quinta-feira, 28 de junho de 2012

A SUPERSTIÇÃO E O ESTEREÓTIPO




Nello de Moura Rangel Neto





“Em cada signo dorme este monstro: um estereótipo”

Roland Barthes - Aula


Dizem que, no exato momento em que a bomba caia sobre Hiroxima um japonês, que acabara de ir ao banheiro, apertava distraidamente o botão da descarga.
E exclamou:
- Ai meu Deus! O que fiz!?

Anedota popular


Em tempos de chupa-cabras, discos voadores, proliferação de seitas, astrólogos que orientam presidentes, poderes de-mentes, bruxas, programadores cerebrais, duendes e magos, pensar a superstição se torna necessário. Contudo, trata-se de empreendimento delicado, posto que as pessoas não estão, em geral, dispostas a abrir mão da pseudo-segurança que suas crenças supersticiosas fornecem.

Para ilustrarmos esta hipótese desejamos lembrar entrevista publicada na revista VEJA, com o físico inglês Robert Matthews. Ele pesquisou a “lei de Murphy”, aquela segundo a qual, se algo tem chance de dar errado, vai dar errado mesmo. Estudou assim as torradas que insistem em cair com a manteiga virada para baixo, a chave que insiste em não ser a correta para a fechadura, a fila escolhida que insiste em ser mais lenta que as outras... E comprovou que nossas chateações cotidianas não decorrem de “uma grande conspiração contra o bem estar da humanidade, mas de princípios científicos simples”, frutos não da sorte ou azar, mas de probabilidades matemáticas e leis da física. E apesar deste serviço em prol da desmistificação foi agraciado com o prêmio Ig Nobel, para pesquisas consideradas inúteis.

Por que esse prêmio? Lembremos que lhe foi concedido por importante universidade americana. Será que não perceberam nenhuma serventia na desmistificação que a pesquisa sugeria? Será se estereotipadamente consideraram o assunto imbecil - estudar torradas com manteiga... - e não se deram ao trabalho de considerar a extensão de suas conseqüências? O autor aparentemente não se ofendeu. Ficou satisfeito com a divulgação inesperada de seu trabalho. Mesma sorte não teve Espinosa, como veremos adiante.

O pensamento supersticioso é baseado em idéias prontas e crenças à priori, não sujeitas à refutação pela experiência. Transita por conceitos categóricos, taxativos e totalizantes. Na superstição não existe espaço para o talvez. E nesse sentido a superstição é uma forma de pensar estereotipado.

A palavra estereotipia vem do francês stére, derivado do grego stereós (sólido, firme). Diz respeito a técnicas de impressão, onde se convertem em formas sólidas (clichê) as páginas que primeiramente foram compostas em caracteres móveis. Ou seja, remete a uma transformação do que era móvel em uma forma compacta, fixa. Estereotipar tem nesse contexto o significado de tornar fixo, inalterável. Na estereotipia, o aspecto da realidade que não se encaixar no já preconcebido é excluído, não é considerado.

         A superstição tem características de um modo de pensar estereotipado: lida com características fixas e imutáveis; nega a complexidade e mutabilidade da realidade (neste sentido, a superstição foi definida por Adorno como “opinião infectada”, que se revela nas afirmações categóricas irresponsáveis, do tipo “toda mulher é dirige mal”, ou “todas as pessoas são egoístas”.); privilegia a busca do que já está pré-determinado num futuro qualquer, em detrimento da incerteza e indeterminação do por vir humano; refuta alteração dos seus preconceitos quando confrontada com uma realidade diversa da que pregava.

        A superstição pressupõe a concepção de um mundo governado por forças misteriosas, onde tudo está definido e faz parte de um destino preestabelecido. É deste modo um pensamento conservador, que visa manter uma ordem hierárquica, considerada como fora do tempo humano e da história, uma ordem sagrada e inquestionável.

Na superstição as coincidências são hipervalorizadas e tomadas como sinais e avisos. Acontecimentos fortuitos, como fazer aniversário no mesmo dia que outra pessoa, são considerados indícios marcantes de algo misterioso e especial. É um pensamento reducionista, quando considera que os fatos têm uma única causa suficiente, que tudo explica e justifica, negando assim a multifatoriedade. Onde há alguma contigüidade a superstição vê logo uma relação de causa-efeito. Se a pessoa melhora da gripe foi em virtude da benzedeira e não de uma remissão espontânea de seus sintomas. O homem supersticioso se agarra a respostas simplificadoras ao invés de parar e pensar as perplexidades da vida.

Na base da superstição está a crença no poder da vontade, denominada pensamento mágico. A pessoa crê que pensamentos, verbalizações e gestos podem, de alguma forma mágica, levar à realização dos desejos ou ao afastamento do azar. A antecipação dessa forma é bloqueada pois, prisioneiros da onipotência do pensamento - quando acreditamos que o pensamento pode fazer acontecer as coisas - tememos antecipar algo e nos julgamos culpados quando acontece algo de ruim que havíamos imaginado antes. Assim, ficamos com medo de pensar e bloqueamos a nossa consciência e nossa imaginação[1].

        O bloqueio da antecipação é tema antigo da história humana. O conceito de sortilégio, por exemplo, está intimamente ligado ao impedimento à memória do futuro. Sortilégio vem do latim medieval {sortilegiu}, e significa “escolha de sortes”, ou seja, escolha de objetos destinados a predizer o futuro. É associado à bruxaria,  à feitiçaria e aos presságios. E enquanto tentativa de manipular o futuro remete à maquinação e a trama. Na idade média alguns estatutos da inquisição mencionavam o sortilégio como sendo os delitos de fazer adivinhações. Antecipar, pensar e considerar o nosso futuro tem assim, em nossa cultura, impedimentos que remetem estes atos a atos pecaminosos, passíveis de punição e perseguição. Ser dono de si, pensar com a própria cabeça para lidar com a própria sorte é quase um sacrilégio, é mexer em terreno perigoso. Quem não se lembra do jogo do copo adivinhatório e do clima de mistério e temor que o acompanha? No nosso imaginário antecipar tem a mão do diabo.
           
A proibição de pensar trás em si mitos anteriores até à noção de sortilégio. Está no núcleo do mito do éden. Na Bíblia {Gênesis 2 15/17} vemos: “Tomou, pois, o Senhor Deus o homem, e colocou-o no paraíso das delícias, para que o cultivasse e guardasse. E deu-lhe este preceito, dizendo: come de todas as árvores do paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque, em qualquer dia que comeres dele, morrerás indubitavelmente”.
           
Nem mesmo a árvore da vida, que daria a imortalidade, era de tal maneira proibida. A proibição era da ciência, do juízo, do pensar. Pensar, considerar, conhecer, ponderar, antecipar e, por isso mesmo, agir exigitivamente, são interditados. Esses atos levam necessariamente à diferenciação entre eu e o outro, e ameaçando assim o mito da unidade, a fusão incondicional entre as pessoas, tão comum em nossos dias.

O pensamento supersticioso é uma forma de pensamento estereotipado enquanto se mostra resistente à alteração e a refutação. Neste caso, quando diante de fatos que nos forçariam a rever nossa posição operamos o mecanismo da dissonância cognitiva, “que torna a mente humana impermeável às verdades novas nos casos de conflito entre a ideologia que se defendeu até aqui e os fatos que a refutam”. A mãe que diz: “Eu te avisei!” quando vê o filho machucado se esquece, por exemplo, que já havia avisado milhares de vezes antes, e nada acontecera. Deste modo, presos em obstinada recusa, a realidade não se coloca como contraste para nós. Supersticiosos, oscilamos entre o otimismo de Polyana e o pessimismo das leis de Murphy. Permanecemos presos aos estereótipos, nos recusando a abrir os olhos e pensar por conta própria. A estereotipia pode ser pensada neste contexto como uma forma de dissonância cognitiva que visa impedir o pensar-antecipar, e manter a estrutura social.



“Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos, excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa...Maldito seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito seja quando se levanta; maldito seja quando sai e maldito seja quando regressa...Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém  leia algo escrito ou transcrito por ele.”

Texto de excomunhão de Espinosa
Amsterdã, 27 de julho de 1656


Em sua filosofia Espinosa critica todas as formas de superstição: religiosa, política e filosófica (Hoje ele provavelmente incluiria a superstição científica). Combatendo aquilo que considerava “a servidão suprema”, não surpreende que tenha sido excomungado.

A superstição pressupõe uma concepção de mundo fortemente hierarquizada. A noção de destino como fim inevitável é conservadora e visa manter a ordem hierárquica, concebida como sagrada e inalterável. Em um mundo assim as relações entre os homens se baseiam na cumplicidade, no favorecimento e na busca de uma eqüidistância encobridora. Aquele que tenta desmistificar a superstição é uma ameaça e como tal é tratado. Frente a mentalidade supersticiosa a diferenciação é quase uma afronta.

Nascida, segundo Espinosa, de uma oscilação entre o medo e a esperança, a superstição supõe a crença numa potência ou força distante, num ser supremo e Todo-Poderoso, capaz de bens ou males, diante dos quais o homem seria um joguete. Alguns homens aproveitam para se dizer portadores das respostas e dos poderes, interpretes da vontade divina, engendrando assim um poder religioso baseado no temor. Poder este que se metamorfoseia em poder militar e político, se alimentando do temor das massas.

Espinosa procura desfazer a noção de mistério subjacente a superstição. Ignorância travestida como se fosse conhecimento, a superstição julga-se saber secreto e restrito aos iniciados. Conduz assim ao temor supersticioso frente a um poder incompreensível e perigoso.


“Se os homens pudessem governar suas vidas seguindo uma deliberação segura, ou se a Fortuna lhes fosse sempre favorável, jamais sucumbiriam a superstição. Porém, amiúde reduzidos à angústia, já não sabem que resolução tomar e, arrastados por apetite desmedido pelos bens incertos da Fortuna, oscilando miseravelmente entre o medo e a esperança, têm o ânimo inclinado à mais extrema credulidade.”

Espinosa - Tratado Teológico-Político

Podemos supor, baseados no texto acima, que a raiz da superstição está na incerteza diante da Fortuna (Casualidade, eventualidade, acaso, fado, sorte). Contudo, não é certo que privilegiaremos a credulidade quando diante da incerteza. Ho Chi Min usou justamente da capacidade de decidir em cima de dúvidas para conseguir alguma vantagem na guerra do Vietnã, ele partia do pressuposto que os EUA só agiam cercados de certeza e por isso mesmo demoravam para decidir. Não é a incerteza que provoca necessariamente a superstição. É a sede de demais certeza. É a pouca disposição para se haver com a realidade, considerando os limites e possibilidades, os acasos e incertezas, a sorte ou o revés, próprias da vida e chaves da liberdade humana. É justo na incerteza nasce a possibilidade da escolha propriamente humana, pois não somos definitivamente definidos, não estamos prontos e acabados. Antes somos uma espécie que se caracteriza pela incompletude e pelo se fazer durante a vida. Não é certo o que será de nós. Há porvir em nossas vidas.

O termo superstição vem do latim Superstitione e significa crendice, crença em presságios tirados de fatos puramente fortuitos, ou apego exagerado e/ou infundado a qualquer coisa. No latim foi usado por Quintiliano como observação demasiado escrupulosa. Este significado diluiu-se no tempo, mas ainda se revela na passividade própria do pensar supersticioso. Em um mundo governado por forças misteriosas nada podemos fazer. Resta-nos esperarmos passivamente que as coisas aconteçam, acreditando que elas são fruto da sorte ou revés.

"Não era ele dos mais supersticiosos, porém os modos estranhos do sertanejo... despertaram em seu espírito as abusões da época”.

José de Alencar

Abusão [Do lat. Abusione] tem vários sentidos: indica engano, ilusão e erro, mas também trás os significados de superstição, crendice, abuso e patranha [mentira]. É muito relevante a ligação que aparece aqui entre a superstição e o abuso. O abuso é mais que um simples uso. É o consumo de alguma coisa da qual só era permitido o uso, é extinguir até o fim, indevidamente. Podemos dizer que a superstição é um grande abuso, uma dissipação[2] sem fim. Presos às crenças supersticiosas dissipamos nossos talentos. Prisioneiros da passividade própria do pensar supersticioso paralisamos[3] nosso processo de alteração e desenvolvimento.


Neste contexto os desejos, projetos, e esperanças já não nos pertencem. Já foram definidos, e resta esperar que o destino se faça cumprir. Dependem de algum poder externo ou circunstância caprichosa, mas não fundamentalmente de nós mesmos. A superstição é uma forma de alienação, no seu sentido mais rigoroso: estar fora de si mesmo, eknóico e dissociado.

A superstição também se aplica como categoria quando analisamos o conhecimento. A superstição científica se revela quando supomos que podemos saber tudo sobre um determinado assunto, quando achamos possível exaurir um tema. Essa forma estereotipada de se considerar a ciência implica numa atitude reprodutiva frente ao conhecimento. Quando pensamos assim “não sabemos, e não sabemos que não sabemos”.  A compreensão é um processo em andamento. Com o tempo damos passos na direção de saber o pouco que sabemos, mas principalmente o muito que não sabemos. Não é possível compreender tudo, abarcar toda a realidade. A ciência se assemelha menos com um substantivo do que com um verbo. Como exemplo de superstição científica podemos citar o caso da pessoa que, ao presenciar uma visita de um doutor em veterinária em sua fazenda ficou impressionado com a quantidade de perguntas que este fez ao veterinário responsável. “Mas se ele é doutor, como pode perguntar tanto?” Chegou até a suspeitar da capacitação do doutor, pois supunha que ele deveria saber tudo. Ou seja perguntar foi considerado um sinal de desconhecimento e incompetência. E não de sabedoria, de uma mente curiosa e inquieta, que sabe o pouco que sabe mas sabe também o muito que não sabe.


“As estrelas não mentem, mas tampouco dizem a verdade: por elas mentem os homens”

Theodor W. Adorno


Em levantamento realizado no banco de dados do SID/APA, abarcando 2600 indivíduos de nível superior, observamos a presença marcante de formas de pensar supersticiosas.

75% das pessoas concordaram com uma questão que diz que muitos aspectos da realidade jamais serão compreendidos. Esta questão traz em si uma interdição ao conhecimento, uma crença de que a realidade é em si preponderantemente misteriosa e incompreensível.

90% disseram crer na força do pensamento positivo, sendo que 74 % destas pessoas tem esta crença com bastante intensidade. Ou seja, o pensamento mágico se revela com enorme força, a despeito de todas as evidencias cotidianas presentes na vida de todos nós de que o pensamento não é capaz por si só de provocar a ocorrência mágica de algo.

41% destas pessoas, todas de nível de escolaridade superior, concordaram com a crença de que um dia a astrologia poderá explicar muitas coisas.

A astrologia, uma das mais dogmáticas crenças populares, deve parte da sua credibilidade pelo fato de lidar com um dos aspectos mais regulares e coerentes da realidade: o movimento dos astros no firmamento. E realça ainda mais sua popularidade se assemelhando a uma ciência, à medida que lança mão de gráficos, mapas e cálculos matemáticos. Já na Grécia antiga foi acusada por Epicuro de reduzir o homem a um escravo, com seu livre arbítrio e sua responsabilidade transferidos para as forças cósmicas. Apesar de inúmeras pesquisas comprovarem a inverdade de suas predições, a astrologia, como boa superstição que é, permanece impermeável à refutação.

E, por último, 33% das pessoas disseram que ninguém pode fugir ao seu destino, uma porcentagem muito alta de concordância para uma afirmativa tão radical. Particularmente a noção de destino como imutável e predeterminado é muito importante no estudo da superstição, pois é característico da pessoa supersticiosa tentar negar a incerteza e a indeterminação da vida. 

A interdição ao conhecimento dificulta que nos alteremos diante da vida, com flexibilidade, visto que impede o conhecimento vinculado à vida, ao resolver-se e conhecer-se; o conhecimento como disposição para a alteração, para perceber o contraste entre o que supúnhamos ser e o que é. Trata-se do conhecimento diante do novo, do inesperado, do diverso, que nos dá ao mesmo tempo fundamento e confiança.

A superstição, em sua negação da incerteza e do indeterminado, nos leva a uma classificação apressada dos acontecimentos, reprodutora da ordem social e característica do pensar estereotipado, que acaba por ser o próprio não pensar. Nessa discriminação com a parcela incerta da vida muitas vezes corremos de fantasmas mas não enxergamos os problemas reais. A superstição cultiva o medo, e o faz irradiar, tomando áreas onde na verdade não havia nada a se temer. Privilegiamos o espanto, e desconsideramos o pensar e ponderar. “Muito do que amedronta, não passa de fantasia. Muito do que aniquila, não chega a ser percebido”[4].

“Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma, como de outra.
Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sombra o acompanhava, sem a menor dificuldade.
Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu morto por terra.
O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas.”

Chuang Tzu – A fuga da sombra[5]


  A superstição reflete o clima de nossa vida atual: a absurda pressa em que vivemos, numa absurda corrida desenfreada que não sai do lugar, em busca de lugar algum. Uma corrida sem sentido que conduz à imobilidade aflita, como se, ao mesmo tempo, chicoteássemos e freássemos um cavalo de montaria.

            Nesse clima, o tempo galopa e escapa de nossas mãos. Ficamos aflitos, com medos supersticiosos do que pode nos acontecer. Tomados de pressa e medo, e com a sensação de que estamos ficando para trás, sendo sucateados, acabamos por perder a prudência e a flexibilidade. Entramos em cobiça, “em busca do tempo perdido”, e na voracidade, não fazemos sequer os pequenos atos estratégicos que eram possíveis. Como que em um círculo vicioso, a própria pressa decorrente da vivência que estamos atrasados, acaba por paralisar ainda mais nosso movimento.

          Para nos liberarmos das amarras da estereotipia, é preciso parar e pensar. Não temer a tomada de consciência do mal que nos cabe, considerar a própria experiência e ter os olhos abertos para ver a realidade.

“Como se tivesse em vez de olhos binóculos ao contrário, o mundo
se distancia e pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada,
nada perde a clareza, fica mais denso.
(...)
Só agora estou sadio, e era doente, porque meu tempo
galopava e afligia-me o medo do que viria.
(...)
Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso
o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim:
por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros?
Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano
onde se viam nadando enormes peixes marítimos.
Tive medo que se olhasse, cairia. Virei então,
agarrei-me nas asperezas da parede rochosa,
e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.
Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais
incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de molho.”

A condição poética
Czeslaw Milosz

Buscar a certeza, buscar o sem “sombra de dúvidas”, nos faz cair em superstição. Em pressa/medo, com o tempo galopante e fora de nossas mãos recusamos a “atividade negativa” (permanecer em incertezas e dúvidas sem tentativa irritada de estabelecer logo o fato ou a razão).  Não sairemos desta busca de certezas via um cepticismo radical, onde o mundo não teria mais nenhum território de penumbra ou mistério. O gosto pelo invisível ou pelo espiritual necessariamente não remete ao pensar supersticioso. A realidade tem uma dimensão desconhecida pois é aberta e inacabada, tem alguma escuridão, onde nem tudo está claro e nítido. O espírito céptico pode ressecar-se da vida surpreendente e tender a incuriosidade, disfarçada de extrema objetividade.

         Precisamos do silêncio, dos interstícios. Se não entramos em silêncio acabamos por preencher os interstícios com rancor, eliminando qualquer contratempo, e só considerando a incerteza como revés, numa atitude lamentadora.


     “Nossa época ama o poder, adora o êxito, a fama, a eficácia, a utilidade {...}. É consolador saber que a 2000 anos, alguém pregava o contrario: a escuridão, a insegurança, e a ignorância, ou seja, a sabedoria {...}.”
     Octavio Paz, à respeito de Chuang-tzu.

Um caso ilustra bem o assunto que estamos tratando.

Medo(demo-tique-mali-mali)[8] é profissional da área de informática. Angustiado com o ritmo acelerado das alterações em sua especialidade, procurou orientação. Não sabia mais o que fazer. Tentava se manter atualizado, comprando com grande freqüência revistas estrangeiras, livros importados e fazendo consultas na internet. Mas não dava conta de ler tudo, alias lia quase nada, e a pilha de publicações ia crescendo numa velocidade assustadora. Que fazer?

Foi-lhe perguntado em quantas áreas trabalhava. Respondeu que trabalhava com informática e internet. Na verdade pensava que não adiantava fazer nada, filho de pai que sabe tudo, o que fazer? Supunha que deveria ter nascido sabendo.

         A cobiça e pressa de Medo (demo-tique-mali-mali) eram enormes. A superstição científica presente na sua mentalidade supunha que ele teria de conhecer tudo de sua área, todas as novidades. Isto é impossível na época atual, a segunda revolução do conhecimento. Há mais conhecimento disponível em sua área do que ele seria capaz de acompanhar, quanto mais compreender. E a maior parte do conhecimento está em produção, emergindo, e assim continuará a ser. Esta superstição estereotipada é impedidora de qualquer ação neste contexto. O estereótipo nos diz: “corra, corra, corra que você alcança”, mas tal como Howard, prisioneiros da superstição, numa verdadeira poluição dromosférica[9], estamos fadados a não sair do lugar.

E a saída foi simples. Medo (demo-tique-mali-mali) passou a dedicar duas horas diárias para a sua atualização. Ao invés de querer saber tudo, agora pensava em qual atualização fazer. O que, frente ao mercado profissional atual, seria sua prioridade, sua preferência, sua escolha? Procurou afeiçoar-se ao aperfeiçoar-se. Seu trabalho melhorou. A pilha do conhecimento-sofrimento diminuiu.

A partir de então Medo (demo-tique-mali-mali) vislumbrou-se como um trabalhador do conhecimento. Liberou-se da obsessão pelo controle e da paralisia mental que caracterizavam suas atitudes anteriores. A antecipação e a inovação agora se colocavam enquanto questões a serem consideradas. Ele pode agora responder por si. 

E como sugere Roland Barthes:

“Empreendo, pois, o deixar-me levar pela força de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso se chama pesquisar. Vem talvez agora a idade de uma outra experiência, a de desaprender, de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”.



BIBLIOGRAFIA

ALVARENGA, Márcia Madureira – A propósito das mãos – SID APA, Belo Horizonte, 2000.

BARTHES, Roland - Aula. Editora Cultrix Ltda. São Paulo, 1997.

CHAUI, Marilena - Sobre o medo. In: OS SENTIDOS DA PAIXÃO, São Paulo, Companhia das Letras, 1987.

GARCIA, Ely Bonini - Da obediência Diabólica Devida à Liberdade Dialógica Devida, in VISAGENS, Belo Horizonte: Mazza Edições, 1988.

MATTHEWS, Robert - A teoria do azar. In: REVISTA VEJA, ENTREVISTA CONCEDIDA A THOMAS TRAUMANN, São Paulo, 4 de junho de 1997.

MERTON, Thomas – A via de Chuang Tzu. Editora Vozes, Petrópolis, 1984.

PAULA, Tanya Pitanguy de – Da Dissipação – SID APA, Belo Horizonte, 1998.

PIRES, Meiga Maria Ribeiro – Do brincar do menino – SID APA, Belo Horizonte, 1999.

PIRES, Meiga Maria Ribeiro – Do lúdico brincar do menino ao lúdrico jogar do menino – SID APA, Belo Horizonte, 2000.

PIRES, Meiga Maria Ribeiro – Do riso e do sério – SID APA, Belo Horizonte, 2000.

PIRES, Meiga Maria Ribeiro – O lúdico, o sério e o lúdrico – SID APA, Belo Horizonte, 2000.

PRIESTLEY, J. B. – El hombre y el tiempo. Aguilar Ediciones, Madrid, 1964.

RANGEL, Nello de Moura N. - Subjetividade e renegação. In: CICLO DE PALESTRAS COMPETITIVIDADE E OBJETIVIDADE NA ERA DA INFORMAÇÃO, Fortaleza, 1993.

RANGEL, Nello de Moura, N. - O Reino  rígido da estereotipia. In: SID-APA, ANTROPOLOGIA E PSICOLOGIA APLICADA, CADERNO DE TEXTOS, PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO PESSOAL, Belo Horizonte, 1994.

SOUZA, Laura De Mello e - O diabo e a terra de santa cruz. Companhia das Letras, São Paulo, 1996.

SOFAL, Eugenia Matilde Peixoto – Sobre os trabalhadores do conhecimento. – SID APA, Belo Horizonte, 1998.

STEKEL, Wilhelm – El querido ego. Ediciones Imán, Buenos Aires, 1960.


[1](...) Mas nem sei dizer quantas vezes negamos ou bloqueamos a voz da vontade e da vida em nós! Ou seja, quantas vezes abafamos a voz da vida que nos faz remeter à noção de que somos seres de escolha! A voz da vida em nós que estabelece ligações com o ao redor, de modo que nos redimensiona no tempo, no espaço e realça o que há de vivo tanto em nosso passado quanto nos acorda para o vivo que há no nosso futuro. Situados assim, nessas condições, nos sentimos “sem perigo e sem mal”.
O nascimento da consciência está diretamente relacionado ao que sentimos a respeito de nós mesmos – e do mundo - em determinada situação.
O bloqueio da consciência em primeiro lugar faz remeter ao bloqueio do mundo subjetivo, ao mundo dos nossos sentimentos.  É o impedimento de nos tocarmos, de saber dos nossos próprios sentimentos, da nossa própria percepção de nós mesmos.
Um pilar desse bloqueio é um olhar fixo para um determinado dever ou idéia pronta. Guiados por um “deveria” (condição ideal que deveríamos alcançar) qualquer inesperado ou situação diversa da esperada faz com que voltemos contra nós próprios, num misto de raiva e temor. Entramos para um estado de máxima ignomínia em que ficamos reduzidos ao “aqui e agora”, sem perspectiva alguma.
O homem por definição é palmeiro de realidade. Vai palmo a palmo, tocando, tocando-se e deixando-se tocar, num processo contínuo de inter-relação recíproca. (...) E nesse espaço que existe entre ele e o diverso - no ir e vir - nasce o que é especificamente humano: a consciência.
O bloqueio da consciência é proporcional ao bloqueio do reconhecimento do sentimento de si mesmo”.
Márcia Madureira Alvarenga, in “A propósito das mãos”.

[2]“A dissipação diz respeito a uma atitude de esbanjamento, dispersão e aniquilamento de bens simbólicos que consumidos até à exaustão, transgridem as regras da troca generalizada e impedem a circulação de riquezas. Esbanjar um bem seja ele material ou não, é agir como se a parte de cada um na comunidade fosse ilimitada, o que por um lado compromete a troca e por outro questiona o valor dos bens circulantes.
Fundado numa concepção de mundo determinista e imutável, o comportamento dissipador leva o indivíduo à passividade e submissão dissolvendo-o no status quo. Impedido de ser autor da própria vida desperdiça talentos e riquezas construídas ao longo da existência humana, numa revolta muda contra o destino que não pode mudar. Esbanja porque tudo já está determinado, restando a ele apenas sugar o máximo da vida e do outro como um parasita.”
Tanya Pitanguy de Paula in “Da Submissão”.

[3]Paralisar: tornar paralítico, paraliticar. Tornar inerte, entorpecer (falta de ação, marasmo, torpor, entorpecimento). Enfraquecer a ação ou energia de; neutralizar. 4. Fazer parar, cessar, o funcionamento de. 5. Tornar paralítico; paraliticar (se). 6. Sofrer paralisia. 7. Não progredir; estacionar.
 “Há duas maneiras de paralisar frente o inexistente imaginário: se dissipar na análise (parálise); ou cansaço, fadiga, e depressão. Não podemos entrar nisso; se chegarmos aí, temos que rir. Se entro na parálise, dá um cansaço, uma fadiga, uma vivência de repetição como a do relógio: para sempre, nunca mais...
Quando estou planejando, antecipando a realidade, estou no inexistente imaginário. A atitude racional tem que começar com o sorriso; ela não pode vir com o tédio e o enfado. 
Focalizando o tédio e enfado, desgosto, aborrecimento, nojo – e mais outros significados de abusado - intrometido, provocador e briguento - chegamos ao sério de espírito, mal-humorado, aborrecido, contrariado, que se desvia da saudável agressividade, raiz do amor, tornando-se vítima do impuso colérico. Traz consigo a seriedade da inconsciência, que tem uma destinação à priori, com ódio ou ira escarnecedora, ressentimento que disjunta a realidade. Agarra-se então, na concepção de mundo como inobre e merecedor do desprezo. Aparece aí o tédio, que é definido como desrespeito pelo mundo, e com ele o desdém, o  desprêzo,  a difamação – e o convencimento de que não vale a pena se envolver com ele. É o mundo da inocência e do loop (Dic.inglês: acrobacia aérea, na qual o avião descreve um círculo no plano vertical) - de pessoas sérias que são débeis e enfrentam ingenuamente as agressões do destino. No primeiro momento a pessoa tem a percepção de que tem uma armadilha, e tem uma reação imediata a ela – sem distanciamento ou mediação – e é assim que disjunta o mundo e o próprio self. A pessoa fica com ódio do mal sucedido e reage de maneira violenta. Há uma fusão e confusão entre a pessoa e o mundo inobre.
Quando pensamos em ira, indignação, impulso agressivo (ou impulso lúdico) pensamos na repressão e na luta contra ela, ludicamente, isto é, com gozo com a autolimitação. Existe uma definição de situação que oprime e uma tentativa de sair disso. A máscara da seriedade que aqui se impõe é a da inocência e inconsciência, que tem a insensibilidade do sério, dado ao endurecimento do espírito e do sentir. Aí, a poesia passa a ser perda de tempo - o brincar com temas tais como “a caricatura de Howard” é perda de tempo - o sério se opõe aqui ao riso, pela culpa, escrúpulo, vergonha que carrega. Acusa tudo e todos, apesar de saber que é a própria, a mesma pessoa que acusa é a que não pode avançar, alterar-se, entrar em metamorfose que lhe é proibida. O jogo que então faz, que tem como atributo básico o desgosto e tédio com a auto limitação tem como finalidade dissipar-se, mantendo grande volubilidade, tida como “volubilidade de aço”! Para quem vive atrás das grades de um convento, de uma prisão o mundo é inobre  e a única coisa que a pessoa não vai pensar é sobre o amor, o desejo e a repressão. Há uma trivialidade nesta situação – trivialidade que diz respeito ao óbvio, ao inconsciente, ao dado.
É importante compreender estas penosas trivialidades. O penoso tem que ser recuperado – se imbrico amor - humor  tem dimensão de espera, esperança. É na trivialidade que tem a dimensão da espera.
Somos muito mais presos, atrás das grades, do que pensamos! Para romper a repressão, a entrega ao destino, é preciso tempo, um tempo largo, uma imensa jornada”!
Meiga Maria Ribeiro Pires, in “O lúdico, o sério e o lúdrico”
[4] Ely Bonini Garcia, in “Da obediência Diabólica Devida à Liberdade Dialógica Devida”.
[5] “Necessário se torna o retorno da pessoa sobre seus próprios passos, pegadas, sombras – no sentido de humor - que diz respeito a processos mentais não-lineares, com simultaneidade de sentidos expressos por uma mentalidade plural, que exige uma busca de positividade, para inteligir verdadeiramente. Como concebe Julian Marias, no seu livro “Tratado sobre a convivência”: “Sem uma considerável dose de bondade se pode ter “lisura”, mas não ser verdadeiramente inteligente... a inteligência consiste sobretudo em abrir-se para a realidade, deixar que ela penetre na mente e seja aceita, reconhecida, possuída. É característico do homem inteligente o “esperar”, não precipitar-se, deixar que o que aparece ante os olhos ou procura penetrar pelo ouvido se manifeste por inteiro, exiba seus títulos de justificação, seja examinado por vários lados, desde distintos pontos de vista”.
O humorismo, nos diz Pirandello, consiste no (íntimo) sentimento do contrário, provocado por uma espécie de reflexão que não se converte numa forma de sentimento senão em seu contrário, ainda que seguindo passo a passo o sentimento como a sombra segue ao corpo. O humorista se fixa no corpo e na sombra, e, às vezes, mais na sombra que no corpo. Essa sombra do humorista é o “outro âmbito, o âmbito irônico, alusivo, imprescindível para as inversões e contrastes.
O humor, de natureza científica, busca o real pela minúcia descritiva, para desvendá-lo. A tomada de consciência é simultânea à transfiguração, transcendência na realidade, à ruptura com o trabalho de Sísifo[5] (condenação a recomeçar incessantemente uma mesma coisa, uma reprodução sem fim do mesmo), à imitação inovadora da realidade que é a saída da prisão da lógica do modelo para a fluidez da lógica do processo.”
Meiga Maria Ribeiro Pires, in “O lúdico, o sério e o lúdrico”


[6] “Os estereótipos, enquanto maneiras de pensar, sentir e agir padronizados e correntes, relacionam-se com a comicidade. Os estereótipos cômicos constituiriam um setor da consciência coletiva (Durkheim), o conjunto de atitudes e reações, mais ou menos padronizados, em face a certo número de objetos, pessoas, instituições, valores, símbolos, etc. Portanto, os estereótipos cômicos são o cômico “cristalizado“, consagrado pela sociedade e susceptível, como tal, de certas repercussões sociais. (ex. a figura da sogra, o marido enganado, o avarento, as caricaturas políticas (Mussolini, Hitler, etc) .
Victoroff encara os “estereótipos cômicos” como uma reação de defesa contra a dor e a frustração. Tais estereótipos possuem um caráter freqüentemente ambíguo (Lúdico x Seriedade x  Lúdrico – Flexibilidade x Rigidez adaptativa x Ambigüidade) – ao mesmo tempo que provocam uma hilaridade geral, parecem estar correlacionados a fatos que inquietam e irritam profundamente a opinião pública. Na verdade, eles tendem a destruir a própria realidade a que se ligam ou, mais precisamente, destruir as representações coletivas que a fazem ser vista como perniciosa ou insuportável, e, por isso mesmo, propiciam invulnerabilidade aos ataques e frustrações que emanam dessa realidade. Daí a sua evidente função de terapêutica social.
O temor do ridículo, suscitado pela sanção satírica usada pela sociedade para obter controle  social visa desenvolver atitudes comuns, manifestar aprovação e desaprovação, indicar segurança e amizade, expressar rejeições ou hostilidades, etc. Todavia, se por um lado o cômico ou o risível pode ser usado pelos que detêm o poder e a autoridade, em todos os níveis, como uma forma de manutenção do quadro normativo e axiológico de uma sociedade, por outro lado, é mais freqüente que outras camadas ou grupos sociais utilizem-no como um meio de facilitação social e mudança, e até como instrumento de luta e oposição. ... A personalidade autoritária ou a moralista se revestem quase sempre de um manto de sisudez e não suportam o cômico e o humor porque põem a nu a sua insegurança e inflexibilidade ou a sua hipocrisia. A intolerância deriva de um espírito geométrico, ao passo que o riso e o cômico originam-se do espírito de finesse.”
Meiga Maria Ribeiro Pires, in “Do riso e do sério”


[7] “Note-se que a dita alteração que Howard teve em seu humor foi uma alteração lúdrica, em que a pessoa perde a isenção do lúdico, fica séria de espírito e faz adaptação algo oportunística de ajustes e ganhos secundários, que se define como “fazer o jogo astuto”, o que prioriza o engano, o ocultamento, a obscuridade.”
Meiga Maria Ribeiro Pires, in “Do lúdico brincar do menino ao lúdrico jogar do menino”.

[8] “Existe nas Filipinas uma curiosa enfermidade que os nativos chamam “mali-mali”. As pessoas endinheiradas daquelas latitudes podem adoentar-se de “tiques”, isto é, de uma forma de excitação nervosa. A doença de mali-mali é uma enfermidade própria das pessoas pobres. É uma forma de debilidade psíquica. Os homens ou as mulheres pobres que ficam doentes de mali-mali apresentam o seguinte sintoma: sentem-se impulsionados a imitar tudo, absolutamente tudo, o que faz a pessoa debaixo de cuja influencia se acham neste momento. Se seu modelo - e seu modelo pode mudar várias vezes por dia – olha o céu, o enfermo olha o céu. Se fica de quatro, o enfermo também fica. Se gritar algo, o enfermo também grita. E assim sucessivamente até que o modelo consiga safar-se do seu imitador ou o proíbe imitá-lo. Mas se o modelo quer divertir-se à custa do infeliz enfermo será fácil, pois este o imita simiescamente. Se o modelo chega a desaparecer de sua vista, o enfermo escolhe rapidamente outro modelo, pois um enfermo de mali-mali não pode existir sem um modelo.
É de se imaginar a miserável existência que levam estes enfermos, privados como se vem de toda autodeterminação. São incapazes de realizar qualquer trabalho que antes não lhes tenha sido “ensinado”; não podem comer se o modelo não come e nem sequer são capazes de cumprir com suas funções puramente vegetativas, involuntárias, se previamente não tenha satisfeito suas necessidades o modelo.
Como se produz esta enfermidade? Que força priva de maneira tão absoluta a alma de sua capacidade de iniciativa? É muito importante como indício que esta enfermidade apareça somente entre pessoas pobres e que suas vítimas imitem precisamente as pessoas endinheiradas, poderosas. Isto permite relacionar a doença com certa forma de mali-mali de nossa própria cultura. Também entre nós, os pobres imitam simiescamente as pessoas mais ricas e adotam seus costumes, seus gestos, sua maneira de vestir. E isto também acontece com a classe média.
De modo que o povo filipino não faz mais que mostrar-nos um fenômeno humano universal; a diferença é que os filipinos sofrem desse mal em um grau mais agudo. Os povos civilizados sabem ocultar seus defeitos com muita mais habilidade. Um malaio se cria com um respeito quase supersticioso, próprio do despossuído, ante ao poderoso. O desejo de ser tão rico como ele é tão intenso que o pobre malaio acaba por anular o pequeno traço de independência que  restava e força sua individualidade a buscar um modelo. Mas nós somos melhores ou mais razoáveis? Notemos que nesta enfermidade se faz manifesto a falta de independência da maioria dos homens. Cremos eleger livremente e decidir de acordo com nosso próprio critério. Mas nada é mais difícil que seguir o próprio caminho e  pertencer-se a si mesmo. Somos escravos da moda. E pobre daquele que se opor a esta tirania. Tiramos nossos pontos de vista dos livros ou dos periódicos, nossos gostos nos são prescritos por estranhos, nossas predileções se adequam a moda em voga. Onde está o livre arbítrio?
Há ainda um sintoma que chamamos de abulia: o abúlico não é capaz de resolver nada. Não consegue decidir-se a levantar de manha, o que comer, o que vestir... Esta enfermidade é também uma caricatura da falta de vontade que está tomada a civilização.
Nunca se repete o suficiente que a educação para a independência é um bem que devemos legar aos nossos filhos.”
Trechos retirados do livro “El querido ego”, de Wilhelm Stekel. Tradução e adaptação Nello Rangel.

[9] “É preciso recuperar a noção de trajeto e para tal a noção de futuro mediato. O instante presente das comunicações imediatas “engole”o espaço e principalmente o tempo, numa verdadeira poluição dromosférica (de dromos- corrida) que atinge a vitalidade do sujeito, atrofiando o trajeto (os passos e o tempo necessários para dá-los), a ponto de torna-lo inútil, dando uma ilusão de ser possível realizar os projetos sem percorrê-lo e a vivência de ser ele um estorvo, um fardo.”
Eugenia Matilde Peixoto Sofal, in “Sobre os trabalhadores do conhecimento”.

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