- Eu não tenho amigos.
- Você tem sua irmã.
Ela é sua amiga.
- Minha irmã não vale!
Eu não tenho amigos de fora da minha família. Eu não tenho uma amiga com quem
possa desabafar.
- Irmã vale sim. Ela
era praticamente sua inimiga, e vocês se reaproximaram. De modo que foi uma
conquista.
- Mas eu queria ter
amigos e amigas que não fossem meus parentes.
- Eu não vejo você
cultivar amizades. Chamar, convidar... correr o risco...
Ana fez essa queixa
quando, na comemoração de seu aniversário, compareceram sete pessoas. Todas
parentes. No ano seguinte parece que ela mudou algo. Sessenta pessoas compareceram ao seu aniversário. Todos
amigos? Certamente não. Eram colegas, conhecidos e talvez até cúmplices ou
comparsas. Mas de qualquer forma, se deram ao trabalho. Foram em casa, tomaram
um banho, trocaram de roupa, compraram um presentinho e foram ao barzinho,
encontrá-la. Gostavam dela, quiseram se aproximar. Colegas também são
importantes. E dentre esses, alguns anos mais tarde, duas ou três pessoas
tinham se tornado realmente amigas.
O que mudou?
Em primeiro lugar, Ana
se colocou o problema. E se dispôs a arriscar. Arriscar a convidar as pessoas a
participarem da sua vida. Arriscar a sair da reserva que ela julgava ser um
lugar seguro. Arriscar a se expor, entrar em relação, trocar, enriquecer, mesmo
que com alguns percalços.
Carlos Dummond de
Andrade tem um belo poema, que vinha escrito atrás de uma antiga nota de 50
cruzados novos:
“Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se
reconheça,
Todas as mães se
reconheçam,
E que fale como dois
olhos.
Caminho por uma rua
Que passa em muitos
países.
Se não me veem, eu
vejo
e saúdo velhos amigos.”
Quem nunca passou por
essa situação? Se defrontar com um antigo amigo na rua, por acaso. Parece que é
ele, mas não temos certeza... quantos saúdam os velhos amigos? Ou a maioria faz
como eu fazia, fingia que não via... vai que não é ele? Vai que ele não me
reconhece?
Nós não estamos
acostumados a manifestar o amor. Manifestamos o ódio, a tristeza ou a
indiferença com muito mais facilidade. Mas manifestar o interesse, o amor,
abrir-se para hospedar o outro, se expor? Dificilmente o fazemos.
Eu não conhecia bem o
Alberto. Somente tinha passado uma tarde fazendo macarrão com ele, para uma
turma de amigos da minha esposa. E algumas semanas depois ela me perguntou se
eu queria ir a um churrasco dessa mesma turma. Perguntei se Alberto iria. Ela
disse que não sabia, na verdade ele não era da turma, era irmão de uma amiga e
só fez o macarrão porque cozinhava muito bem. Liguei pra casa deles, a irmã
atendeu. Pedi que chamasse o irmão.
- Alberto, sou eu,
fulano, tá lembrado? Marido da fulana, macarrão a tarde toda...
- Ah! Claro... Tudo
bom?
- Tudo bem... Estava
conversando com minha esposa aqui... Você está sabendo do churrasco?
- Ah... Sei... Parece
que vai ser na casa da Beltrana né?
- Isso. Você vai?
- Não sei... Ainda não
tinha pensado direito nisso. Por quê?
- Porque eu só vou se
você for...
E virou um dos meus
melhores amigos.
Com José foi parecido.
Estávamos eu e minha esposa, almoçando em um shopping quando ele passou. Conhecíamos-nos
superficialmente. Conversamos um pouco... Tudo bom? Comprando tinta pra pintar
o apartamento também? Ich... Cuidado com o pintor, se pagar antes ele some...
Sempre tive uma simpatia por ele. Parecia-me uma boa pessoa, um cara legal. Ele estava acompanhado da namorada, que não conhecíamos. Perguntei:
Sempre tive uma simpatia por ele. Parecia-me uma boa pessoa, um cara legal. Ele estava acompanhado da namorada, que não conhecíamos. Perguntei:
- Vocês vão almoçar?
Vão se servir na comida a quilo?
- Isso.
- Então por que vocês não
se servem e vem sentar aqui com a gente?
- Tudo bem pra você? –
ele perguntou para a namorada que não nos conhecia.
- Tudo.
- Então tá.
E se sentaram conosco.
Deviam ser meio dia, uma hora. Quando finalmente nos levantamos, depois de
cafezinho, sorvete, chope e batatinhas, já era noite. Tornou-se um de meus
melhores amigos. Mas nada teria acontecido se eu não tivesse arriscado o
convite.
Nós não estamos
habituados a manifestar o amor, o interesse.
A amizade demora um
pouco. É preciso, como os antigos diziam, comer “uma saca de sal juntos”. Leva
tempo e têm acidentes de percurso. Algumas vezes, fatais. E a amizade acaba.
Mas outras, não. E a amizade tem tanto a nos oferecer...
Santa
Tereza Dávila diria: “Oh! Como é bom o entendimento entre duas almas. Há sempre
o que dizer sem cansaço!”
E a maior parte das
pessoas está tão só. Nunca houve tantos. Nunca houve tantos tão sozinhos. Bons
anos atrás conhecíamos quase todos que pudessem nos interessar. Nas praças, nos
adros das igrejas, nas escolas, nos mercados, encontrávamos praticamente todo
mundo. Agora não conhecemos nem 10 por cento das pessoas do nosso prédio. Tão próximos
e tão distantes.
Daí a popularidade das
salas de bate papo, dos sites de relacionamento e outros mecanismos virtuais. A
internet é a nossa ágora, nossa praça pública.
Mas temos que
preservar alguma intimidade, temos que preservar nosso espaço pessoal, e não se
expor tanto. É certo que temos sim que preservar um espaço pessoal e alguma
intimidade. Mas não é disso que estou falando. Estou falando de uma reserva que
não diz respeito a esse espaço, que não diz respeito a uma sozinhez inevitável,
da qual nos falou Paulo Mendes Campos, em sua crônica “Para Maria da Graça”.
Vamos viver nossa vida e morrer nossa morte. Ninguém fará isso por nós. E é bom
que aprendamos a ficar bem mesmo quando sozinhos. Mas reserva é outra coisa...
Quando se viu infértil
Pedro ficou abaladíssimo. E não esperava ficar assim. Sempre achou muito boa a
hipótese de uma adoção. Mas sua esposa queria gerar um filho. E Pedro se viu
como responsável pela infelicidade dela. Agoniado, conversava com muitos
conhecidos a respeito. Sua esposa não fazia o mesmo. Abriu-se a respeito de seu
sofrimento com pouquíssimos. Pediu inclusive que Pedro não comentasse com a
família dela, tinha medo que eles se intrometessem demais. Pedro respeitou seu
pedido. Mas depois de uns meses disse a ela:
- Você deveria
conversar mais sobre nossa dificuldade de ter filhos, se abrir com mais pessoas.
- Eu não gosto que as
pessoas se intrometam na minha vida.
- Cada vez que
converso com alguém estou elaborando melhor tudo que tá acontecendo comigo. Sou
eu que estou estéril, nem é você. Você precisa dividir isso com alguém.
- Não me sinto bem em
falar disso.
- Nesta reserva você
acaba muito sozinha e perdida na sua dor.
A reserva é um tipo de
solidão dolorosa que amplifica ainda mais – e desnecessariamente – nosso sofrimento.
Ao invés de nos proteger nos deixa ainda mais frágeis e vulneráveis. Nós
precisamos dos outros, precisamos conviver, trocar experiências, compartilhar. Como
tão bem disse Julian Marias “Animais coexistem. Objetos coexistem. Seres
humanos convivem”. Se alguém tentar se intrometer em demasia na nossa vida, ou
se aproveitar da situação para nos manipular, cabe a nós impedir que isso
aconteça. E quanto menos reservados formos, mais teremos condições de nos
defender, pois saberemos melhor como conviver.
Por fim, uma
entrevista de Cornélio Pena. Um dos mais belos textos que conheço. E que fala
tão bem da saudade a que estamos condenados se não conseguimos quebrar as
barreiras de nossa reserva.
“Minha mãe era
uma figura de constante e misteriosa doçura, sempre mergulhada em um sonho
longínquo, como se toda ela estivesse envolvida em seu manto de viuvez, de
crepe suave, quase invisível, que não deixava distinguirem-se bem os seus
traços, os seus olhos distantes. Andava pelas salas de nossa casa em silencio,
sentava-se em sua cadeira habitual sem que se ouvisse o ruído de seus passos,
e, quando falava, era em um só tom, sem que nunca a impaciência a alterasse. A
influência que exerceu sobre os caracteres inquietos e contraditórios de seus
filhos foi intensa, invencível, mas serena, e se fazia sentir apenas por
intuição, pela rede mágica que nos prendia na preocupação sufocante de não
provocar uma nuvem de tristeza que perturbasse o seu olhar altivo e doce, que
nos falava com irresistível eloquência. Parecia a nós todos que um gesto mais
forte, uma palavra mais alta, de nossa parte, viria quebrar aquele encanto, e
partir o cristal muito frágil que a mantinha entre nós, e vivíamos assustados,
retidos pelo medo de agir, de sentir, de viver, de forma poderosa e plena, e
assim despertá-la, e poderia então ouvir as batidas de nossos corações,
agitados pela maldade do mundo. Sabíamos todos, contado em segredo pelas outras
senhoras, o rápido e doloroso drama que a tinha despedaçado. Tendo casado em
Paris, seguira para Itabira do Mato Dentro, e, depois de oito anos de
felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada, tentou refugiar-se junto
de minha avó, que ficara em Honório Bicalho, onde estava a mineração de ouro de
minha família materna, e, na estação, soube que ela falecera na véspera. Quis
então ir para junto da irmã materna e sua madrinha, em São Paulo, mas esta
também morreu, no mesmo mês... e assim se fechara sobre ela uma lousa
inviolável de renúncia e de tristeza, que nunca podemos vencer, durante tantos
anos de sobrevivência. Quando fecho os olhos ainda a vejo, a mesma de todo o
tempo, e procuro em seu rosto ou em suas mãos um sinal de paz e de espera. Mas
não o vejo, e me lamento porque não a fiz sofrer sem reservas, porque não a fiz
chorar todas as lágrimas da maternidade infeliz, porque não despejei em seu
coração todo o fel que prendi ferozmente no meu, porque não lhe pedi socorro
aos gritos, não deixei que eles saíssem de minha boca, fechada com violência
pelo medo e pela incompreensão... E é por isso que desejava guardar sua imagem
muito pura, muito secreta, e tenho a impressão de traí-la, falando sobre ela! “
In Cornélio
Penna, romances completos, editora José Aguilar, 1958. Pg XXVI.
Voltando ao início: é
bom, é bonito e é justo aprender a manifestar o amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário