falsear, dizer ao padre Ponte que matou por estar
apaixonada por ele. Ele acreditou, foi se desgostando e acabou morrendo.
E
ela perde perdão, vai presa e, de ”tão pronunciado sofrer”, o povo começou a
achar que ela estava ficando santa.
Maria
Mutema matou seu marido sem que nem porque. Matou. Raiva não tinha, motivo não
havia. Nem sabia porque. Depois matou padre Ponte da mesma maneira. Enjoou
dele. E foi tomando gosto em vê-lo em definhando, adoecendo, na medida em que
"confirmava o falso", que mentia dizendo que tinha matado porque
gostava dele. Mas motivo, por que, causa clara? Não havia.
Maria
Mutema: seu nome indica mudez. Indica que não há o que falar, por se viver no
vazio, na falta de sentido. E é sem sentido mesmo e sem motivo nenhum que mata
o marido. A violência pura, gratuita, sem motivação. Talvez seja mesmo esse o
maior terror: a junção da violência com a falta de sentido; a máxima negação do
outro, chegando mesmo a sua eliminação física e o máximo distanciamento de
qualquer significado ou vínculo.
Mutema
era mulher que não ria. Não há possibilidade de graça onde não há sentido
algum. A vida vazia enjoa, entedia, desumaniza. E ela se torna “Esse lenho
seco”, nada brota dali, nada de novo surge dali.
Há
a mesma imagem nos dois crimes de Maria Mutema: curiosamente, a mulher muda
mata pelo canal auditivo. Introduz por essa via o chumbo derretido que matará
seu marido; introduz por essa mesma via a maledicências, o falso, que irá matar
o padre Ponte.
Nos
dois casos, a transformação do móvel no fixo. O chumbo se solidifica dentro do
crânio e produz um som ao ser sacudido, comprovando o crime. O falso se
solidifica em certeza dentro da cabeça do padre Ponte e acaba provocando a sua
morte.
Padre
Ponte acreditou na mentira dita por Mutema. Aceitou como verdade por ser preso a
estigmas, porque "Uma pecha ele tinha: ele relaxava". Pecha, palavra
antiga, remete a balda, defeito e tacha, e estas, por sua vez, remetem a falha,
falta, podre, mancha, nodoa, erro, imperfeição e vício. Padre Ponte possuía uma
crença a respeito de si mesmo: era um padre imperfeito, amigado e com filhos. Preso
no seu pressuposto de culpa, no seu estigma que ele sentia como uma forma de inferioridade,
preso na auto-referência, acreditou no Maria Mutema lhe disse. Aparentemente
eram segredos aprisionadores, na verossimilhança eram segredos de confissão,
mas em verdade se tratava de confirmar a mentira. Como disse Guimarães Rosa,
"maus segredos". E estes "maus segredos" emudeciam pela
vergonha e pelo receio da estigmatização. Calaram fundo e aprisionaram. Maria Mutema
foi precisa: atirou no alvo certo. Como o padre já tinha o estigma de ser
amigado o dito por Maria Mutema era verossímil, e padre Ponte "caiu".
É
a certeza imutável matando, destruindo o movimento e a mudança característicos
do que é vivo. É aqui o núcleo do romance: Riobaldo, o homem das incertezas e
das dúvidas, do medo e da angústia, busca falsa solução para sua aflição, seja
no pacto para perder o medo e adquirir coragem, seja na aproximação com
Diadorim, no afã de conseguir sua coragem, apresentada como perfeita, sem
nenhum medo, fechada na ideia e no couro. E aí está sua perdição, acaba por não
ver o sentido maior que diante de si despontava, o seu amor por Diadorim, que
morre, outra vítima das certezas imutáveis.
O
padre estrangeiro descobriu tudo. Curioso que o tema do sortilégio foi tratado
no romance um pouco antes. O fato de ser um padre estrangeiro parece indicar
que somente um olhar de fora, um olhar mais limpo e menos contaminado pelos
estereótipos, é que poderia ver o que acontecia com clareza.
A estória
de Maria Mutema é um conto plantado dentro do livro de Guimarães Rosa.
Riobaldo, guerreando e atormentado com dúvidas, tenta conversar com Joe
Bexiguento, jagunço como ele. De antemão Riobaldo julga que seu companheiro de
guerra é homem de ideias curtas. Como que uma pessoa assim teria o que dizer sobre
suas inquietações? Mas Guimarães Rosa mostra que a verdade pode sair da boca de
qualquer um, e faz Joe narrar uma história sobre o bem e o mal, sobre Deus e o
Diabo, sobre a culpa e o perdão, sobre como é difícil separar as coisas em
compartimentos estanques. Uma narrativa onde não julga as personagens, mas
conta o que ocorreu. Deixa que Riobaldo reflita e tire suas conclusões, não
fechando os sentidos de sua história. E Riobaldo leva o livro todo fazendo
estas reflexões.
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