quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Longe da árvore - 2

Andrew Solomon, Longe da árvore, pais e filhos e a busca da identidade.
companhia das letras

Belíssimo livro. Enorme. Mas, sem dúvida, vale a pena.



“Eu tinha dislexia quando criança; na verdade, ainda tenho. Não consigo escrever
à mão sem me concentrar em cada letra enquanto a escrevo, e mesmo
quando faço isso algumas letras ficam fora de ordem ou são omitidas. Minha mãe,
que identificou a dislexia cedo, começou a trabalhar a leitura comigo quando eu
tinha dois anos. Passei longas tardes em seu colo, aprendendo a emitir palavras,
treinando como um atleta olímpico em fonética; praticamos letras como se nenhuma
forma pudesse ser mais encantadora do que as delas. Para manter a minha
atenção, ela me deu uma caderneta com capa de feltro amarelo em que o Ursinho
Puff e o Tigrão estavam costurados; fazíamos cartões de memória e jogávamos
com eles no carro. Eu adorava a atenção, e minha mãe ensinava com um senso
de diversão, como se aquilo fosse o melhor quebra-cabeças do mundo, um jogo
particular entre nós. Quando eu tinha seis anos, meus pais tentaram me matricular
em onze escolas de Nova York, e todas me rejeitaram, alegando que eu nunca
aprenderia a ler e escrever. Um ano depois, eu estava matriculado em uma escola
onde o diretor permitiu a contragosto que minhas habilidades de leitura avançadas
prevalecessem sobre os resultados dos testes que previam que eu jamais aprenderia
a ler. Os padrões de triunfo perpétuo eram altos em nossa casa, e aquela
vitória inicial sobre a dislexia foi formadora: com paciência, amor, inteligência e
vontade, havíamos derrotado uma anormalidade neurológica. Infelizmente, ela
preparou o palco para nossas lutas posteriores, tornando difícil acreditar que não
poderíamos reverter a evidência arrepiante de outra anormalidade percebida — o
fato de eu ser gay.

As pessoas perguntam quando eu soube que era gay, e eu me pergunto o que
esse conhecimento implica. Levou algum tempo para eu me tornar consciente
de meus desejos sexuais. A percepção de que o que eu queria era exótico e fora
de sintonia com a maioria veio tão cedo que não me lembro de um tempo que a
precedesse. Estudos recentes mostraram que com dois anos os meninos que virão
a ser gays já são avessos a certos tipos de brincadeiras violentas; aos seis anos de
idade, a maioria vai se comportar de uma maneira obviamente não conforme ao
gênero.10 Uma vez que pude perceber cedo que muitos dos meus impulsos não
eram masculinos, passei a me inventar. No ensino fundamental, quando cada
aluno foi convidado a indicar sua comida favorita e todo mundo disse sorvete,
hambúrguer ou rabanada, eu orgulhosamente escolhi ekmek kadayiff com kaymak,
que eu costumava pedir num restaurante armênio da rua 27 Leste. Nunca troquei
figurinhas de beisebol, mas contava enredos de óperas no ônibus escolar. Nada
disso me tornou popular.

Eu era popular em casa, mas estava sujeito a correções. Quando eu tinha
sete anos, minha mãe, meu irmão e eu estávamos na Indian Walk Shoes e, na
saída, o vendedor perguntou de que cor queríamos os balões. Meu irmão quis um
balão vermelho. Eu quis um cor-de-rosa. Minha mãe contrapôs que eu não queria
um balão cor-de-rosa e me lembrou que minha cor favorita era azul.11 Eu
disse que realmente queria o rosa, mas diante de seu olhar peguei o azul. Que
minha cor favorita ainda seja o azul mas mesmo assim que eu ainda seja gay são
provas tanto da influência de minha mãe como de seus limites. Ela disse certa vez:
“Quando você era pequeno, não gostava de fazer o que as outras crianças gostavam
de fazer, e eu o encorajei a ser você mesmo”. E acrescentou, com certa
ironia: “Às vezes acho que deixo as coisas irem longe demais”. Algumas vezes
pensei que ela não as deixou ir longe o suficiente. Mas seu incentivo à minha individualidade,
embora ambivalente, moldou minha vida.

Minha nova escola tinha ideias quase liberais e deveria ser inclusiva — o que
significava que nossa turma tinha algumas crianças negras e latinas com bolsa de
estudos, as quais, em sua maioria, preferiam a companhia umas das outras. Em
meu primeiro ano lá, Debbie Camacho fez uma festa de aniversário no Harlem,
e seus pais, não familiarizados com a lógica da educação particular em Nova York,
marcaram-na para o mesmo fim de semana da tradicional festa de reencontro de
ex-alunos. Minha mãe perguntou como eu me sentiria se ninguém comparecesse
à minha festa de aniversário e insistiu que eu fosse. Duvido que muitas crianças
da minha turma teriam ido à festa, mesmo que não houvesse uma desculpa conveniente
como aquela, mas, na realidade, apareceram apenas duas crianças brancas
de uma turma de quarenta. Eu me senti francamente aterrorizado de estar lá.
As primas da aniversariante tentaram me tirar para dançar; todo mundo falava
espanhol, havia frituras esquisitas, tive uma espécie de ataque de pânico e fui
para casa aos prantos.Não tracei paralelos entre a ausência de todos na festa de Debbie e minha
própria impopularidade, mesmo quando, alguns meses depois, Bobby Finkel deu
uma festa de aniversário e convidou toda a turma, menos eu. Minha mãe ligou
para a mãe dele supondo que houvera um erro; a sra. Finkel disse que seu filho
não gostava de mim e não me queria em sua festa. Minha mãe me pegou na escola no dia da festa e me levou ao zoológico, depois fomos tomar um sundae de
chocolate no Old-Fashioned Mr. Jennings. É somente numa visão retrospectiva
que imagino como minha mãe ficou magoada por mim, mais magoada do que
eu estava, ou do que eu deixava perceber que estava. Não adivinhei então que sua
ternura era uma tentativa de compensar os insultos do mundo. Quando contemplo
o desconforto dos meus pais com minha homossexualidade, posso ver como
minhas vulnerabilidades deixavam minha mãe vulnerável, e como ela queria
antecipar-se à minha tristeza garantindo que fôssemos a nossa própria diversão.
A proibição do balão cor-de-rosa deve ser considerada, em parte, um gesto de
proteção.

Felizmente minha mãe me fez ir à festa de aniversário de Debbie Camacho,
porque acho que era a coisa certa a fazer e porque, embora eu não pudesse perceber
na época, era o começo de uma atitude de tolerância que possibilitou que
eu me aceitasse e encontrasse a felicidade na idade adulta. É tentador pintar a
mim e minha família como faróis de excepcionalidade liberal, mas não éramos.
Provoquei um aluno afro-americano na escola primária afirmando que ele lembrava
a foto de uma criança tribal numa maloca africana que havia em nosso livro
de estudos sociais. Eu não achava que isso fosse racista, achava que era engraçado
e vagamente verdadeiro. Mais tarde, lembrei-me do meu comportamento com
profundo pesar e, quando a pessoa em questão me encontrou no Facebook, pedi
mil desculpas. Eu disse que minha única desculpa era que não era fácil ser gay na
escola, e que eu tinha exteriorizado o preconceito que sofria na forma de preconceito
com os outros. Ele aceitou meu pedido de desculpas e mencionou que
também era gay; tornou-me humilde o fato de ele ter sobrevivido, numa situação
em que ambos os tipos de preconceito estavam em jogo.

Eu lutava nas águas traiçoeiras do ensino fundamental, mas em casa, onde
o preconceito nunca foi tingido com crueldade, meus déficits mais difíceis eram
minimizados e meus caprichos eram, em sua maioria, vistos com bom humor.
Quando estava com dez anos, fiquei fascinado pelo minúsculo principado de
Liechtenstein. Um ano mais tarde, meu pai levou-nos numa viagem de negócios
a Zurique, e certa manhã minha mãe anunciou que tinha arranjado para que
todos fôssemos a Vaduz, capital do principado. Lembro-me da emoção ao ver que
toda a família estava satisfazendo o que era claramente um desejo só meu. Vista
agora, a preocupação com Liechtenstein parece estranha, mas a mesma mãe que
proibiu o balão cor-de-rosa pensou e organizou aquele dia: o almoço em um café
charmoso, uma visita ao museu de arte, uma visita à gráfica onde eles fazem os
inconfundíveis selos postais do país. Embora nem sempre me sentisse aprovado,
sempre me senti reconhecido e me era dada a latitude da minha excentricidade.
Mas havia limites, e os balões cor-de-rosa estavam do lado errado deles. A regra
de nossa família era interessar-se pela alteridade dentro de um pacto de igualdade.
Eu queria parar de apenas observar o vasto mundo e habitar em sua amplitude:
queria mergulhar para apanhar pérolas, memorizar Shakespeare, romper a barreira
do som, aprender a tricotar. De certo ponto de vista, o desejo de transformar-
me pode ser visto como uma tentativa de me libertar de uma forma indesejável
de ser. De outro, era um gesto em direção ao meu eu essencial, um giro
crucial na direção de quem eu viria a ser.

Mesmo no jardim de infância, eu passava o recreio conversando com meus
professores, porque as outras crianças não me entendiam; é provável que os professores
também não entendessem, mas tinham idade suficiente para ser educados.
Na sétima série, eu costumava almoçar no escritório da sra. Brier, secretária
do diretor da escola. Formei-me no ensino médio sem visitar o refeitório, onde
eu teria sentado com as meninas e sido objeto de chacota por fazê-lo, ou com os
meninos e ser objeto de chacota por ser o tipo de garoto que deveria realmente
sentar-se com as meninas. O impulso para a conformidade que com tanta frequência
define a infância nunca existiu para mim, e, quando comecei a pensar
sobre sexualidade, a não conformidade do desejo pelo mesmo sexo me entusiasmou
— a percepção de que o que eu queria era ainda mais diferente e proibido
do que todo o sexo é para os jovens. Eu sentia a homossexualidade como se fosse
uma sobremesa armênia ou um dia em Liechtenstein. Não obstante, pensava que
se alguém descobrisse que eu era gay, eu teria de morrer.

Minha mãe não queria que eu fosse gay porque achava que não seria o caminho
mais feliz para mim, mas também porque não gostava da imagem de ser
mãe de um filho gay. O problema não era que ela quisesse controlar a minha vida
— embora ela acreditasse, como a maioria dos pais, que sua maneira de ser
feliz era a melhor maneira de ser feliz. O problema era que ela queria controlar
a vida dela, e era a vida como mãe de um homossexual que ela desejava alterar.
Infelizmente, não havia maneira de ela resolver seu problema sem me envolver.

Aprendi a odiar profunda e precocemente esse aspecto da minha identidade
porque aquele desconforto repetia uma reação da família a uma identidade vertical.
Minha mãe achava que era indesejável ser judeu. Ela aprendera essa atitude
com meu avô, que mantinha sua religião em segredo para que pudesse ter um
cargo de alto nível em uma empresa que não empregava judeus. Ele pertencia a
um clube de subúrbio no qual os judeus não eram bem-vindos. Quando tinha
seus vinte e poucos anos, minha mãe ficou noiva de um texano, mas o rapaz
rompeu o noivado quando a família ameaçou deserdá-lo se ele se casasse com
uma judia. Para ela, foi um trauma de reconhecimento de si mesma, pois até
então não se pensava como judia; achava que poderia ser quem quer que parecesse
ser. Cinco anos depois, ela decidiu se casar com meu pai, um judeu, e viver
em um mundo em grande parte judaico, mas carregava o antissemitismo dentro
dela. Ela via pessoas que se encaixavam em certos estereótipos e dizia: “Essas são
as pessoas que nos dão um nome ruim”. Quando lhe perguntei o que achava da
beldade muito cobiçada da minha turma da nona série, ela disse: “Ela parece
muito judia”. Seu lastimável método de duvidar de si mesma foi organizado para
mim em torno de ser gay: herdei seu dom para o desconforto.

Muito tempo depois da infância, agarrei-me a coisas infantis como uma barreira
contra a sexualidade. Essa imaturidade intencional era revestida por um
puritanismo vitoriano afetado que não visava mascarar o desejo, mas obliterá-lo.
Eu tinha a ideia absurda de que seria Cristóvão para sempre no Bosque dos Cem
Acres; com efeito, o último capítulo dos livros do Ursinho Puff era tão parecido
com minha história que eu não suportava ouvi-lo, embora fizesse meu pai ler
para mim centenas de vezes todos os outros capítulos. A casa no cantinho do Puff
termina assim: “Onde quer que vão e o que quer que aconteça com eles no caminho,
naquele lugar encantado no topo da Floresta, um menino e seu urso estarão
sempre brincando”.12 Decidi que seria aquele menino e aquele urso, que me
congelaria na puerilidade, porque o que o crescimento pressagiava para mim era
humilhante demais. Aos treze anos, comprei um exemplar da Playboy e passei
horas estudando a revista, tentando resolver meu desconforto com a anatomia
feminina; foi muito mais penoso do que minha lição de casa. Quando cheguei ao
ensino médio, eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, teria de fazer sexo com
mulheres; eu sentia que não seria capaz de fazê-lo, e muitas vezes pensei em
morrer. A metade de mim que não planejava ser Cristóvão brincando para sempre
em um lugar encantado planejava ser Anna Kariênina jogando-se na frente de um
trem. Era uma dualidade ridícula.

Quando eu estava na oitava série da Horace Mann School, em Nova York,
um garoto mais velho me apelidou de Percy [afeminado], numa referência ao meu
comportamento. Tomávamos o mesmo ônibus escolar e, todos os dias, quando
eu subia, ele e seus comparsas gritavam “Percy! Percy! Percy!”. Às vezes eu sentava
com um estudante sino-americano que era tímido demais para falar com os
outros (e se revelou ser gay também), às vezes com uma menina quase cega, que
também era objeto de considerável crueldade. Às vezes, todos os que estavam no
ônibus gritavam a provocação durante toda a viagem. “Per-cy! Per-cy! Per-cy!
Per-cy!” a plenos pulmões por 45 minutos: subindo a Terceira Avenida, pela fdr
Drive, através da Willis Avenue Bridge, por toda a Major Deegan Expressway, e
na rua 246, em Riverdale. A menina cega repetia que eu deveria “simplesmente
ignorá-los”, e então eu ficava lá fingindo de forma não convincente que aquilo
não estava acontecendo.

Quatro meses depois que isso começou, cheguei em casa um dia e minha
mãe perguntou: “Tem alguma coisa acontecendo no ônibus escolar? Outros estudantes
estão chamando você de Percy?”. Um colega contara para a mãe dele,
que, por sua vez, telefonara para a minha. Quando admiti que era verdade, ela
me abraçou por um longo tempo e depois perguntou por que eu não lhe havia
contado. Isso nunca me ocorrera: em parte porque falar de algo tão degradante
parecia apenas materializá-lo, em parte porque pensei que não havia nada a ser
feito, e também porque achava que as características pelas quais eu estava sendo
torturado seriam igualmente repugnantes para minha mãe, e eu queria protegê-
la da decepção.

A partir de então, uma acompanhante passou a andar no ônibus escolar e o
coro parou. Eu era apenas chamado de “bicha” no ônibus e na escola, muitas
vezes a uma distância em que os professores podiam ouvir e não faziam objeções.
Naquele mesmo ano, meu professor de ciências nos contou que os homossexuais
desenvolviam incontinência fecal porque seus esfíncteres anais eram destruídos.
A homofobia era onipresente na década de 1970, mas a cultura presunçosa da
minha escola produzia uma versão pungentemente aprimorada dela.

Em junho de 2012, a New York Times Magazine publicou um artigo de um
ex-aluno da Horace Mann, Amos Kamil, sobre o abuso predatório de meninos
perpetrado por alguns membros masculinos do corpo docente da escola quando
estudei lá.13 O artigo citava estudantes que tiveram problemas de dependência de
drogas e outros comportamentos autodestrutivos na esteira de tais episódios; um
homem se suicidara na meia-idade, numa culminação do desespero que sua família
rastreou até aquela exploração juvenil. O artigo deixou-me profundamente
triste — e confuso, porque alguns dos professores acusados de tais atos haviam
sido mais amáveis comigo do que qualquer outra pessoa na minha escola durante
um período sombrio. Meu adorado professor de história levava-me para jantar
fora, deu-me um exemplar da Bíblia de Jerusalém e conversava comigo nos períodos
livres, quando outros alunos não queriam nada comigo. O professor de
música concedeu-me solos de concertos, deixava-me chamá-lo por seu prenome
e ficar em sua sala, e comandava as viagens do coral que estavam entre as minhas
mais felizes aventuras. Eles pareciam reconhecer quem eu era e pensavam bem
de mim de qualquer maneira. O reconhecimento implícito da minha sexualidade
por parte deles me ajudou a não me tornar dependente de drogas ou suicida.

Quando eu estava na nona série, o professor de artes da escola (que também
era treinador de futebol) insistia em iniciar uma conversa comigo sobre masturbação.
Eu ficava paralisado: achava que isso poderia ser uma forma de cilada e
que, se respondesse, ele diria a todos que eu era gay, e eu seria objeto de ainda
mais chacota. Nenhum outro professor deu em cima de mim, talvez porque eu
fosse um garoto magrela, socialmente desajeitado, de óculos e suspensórios, ou
porque meus pais tivessem uma reputação de vigilância protetora, ou ainda porque
eu assumisse um isolamento arrogante que me tornava menos vulnerável do
que outros.

O professor de artes foi demitido quando surgiram alegações contra ele logo
depois de nossas conversas. O professor de história foi embora e se suicidou um
ano depois. O de música, que era casado, sobreviveu ao “reinado do terror” que
se seguiu, como um professor gay chamou mais tarde, quando muitos professores
homossexuais foram demitidos. Kamil escreveu-me que as demissões de professores
gays não predadores decorreram de “uma tentativa equivocada de erradicar
a pedofilia através de uma falsa equiparação dela com a homossexualidade”. Os
alunos diziam monstruosidades até para professores gays porque o preconceito
deles era obviamente endossado pela comunidade escolar.

Anne MacKay, chefe do departamento de teatro, foi uma lésbica que sobreviveu
com discrição às recriminações. Vinte anos depois de me formar, eu e ela
começamos a nos corresponder por e-mail. Fui até a extremidade leste de Long
Island para visitá-la uma década mais tarde, quando soube que ela estava morrendo.
Havíamos ambos sido contatados por Amos Kamil, que na época fazia pesquisas
para seu artigo, e estávamos ambos abalados pelas acusações que ele compartilhara
conosco. A srta. MacKay havia sido a sábia mestra que uma vez explicou
delicadamente que eu era provocado por causa da maneira como andava, e tentou
mostrar-me uma passada mais confiante. Ela encenou A importância de ser prudente
em meu último ano para que eu pudesse ter uma chance de estrelato no papel
de Algernon. Eu fora até lá para lhe agradecer. Mas ela me convidara para se
desculpar.

Em um emprego anterior, explicou, correra o rumor de que ela vivia com
outra mulher, os pais reclamaram, e ela entrara numa espécie de esconderijo
pelo resto de sua carreira. Agora, lamentava a distância formal que mantivera e
achava que falhara com os estudantes gays, para quem poderia ter sido um farol
— embora eu soubesse, e ela também, que se tivesse sido mais aberta teria
perdido o emprego. Quando fui seu aluno, nunca pensei em perguntar sobre uma
intimidade maior do que a que tínhamos, mas, conversando décadas depois, percebi
o quão desamparados ambos havíamos ficado. Eu gostaria que pudéssemos
ter tido a mesma idade por um tempo, porque a pessoa que sou aos 48 anos seria
um bom amigo de quem ela era quando me dava aulas na juventude. Fora da
escola, MacKay era militante gay; agora, eu também sou. Quando eu estava na
escola, sabia que ela era gay e ela sabia que eu era gay; no entanto, cada um de
nós estava aprisionado por sua homossexualidade de uma maneira que tornava
a conversa direta impossível, deixando-nos apenas a bondade para dar um ao
outro, em vez da verdade. Vê-la depois de tantos anos despertou minha antiga
solidão e me lembrei de como uma identidade excepcional pode causar isolamento,
a não ser que a transformemos numa solidariedade horizontal.

Na inquietante reunião on-line de ex-alunos da Horace Mann que aconteceu
depois da publicação da matéria de Amos Kamil, um homem descreveu sua
tristeza tanto pelas vítimas de abusos como pelos agressores, dizendo destes
últimos: “Eles eram pessoas feridas, confusas, tentando descobrir como funcionar
em um mundo que lhes ensinou que seu desejo homossexual era doentio.
As escolas espelham o mundo em que vivemos. Elas não podem ser lugares
perfeitos. Nem todo professor será uma pessoa emocionalmente equilibrada.
Podemos condenar esses professores. Mas isso trata apenas de um sintoma, não
do problema original, que é que uma sociedade intolerante cria pessoas que se
odeiam e que se comportam de forma inadequada”.14 O contato sexual entre
professores e alunos é inaceitável porque explora um diferencial de poder que
obscurece a demarcação entre coerção e consentimento. Com frequência, isso
causa traumas irrecuperáveis. Foi o que claramente aconteceu com os alunos
entrevistados e descritos por Kamil. Ao perguntar-me como meus professores
puderam fazer aquilo, pensei que alguém cujo ser íntimo é considerado uma
doença e uma ilegalidade pode lutar para analisar a distinção entre isso e um
crime muito maior. Tratar uma identidade como doença convida a verdadeira
doença a assumir uma postura mais corajosa.”

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