“Na minha idade de ouro, costumava fazer – refazer – uma
hierarquia de valores e nessa hierarquia a coragem ocupava o primeiro lugar. A
virtude maior. Coragem de amar e desamar, coragem de morrer, coragem de cólera,
da tristeza – ô Deus! – até nos enterros as pessoas tão contidas, tão
exemplares. Se controlando para não chorar alto porque se o choro fica forte,
já vem alguém com pílula, a injeção, o analista: fechar as portas, as janelas,
os buracos. Até os anjinhos de Giotto de desesperam diante de Jesus
crucificado, lá estão eles no céu, arrancando os cabelos, os olhos inundados de
lágrimas. Mas o homem tem que ficar no nível, sem transbordar. Sem claudicar:
claudico, claudicas, claudicavi, claudicatum, claudicare. A origem naquele
imperador Cláudio, que mancava. Então se a gente dá uma mancada, já vem a
terapia de apoio: pisar firme. Não chore, não tussa, não ria, isto é, ria
discretamente porque senão o próximo já vem pegar no seu braço, ficou de porre?
Não, não é isso, não, é que estou contente, com vontade de cantar, queria
cantar, posso?
Medo de desafinar – ai! – que duro o julgamento desse
próximo, medida de todas as coisas. Tão atento a nosso próximo. Atento e
desatento: condena, absolve, aconselha, desaconselha e depois vai tomar chope,
esquece. O objeto do julgamento – o réu – levando tudo tão a sério, fazendo e
desfazendo. E o outro, como no poema, tirando ouro do nariz.
Neste sistema burguês, onde só tem importância a aparência,
com todos defendendo ferozmente essa aparência, incluindo-se os neuróticos mais
angustiados ainda porque reprimidos – dentro desse mecanismo, comecei a
superestimar a coragem. Emocionada com o rei que antes do grito da criança, “mas
ele está nu!”, espontaneamente se reconhece em sua nudez, exposto por inteiro,
face e coração: aqui estou.
Mudei de pensar. Melhor ainda do que ter coragem é ter senso
de humor, dom mais raro. E mais nítido. Há todo um leque de ambiguidade na
conceituação do comportamento corajoso, é coragem cortar os pulsos? Se atirar
de um vigésimo andar? E o soldado que acerta em cheio a bomba de napalm no
vilarejo e recebe medalhas e tratamento de herói – esse é um bravo? Desertar
pode indicar coragem. Também ficar.
No reconhecimento do humor não há equívoco. Ou existe ou não
existe e seu portador sabe disso, o portador e os que estão ao redor. Tente
fingir bom humor perto de uma criança. De um cachorro. Faça aquelas caras, a
voz postiçamente mansa. O cachorro vem, fareja os fluidos, sente o peso da aura
– uma barra – e vai saindo com o rabo entre as pernas. Bom humor é charme e as
pessoas querem ser charmosas, os políticos em primeiro lugar, não é com vinagre
que se apanha mosca. Mas se esmerando embora na representação, é difícil para o
fingidor sustentar por muito tempo a máscara do bom humor, o mascarado se cansa
e acaba de descobrindo.
Sense of humour. Mas o que vem a ser afinal esse senso de
humor? Difícil a definição. Mas sabe-se o que ele não é: não é a graça irreverente
das anedotas na boa tradição lusitana ou carioca, o repertório pornográfico do
anedotário oral e escrito é delirante, incluídas as histórias em quadrinhos.
Mas não se trata disso: nem piada obscena nem bem-comportada. O humor também
não reside no humor negro do anedotário tragicômico. Não confundir ainda o
senso de humor (que pode ser adquirido e, nesse caso, maior mérito) com o
humorismo profissional de teatro ou televisão, o profissional ri e faz rir por
ofício. Longe do público, fecha seu repertório, está descansando. E no descanso
pode ser até um mal-humorado, um chato.
Em seu estado puro, o senso de humor não é negro nem
vermelho nem azul mas tem as sete cores do arco-íris numa faixa só. Nem erótico
nem puritano, não tem implicações de ordem ética mas estética, o bem-humorado é
um esteta. Uma filosofia de vida? Digamos, uma doce filosofia que nos permite
vislumbrar uma certa graça nas coisas desengraçadas. Sem sarcasmo, que o
sarcasmo é cruel. Sarcasmo é veneno. E o senso de humor é que nos impede de
virarmos uma esponja de fel, a casa pegou fogo? O louco bem-humorado dá uma
volta em torno, tira o cigarro do bolso que não existe e acende o cachimbo numa
brasa do fogão.”
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