Nello
de Moura Rangel Neto
“Em
cada signo dorme este monstro: um estereótipo”
Roland
Barthes - Aula
Dizem que, no exato momento em que a bomba caia sobre
Hiroxima um japonês, que acabara de ir ao banheiro, apertava distraidamente o
botão da descarga.
E exclamou:
- Ai meu Deus! O que fiz!?
Anedota popular
Em
tempos de chupa-cabras, discos voadores, proliferação de seitas, astrólogos que
orientam presidentes, poderes de-mentes, bruxas, programadores cerebrais, duendes
e magos, pensar a superstição se torna necessário. Contudo, trata-se de
empreendimento delicado, posto que as pessoas não estão, em geral, dispostas a
abrir mão da pseudo-segurança que suas crenças supersticiosas fornecem.
Para
ilustrarmos esta hipótese desejamos lembrar entrevista publicada na revista
VEJA, com o físico inglês Robert Matthews. Ele pesquisou a “lei de Murphy”,
aquela segundo a qual, se algo tem chance de dar errado, vai dar errado mesmo.
Estudou assim as torradas que insistem em cair com a manteiga virada para
baixo, a chave que insiste em não ser a correta para a fechadura, a fila
escolhida que insiste em ser mais lenta que as outras... E comprovou que nossas
chateações cotidianas não decorrem de “uma grande conspiração contra o bem
estar da humanidade, mas de princípios científicos simples”, frutos não da
sorte ou azar, mas de probabilidades matemáticas e leis da física. E apesar
deste serviço em prol da desmistificação foi agraciado com o prêmio Ig Nobel,
para pesquisas consideradas inúteis.
Por
que esse prêmio? Lembremos que lhe foi concedido por importante universidade
americana. Será que não perceberam nenhuma serventia na desmistificação que a
pesquisa sugeria? Será se estereotipadamente consideraram o assunto imbecil -
estudar torradas com manteiga... - e não se deram ao trabalho de considerar a
extensão de suas conseqüências? O autor aparentemente não se ofendeu. Ficou
satisfeito com a divulgação inesperada de seu trabalho. Mesma sorte não teve
Espinosa, como veremos adiante.
O
pensamento supersticioso é baseado em idéias prontas e crenças à priori, não
sujeitas à refutação pela experiência. Transita por conceitos categóricos,
taxativos e totalizantes. Na superstição não existe espaço para o talvez. E
nesse sentido a superstição é uma forma de pensar estereotipado.
A palavra estereotipia
vem do francês stére, derivado do grego stereós (sólido, firme). Diz respeito a
técnicas de impressão, onde se convertem em formas sólidas (clichê) as páginas
que primeiramente foram compostas em caracteres móveis. Ou seja, remete a uma
transformação do que era móvel em uma forma compacta, fixa. Estereotipar tem
nesse contexto o significado de tornar fixo, inalterável. Na estereotipia, o
aspecto da realidade que não se encaixar no já preconcebido é excluído, não é
considerado.
A
superstição tem características de um modo de pensar estereotipado: lida com
características fixas e imutáveis; nega a complexidade e mutabilidade da
realidade (neste sentido, a superstição foi definida por Adorno como “opinião
infectada”, que se revela nas afirmações categóricas irresponsáveis, do tipo
“toda mulher é dirige mal”, ou “todas as pessoas são egoístas”.); privilegia a
busca do que já está pré-determinado num futuro qualquer, em detrimento da incerteza
e indeterminação do por vir humano; refuta alteração dos seus preconceitos
quando confrontada com uma realidade diversa da que pregava.
A superstição pressupõe a concepção de um mundo
governado por forças misteriosas, onde tudo está definido e faz parte de um
destino preestabelecido. É deste modo um pensamento conservador, que visa
manter uma ordem hierárquica, considerada como fora do tempo humano e da
história, uma ordem sagrada e inquestionável.
Na
superstição as coincidências são hipervalorizadas e tomadas como sinais e
avisos. Acontecimentos fortuitos, como fazer aniversário no mesmo dia que outra
pessoa, são considerados indícios marcantes de algo misterioso e especial. É um
pensamento reducionista, quando considera que os fatos têm uma única causa
suficiente, que tudo explica e justifica, negando assim a multifatoriedade.
Onde há alguma contigüidade a superstição vê logo uma relação de causa-efeito.
Se a pessoa melhora da gripe foi em virtude da benzedeira e não de uma remissão
espontânea de seus sintomas. O homem supersticioso se agarra a respostas
simplificadoras ao invés de parar e pensar as perplexidades da vida.
Na
base da superstição está a crença no poder da vontade, denominada pensamento
mágico. A pessoa crê que pensamentos, verbalizações e gestos podem, de alguma
forma mágica, levar à realização dos desejos ou ao afastamento do azar. A
antecipação dessa forma é bloqueada pois, prisioneiros da onipotência do
pensamento - quando acreditamos que o pensamento pode fazer acontecer as coisas
- tememos antecipar algo e nos julgamos culpados quando acontece algo de ruim
que havíamos imaginado antes. Assim, ficamos com medo de pensar e bloqueamos a
nossa consciência e nossa imaginação[1].
O bloqueio da antecipação é tema
antigo da história humana. O conceito de sortilégio,
por exemplo, está intimamente ligado ao impedimento à memória do futuro.
Sortilégio vem do latim medieval {sortilegiu}, e significa “escolha de sortes”,
ou seja, escolha de objetos destinados a predizer o futuro. É associado à
bruxaria, à feitiçaria e aos presságios.
E enquanto tentativa de manipular o futuro remete à maquinação e a trama. Na
idade média alguns estatutos da inquisição mencionavam o sortilégio como sendo
os delitos de fazer adivinhações.
Antecipar, pensar e considerar o nosso futuro tem assim, em nossa cultura,
impedimentos que remetem estes atos a atos pecaminosos, passíveis de punição e
perseguição. Ser dono de si, pensar com a própria cabeça para lidar com a
própria sorte é quase um sacrilégio, é mexer em terreno perigoso. Quem não se
lembra do jogo do copo adivinhatório e do clima de mistério e temor que o
acompanha? No nosso imaginário antecipar tem a mão do diabo.
A
proibição de pensar trás em si mitos anteriores até à noção de sortilégio. Está
no núcleo do mito do éden. Na Bíblia {Gênesis 2 15/17} vemos: “Tomou, pois, o
Senhor Deus o homem, e colocou-o no paraíso das delícias, para que o cultivasse
e guardasse. E deu-lhe este preceito, dizendo: come de todas as árvores do
paraíso, mas não comas do fruto da árvore da ciência do bem e do mal; porque, em qualquer dia que comeres dele,
morrerás indubitavelmente”.
Nem
mesmo a árvore da vida, que daria a imortalidade, era de tal maneira proibida.
A proibição era da ciência, do juízo, do pensar. Pensar, considerar, conhecer,
ponderar, antecipar e, por isso mesmo, agir exigitivamente, são interditados.
Esses atos levam necessariamente à diferenciação entre eu e o outro, e
ameaçando assim o mito da unidade, a fusão incondicional entre as pessoas, tão
comum em nossos dias.
O
pensamento supersticioso é uma forma de pensamento estereotipado enquanto se
mostra resistente à alteração e a refutação. Neste caso, quando diante de fatos
que nos forçariam a rever nossa posição operamos o mecanismo da dissonância
cognitiva, “que torna a mente humana impermeável às verdades novas nos casos de
conflito entre a ideologia que se defendeu até aqui e os fatos que a refutam”.
A mãe que diz: “Eu te avisei!” quando vê o filho machucado se esquece, por
exemplo, que já havia avisado milhares de vezes antes, e nada acontecera. Deste
modo, presos em obstinada recusa, a realidade não se coloca como contraste para
nós. Supersticiosos, oscilamos entre o otimismo de Polyana e o pessimismo das
leis de Murphy. Permanecemos presos aos estereótipos, nos recusando a abrir os
olhos e pensar por conta própria. A estereotipia pode ser pensada neste
contexto como uma forma de dissonância cognitiva que visa impedir o
pensar-antecipar, e manter a estrutura social.
“Pela decisão dos anjos e julgamento dos santos,
excomungamos, expulsamos, execramos e maldizemos Baruch de Espinosa...Maldito
seja de dia e maldito seja de noite; maldito seja quando se deita e maldito
seja quando se levanta; maldito seja quando sai e maldito seja quando
regressa...Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral ou escrita,
que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça com ele sob o mesmo
teto ou a menos de quatro jardas, que ninguém
leia algo escrito ou transcrito por ele.”
Texto
de excomunhão de Espinosa
Amsterdã,
27 de julho de 1656
Em
sua filosofia Espinosa critica todas as formas de superstição: religiosa,
política e filosófica (Hoje ele provavelmente incluiria a superstição
científica). Combatendo aquilo que considerava “a servidão suprema”, não
surpreende que tenha sido excomungado.
A
superstição pressupõe uma concepção de mundo fortemente hierarquizada. A noção
de destino como fim inevitável é conservadora e visa manter a ordem
hierárquica, concebida como sagrada e inalterável. Em um mundo assim as
relações entre os homens se baseiam na cumplicidade, no favorecimento e na
busca de uma eqüidistância encobridora. Aquele que tenta desmistificar a
superstição é uma ameaça e como tal é tratado. Frente a mentalidade
supersticiosa a diferenciação é quase uma afronta.
Nascida,
segundo Espinosa, de uma oscilação entre o medo e a esperança, a superstição
supõe a crença numa potência ou força distante, num ser supremo e
Todo-Poderoso, capaz de bens ou males, diante dos quais o homem seria um
joguete. Alguns homens aproveitam para se dizer portadores das respostas e dos
poderes, interpretes da vontade divina, engendrando assim um poder religioso
baseado no temor. Poder este que se metamorfoseia em poder militar e político,
se alimentando do temor das massas.
Espinosa
procura desfazer a noção de mistério subjacente a superstição. Ignorância
travestida como se fosse conhecimento, a superstição julga-se saber secreto e
restrito aos iniciados. Conduz assim ao temor supersticioso frente a um poder
incompreensível e perigoso.
“Se os homens pudessem governar suas vidas seguindo uma
deliberação segura, ou se a Fortuna lhes fosse sempre favorável, jamais
sucumbiriam a superstição. Porém, amiúde reduzidos à angústia, já não sabem que
resolução tomar e, arrastados por apetite desmedido pelos bens incertos da
Fortuna, oscilando miseravelmente entre o medo e a esperança, têm o ânimo
inclinado à mais extrema credulidade.”
Espinosa
- Tratado Teológico-Político
Podemos
supor, baseados no texto acima, que a raiz da superstição está na incerteza
diante da Fortuna (Casualidade, eventualidade, acaso, fado, sorte). Contudo,
não é certo que privilegiaremos a credulidade quando diante da incerteza. Ho
Chi Min usou justamente da capacidade de decidir em cima de dúvidas para
conseguir alguma vantagem na guerra do Vietnã, ele partia do pressuposto que os
EUA só agiam cercados de certeza e por isso mesmo demoravam para decidir. Não é
a incerteza que provoca necessariamente a superstição. É a sede de demais
certeza. É a pouca disposição para se haver com a realidade, considerando os
limites e possibilidades, os acasos e incertezas, a sorte ou o revés, próprias
da vida e chaves da liberdade humana. É justo na incerteza nasce a
possibilidade da escolha propriamente humana, pois não somos definitivamente
definidos, não estamos prontos e acabados. Antes somos uma espécie que se
caracteriza pela incompletude e pelo se fazer durante a vida. Não é certo o que
será de nós. Há porvir em nossas vidas.
O termo
superstição vem do latim Superstitione e significa crendice, crença em
presságios tirados de fatos puramente fortuitos, ou apego exagerado e/ou
infundado a qualquer coisa. No latim foi usado por Quintiliano como observação
demasiado escrupulosa. Este significado diluiu-se no tempo, mas ainda se revela
na passividade própria do pensar supersticioso. Em um mundo governado por
forças misteriosas nada podemos fazer. Resta-nos esperarmos passivamente que as
coisas aconteçam, acreditando que elas são fruto da sorte ou revés.
"Não
era ele dos mais supersticiosos, porém os modos estranhos do sertanejo...
despertaram em seu espírito as abusões da época”.
José de
Alencar
Abusão
[Do lat. Abusione] tem vários sentidos: indica engano, ilusão e erro, mas
também trás os significados de superstição, crendice, abuso e patranha
[mentira]. É muito relevante a ligação que aparece aqui entre a superstição e o
abuso. O abuso é mais que um simples uso. É o consumo de alguma coisa da qual
só era permitido o uso, é extinguir até o fim, indevidamente. Podemos dizer que
a superstição é um grande abuso, uma dissipação[2]
sem fim. Presos às crenças supersticiosas dissipamos nossos talentos.
Prisioneiros da passividade própria do pensar supersticioso paralisamos[3]
nosso processo de alteração e desenvolvimento.
Neste
contexto os desejos, projetos, e esperanças já não nos pertencem. Já foram
definidos, e resta esperar que o destino se faça cumprir. Dependem de algum
poder externo ou circunstância caprichosa, mas não fundamentalmente de nós
mesmos. A superstição é uma forma de alienação, no seu sentido mais rigoroso:
estar fora de si mesmo, eknóico e dissociado.
A
superstição também se aplica como categoria quando analisamos o conhecimento. A
superstição científica se revela quando supomos que podemos saber tudo sobre um
determinado assunto, quando achamos possível exaurir um tema. Essa forma
estereotipada de se considerar a ciência implica numa atitude reprodutiva
frente ao conhecimento. Quando pensamos assim “não sabemos, e não sabemos que
não sabemos”. A compreensão é um
processo em andamento. Com o tempo damos passos na direção de saber o pouco que
sabemos, mas principalmente o muito que não sabemos. Não é possível compreender
tudo, abarcar toda a realidade. A ciência se assemelha menos com um substantivo
do que com um verbo. Como exemplo de superstição científica podemos citar o
caso da pessoa que, ao presenciar uma visita de um doutor em veterinária em sua
fazenda ficou impressionado com a quantidade de perguntas que este fez ao
veterinário responsável. “Mas se ele é doutor, como pode perguntar tanto?”
Chegou até a suspeitar da capacitação do doutor, pois supunha que ele deveria
saber tudo. Ou seja perguntar foi considerado um sinal de desconhecimento e
incompetência. E não de sabedoria, de uma mente curiosa e inquieta, que sabe o
pouco que sabe mas sabe também o muito que não sabe.
“As estrelas não mentem, mas tampouco dizem a
verdade: por elas mentem os homens”
Theodor W. Adorno
Em
levantamento realizado no banco de dados do SID/APA, abarcando 2600 indivíduos
de nível superior, observamos a presença marcante de formas de pensar
supersticiosas.
75%
das pessoas concordaram com uma questão que diz que muitos aspectos da
realidade jamais serão compreendidos. Esta questão traz em si uma interdição ao
conhecimento, uma crença de que a realidade é em si preponderantemente
misteriosa e incompreensível.
90%
disseram crer na força do pensamento positivo, sendo que 74 % destas pessoas
tem esta crença com bastante intensidade. Ou seja, o pensamento mágico se
revela com enorme força, a despeito de todas as evidencias cotidianas presentes
na vida de todos nós de que o pensamento não é capaz por si só de provocar a
ocorrência mágica de algo.
41%
destas pessoas, todas de nível de escolaridade superior, concordaram com a
crença de que um dia a astrologia poderá explicar muitas coisas.
A
astrologia, uma das mais dogmáticas crenças populares, deve parte da sua
credibilidade pelo fato de lidar com um dos aspectos mais regulares e coerentes
da realidade: o movimento dos astros no firmamento. E realça ainda mais sua
popularidade se assemelhando a uma ciência, à medida que lança mão de gráficos,
mapas e cálculos matemáticos. Já na Grécia antiga foi acusada por Epicuro de
reduzir o homem a um escravo, com seu livre arbítrio e sua responsabilidade
transferidos para as forças cósmicas. Apesar de inúmeras pesquisas comprovarem
a inverdade de suas predições, a astrologia, como boa superstição que é,
permanece impermeável à refutação.
E,
por último, 33% das pessoas disseram que ninguém pode fugir ao seu destino, uma
porcentagem muito alta de concordância para uma afirmativa tão radical.
Particularmente a noção de destino como imutável e predeterminado é muito
importante no estudo da superstição, pois é característico da pessoa
supersticiosa tentar negar a incerteza e a indeterminação da vida.
A
interdição ao conhecimento dificulta que nos alteremos diante da vida, com
flexibilidade, visto que impede o conhecimento vinculado à vida, ao resolver-se
e conhecer-se; o conhecimento como disposição para a alteração, para perceber o
contraste entre o que supúnhamos ser e o que é. Trata-se do conhecimento diante
do novo, do inesperado, do diverso, que nos dá ao mesmo tempo fundamento e
confiança.
A
superstição, em sua negação da incerteza e do indeterminado, nos leva a uma
classificação apressada dos acontecimentos, reprodutora da ordem social e
característica do pensar estereotipado, que acaba por ser o próprio não pensar.
Nessa discriminação com a parcela incerta da vida muitas vezes corremos de
fantasmas mas não enxergamos os problemas reais. A superstição cultiva o medo,
e o faz irradiar, tomando áreas onde na verdade não havia nada a se temer.
Privilegiamos o espanto, e desconsideramos o pensar e ponderar. “Muito do que
amedronta, não passa de fantasia. Muito do que aniquila, não chega a ser
percebido”[4].
“Havia um homem que ficava tão perturbado ao contemplar
sua sombra e tão mal-humorado com as suas próprias pegadas que achou melhor
livrar-se de ambas. O método encontrado por ele foi o da fuga, tanto de uma,
como de outra.
Levantou-se e pôs-se a correr. Mas, sempre que colocava o
pé no chão, aparecia outro pé, enquanto a sua sombra o acompanhava, sem a menor
dificuldade.
Atribuiu o seu erro ao fato de que não estava correndo
como devia. Então, pôs-se a correr, cada vez mais, sem parar, até que caiu
morto por terra.
O erro dele foi o de não ter percebido que, se apenas
pisasse num lugar sombrio, a sua sombra desapareceria e, se se sentasse ficando
imóvel, não apareceriam mais as suas pegadas.”
Chuang Tzu – A fuga da sombra[5]
A superstição reflete o clima de nossa vida atual: a absurda pressa em que
vivemos, numa absurda corrida desenfreada que não sai do lugar, em busca de
lugar algum. Uma corrida sem sentido que conduz à imobilidade aflita, como se,
ao mesmo tempo, chicoteássemos e freássemos um cavalo de montaria.
Nesse clima, o tempo galopa e escapa
de nossas mãos. Ficamos aflitos, com medos supersticiosos do que pode nos
acontecer. Tomados de pressa e medo, e com a sensação de que estamos ficando
para trás, sendo sucateados, acabamos por perder a prudência e a flexibilidade.
Entramos em cobiça, “em busca do tempo perdido”, e na voracidade, não fazemos
sequer os pequenos atos estratégicos que eram possíveis. Como que em um círculo
vicioso, a própria pressa decorrente da vivência que estamos atrasados, acaba
por paralisar ainda mais nosso movimento.
Para nos liberarmos das amarras da
estereotipia, é preciso parar e pensar. Não temer a tomada de consciência do
mal que nos cabe, considerar a própria experiência e ter os olhos abertos para
ver a realidade.
“Como se tivesse em
vez de olhos binóculos ao contrário, o mundo
se distancia e
pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada,
nada perde a
clareza, fica mais denso.
(...)
Só agora estou
sadio, e era doente, porque meu tempo
galopava e
afligia-me o medo do que viria.
(...)
Sentindo
fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso
o sofrimento e não
suplico a Deus que queira afastá-lo de mim:
por que o afastaria
de mim se não o afasta dos outros?
Sonhei que me
encontrava numa estreita borda sobre o oceano
onde se viam
nadando enormes peixes marítimos.
Tive medo que se
olhasse, cairia. Virei então,
agarrei-me nas
asperezas da parede rochosa,
e movendo-me
lentamente, de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.
Eu era impaciente e
irritava-me a perda de tempo com coisas triviais
incluindo entre
elas a faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a
cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de
molho.”
A
condição poética
Czeslaw
Milosz
Buscar a certeza, buscar o sem
“sombra de dúvidas”, nos faz cair em superstição. Em pressa/medo, com o tempo
galopante e fora de nossas mãos recusamos a “atividade negativa” (permanecer em
incertezas e dúvidas sem tentativa irritada de estabelecer logo o fato ou a
razão). Não sairemos desta busca de
certezas via um cepticismo radical, onde o mundo não teria mais nenhum território
de penumbra ou mistério. O gosto pelo invisível ou pelo espiritual
necessariamente não remete ao pensar supersticioso. A realidade tem uma
dimensão desconhecida pois é aberta e inacabada, tem alguma escuridão, onde nem
tudo está claro e nítido. O espírito céptico pode ressecar-se da vida
surpreendente e tender a incuriosidade, disfarçada de extrema objetividade.
“Nossa época ama o poder, adora o êxito, a
fama, a eficácia, a utilidade {...}. É consolador saber que a 2000 anos, alguém
pregava o contrario: a escuridão, a insegurança, e a ignorância, ou seja, a
sabedoria {...}.”
Octavio Paz, à respeito de Chuang-tzu.
Um
caso ilustra bem o assunto que estamos tratando.
Medo(demo-tique-mali-mali)[8]
é profissional da área de informática. Angustiado com o ritmo acelerado das
alterações em sua especialidade, procurou orientação. Não sabia mais o que
fazer. Tentava se manter atualizado, comprando com grande freqüência revistas
estrangeiras, livros importados e fazendo consultas na internet. Mas não dava
conta de ler tudo, alias lia quase nada, e a pilha de publicações ia crescendo
numa velocidade assustadora. Que fazer?
Foi-lhe
perguntado em quantas áreas trabalhava. Respondeu que trabalhava com
informática e internet. Na verdade pensava que não adiantava fazer nada, filho
de pai que sabe tudo, o que fazer? Supunha que deveria ter nascido sabendo.
A cobiça e pressa de Medo (demo-tique-mali-mali)
eram enormes. A superstição científica presente na sua mentalidade supunha que
ele teria de conhecer tudo de sua área, todas as novidades. Isto é impossível
na época atual, a segunda revolução do conhecimento. Há mais conhecimento
disponível em sua área do que ele seria capaz de acompanhar, quanto mais
compreender. E a maior parte do conhecimento está em produção, emergindo, e
assim continuará a ser. Esta superstição estereotipada é impedidora de qualquer
ação neste contexto. O estereótipo nos diz: “corra, corra, corra que você
alcança”, mas tal como Howard, prisioneiros da superstição, numa verdadeira
poluição dromosférica[9],
estamos fadados a não sair do lugar.
E
a saída foi simples. Medo (demo-tique-mali-mali) passou a dedicar duas horas
diárias para a sua atualização. Ao invés de querer saber tudo, agora pensava em
qual atualização fazer. O que, frente ao mercado profissional atual,
seria sua prioridade, sua preferência, sua escolha?
Procurou afeiçoar-se ao aperfeiçoar-se. Seu trabalho melhorou. A pilha do
conhecimento-sofrimento diminuiu.
A
partir de então Medo (demo-tique-mali-mali) vislumbrou-se como um trabalhador
do conhecimento. Liberou-se da obsessão pelo controle e da paralisia mental que
caracterizavam suas atitudes anteriores. A antecipação e a inovação agora se
colocavam enquanto questões a serem consideradas. Ele pode agora responder por
si.
E
como sugere Roland Barthes:
“Empreendo, pois, o deixar-me levar
pela força de toda vida viva: o esquecimento. Há uma idade em que se ensina o
que se sabe; mas vem em seguida outra, em que se ensina o que não se sabe: isso
se chama pesquisar. Vem talvez agora
a idade de uma outra experiência, a de desaprender,
de deixar trabalhar o remanejamento imprevisível que o esquecimento impõe à
sedimentação dos saberes, das culturas, das crenças que atravessamos. Essa
experiência tem, creio eu, um nome ilustre e fora de moda, que ousarei tomar
aqui sem complexo, na própria encruzilhada de sua etimologia: Sapientia: nenhum
poder, um pouco de saber, um pouco de sabedoria, e o máximo de sabor possível”.
BIBLIOGRAFIA
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propósito das mãos – SID APA, Belo Horizonte, 2000.
BARTHES, Roland - Aula. Editora Cultrix Ltda. São Paulo, 1997.
CHAUI, Marilena - Sobre o medo. In: OS SENTIDOS DA PAIXÃO, São Paulo, Companhia das
Letras, 1987.
GARCIA, Ely Bonini - Da
obediência Diabólica Devida à Liberdade Dialógica Devida, in VISAGENS, Belo Horizonte: Mazza
Edições, 1988.
MATTHEWS, Robert - A teoria do azar. In: REVISTA VEJA, ENTREVISTA CONCEDIDA A THOMAS
TRAUMANN, São Paulo, 4 de junho de 1997.
MERTON, Thomas – A via de Chuang Tzu. Editora Vozes, Petrópolis, 1984.
PAULA, Tanya Pitanguy de – Da
Dissipação – SID APA, Belo Horizonte, 1998.
PIRES, Meiga Maria
Ribeiro – Do brincar do menino – SID APA, Belo Horizonte, 1999.
PIRES, Meiga Maria
Ribeiro – Do lúdico brincar do menino ao lúdrico jogar do menino – SID
APA, Belo Horizonte, 2000.
PIRES, Meiga Maria
Ribeiro – Do riso e do sério – SID APA, Belo Horizonte, 2000.
PIRES, Meiga Maria
Ribeiro – O lúdico, o sério e o lúdrico – SID APA, Belo Horizonte, 2000.
PRIESTLEY, J. B. – El hombre y el tiempo. Aguilar Ediciones,
Madrid, 1964.
RANGEL, Nello de Moura N. - Subjetividade e renegação. In: CICLO DE PALESTRAS COMPETITIVIDADE
E OBJETIVIDADE NA ERA DA INFORMAÇÃO, Fortaleza, 1993.
RANGEL, Nello de Moura, N. - O Reino
rígido da estereotipia. In: SID-APA, ANTROPOLOGIA E PSICOLOGIA
APLICADA, CADERNO DE TEXTOS, PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO PESSOAL, Belo
Horizonte, 1994.
SOUZA, Laura De Mello e - O diabo e a terra de santa cruz. Companhia
das Letras, São Paulo, 1996.
SOFAL, Eugenia Matilde Peixoto – Sobre
os trabalhadores do conhecimento. – SID APA, Belo Horizonte, 1998.
STEKEL, Wilhelm – El querido ego. Ediciones Imán, Buenos Aires,
1960.
[1]
“(...) Mas
nem sei dizer quantas vezes negamos ou bloqueamos a voz da vontade e da vida em
nós! Ou seja, quantas vezes abafamos a voz da vida que nos faz remeter à noção
de que somos seres de escolha! A voz da vida em nós que estabelece ligações com
o ao redor, de modo que nos
redimensiona no tempo, no espaço e realça o que há de vivo tanto em nosso passado quanto nos acorda para o vivo que há no nosso futuro. Situados
assim, nessas condições, nos sentimos “sem perigo e sem mal”.
O nascimento da consciência está
diretamente relacionado ao que sentimos a respeito de nós mesmos – e do mundo -
em determinada situação.
O bloqueio da consciência em primeiro
lugar faz remeter ao bloqueio do mundo subjetivo, ao mundo dos nossos
sentimentos. É o impedimento de nos
tocarmos, de saber dos nossos próprios sentimentos, da nossa própria percepção
de nós mesmos.
Um pilar desse bloqueio é um olhar fixo
para um determinado dever ou idéia pronta. Guiados por um “deveria” (condição
ideal que deveríamos alcançar) qualquer inesperado ou situação diversa da
esperada faz com que voltemos contra nós próprios, num misto de raiva e temor.
Entramos para um estado de máxima ignomínia em que ficamos reduzidos ao “aqui e
agora”, sem perspectiva alguma.
O homem por definição é palmeiro de
realidade. Vai palmo a palmo, tocando, tocando-se e deixando-se tocar, num
processo contínuo de inter-relação recíproca. (...) E nesse espaço que existe
entre ele e o diverso - no ir e vir - nasce o que é especificamente humano: a
consciência.
O bloqueio da consciência é proporcional
ao bloqueio do reconhecimento do sentimento de si mesmo”.
Márcia Madureira
Alvarenga, in “A propósito das mãos”.
[2]“A
dissipação diz respeito a uma atitude de esbanjamento, dispersão e
aniquilamento de bens simbólicos que consumidos até à exaustão, transgridem as
regras da troca generalizada e impedem a circulação de riquezas. Esbanjar um
bem seja ele material ou não, é agir como se a parte de cada um na comunidade
fosse ilimitada, o que por um lado compromete a troca e por outro questiona o
valor dos bens circulantes.
Fundado
numa concepção de mundo determinista e imutável, o comportamento dissipador
leva o indivíduo à passividade e submissão dissolvendo-o no status quo.
Impedido de ser autor da própria vida desperdiça talentos e riquezas
construídas ao longo da existência humana, numa revolta muda contra o
destino que não pode mudar. Esbanja porque tudo já está determinado, restando a
ele apenas sugar o máximo da vida e do outro como um parasita.”
Tanya Pitanguy de Paula in “Da Submissão”.
[3]Paralisar:
tornar paralítico, paraliticar. Tornar inerte, entorpecer (falta de ação,
marasmo, torpor, entorpecimento). Enfraquecer a ação ou energia de;
neutralizar. 4. Fazer parar, cessar, o funcionamento de. 5. Tornar paralítico;
paraliticar (se). 6. Sofrer paralisia. 7. Não progredir; estacionar.
“Há duas maneiras de paralisar frente o
inexistente imaginário: se dissipar na análise (parálise); ou cansaço, fadiga,
e depressão. Não podemos entrar nisso; se chegarmos aí, temos que rir. Se entro
na parálise, dá um cansaço, uma fadiga, uma vivência de repetição como a do
relógio: para sempre, nunca mais...
Quando estou
planejando, antecipando a realidade, estou no inexistente imaginário. A atitude
racional tem que começar com o sorriso; ela não pode vir com o tédio e o
enfado.
Focalizando o
tédio e enfado, desgosto, aborrecimento, nojo – e mais outros significados de
abusado - intrometido, provocador e briguento - chegamos ao sério de espírito,
mal-humorado, aborrecido, contrariado, que se desvia da saudável agressividade,
raiz do amor, tornando-se vítima do impuso colérico. Traz consigo a seriedade
da inconsciência, que tem uma destinação à priori, com ódio ou ira escarnecedora,
ressentimento que disjunta a realidade. Agarra-se então, na concepção de mundo
como inobre e merecedor do desprezo. Aparece aí o tédio, que é definido como
desrespeito pelo mundo, e com ele o desdém, o
desprêzo, a difamação – e o
convencimento de que não vale a pena se envolver com ele. É o mundo da
inocência e do loop (Dic.inglês: acrobacia aérea, na qual o avião descreve um
círculo no plano vertical) - de pessoas sérias que são débeis e enfrentam
ingenuamente as agressões do destino. No primeiro momento a pessoa tem a
percepção de que tem uma armadilha, e tem uma reação imediata a ela – sem
distanciamento ou mediação – e é assim que disjunta o mundo e o próprio self. A
pessoa fica com ódio do mal sucedido e reage de maneira violenta. Há uma fusão
e confusão entre a pessoa e o mundo inobre.
Quando pensamos
em ira, indignação, impulso agressivo (ou impulso lúdico) pensamos na repressão
e na luta contra ela, ludicamente, isto é, com gozo com a autolimitação. Existe
uma definição de situação que oprime e uma tentativa de sair disso. A máscara
da seriedade que aqui se impõe é a da inocência e inconsciência, que tem a
insensibilidade do sério, dado ao endurecimento do espírito e do sentir. Aí, a
poesia passa a ser perda de tempo - o brincar com temas tais como “a caricatura
de Howard” é perda de tempo - o sério se opõe aqui ao riso, pela culpa,
escrúpulo, vergonha que carrega. Acusa tudo e todos, apesar de saber que é a
própria, a mesma pessoa que acusa é a que não pode avançar, alterar-se, entrar
em metamorfose que lhe é proibida. O jogo que então faz, que tem como atributo
básico o desgosto e tédio com a auto limitação tem como finalidade dissipar-se,
mantendo grande volubilidade, tida como “volubilidade de aço”! Para quem vive
atrás das grades de um convento, de uma prisão o mundo é inobre e a única coisa que a pessoa não vai pensar é
sobre o amor, o desejo e a repressão. Há uma trivialidade nesta situação –
trivialidade que diz respeito ao óbvio, ao inconsciente, ao dado.
É importante
compreender estas penosas trivialidades. O penoso tem que ser recuperado – se
imbrico amor - humor tem dimensão de
espera, esperança. É na trivialidade que tem a dimensão da espera.
Somos muito mais
presos, atrás das grades, do que pensamos! Para romper a repressão, a entrega ao
destino, é preciso tempo, um tempo largo, uma imensa jornada”!
Meiga Maria Ribeiro Pires, in “O lúdico, o sério e o lúdrico”
[4] Ely
Bonini Garcia, in “Da obediência
Diabólica Devida à Liberdade Dialógica Devida”.
[5] “Necessário se
torna o retorno da pessoa sobre seus próprios passos, pegadas, sombras – no
sentido de humor - que diz respeito a processos mentais não-lineares, com
simultaneidade de sentidos expressos por uma mentalidade plural, que exige uma
busca de positividade, para inteligir verdadeiramente. Como concebe Julian
Marias, no seu livro “Tratado sobre a convivência”: “Sem uma considerável dose
de bondade se pode ter “lisura”, mas não ser verdadeiramente inteligente... a
inteligência consiste sobretudo em abrir-se para a realidade, deixar que ela
penetre na mente e seja aceita, reconhecida, possuída. É característico do
homem inteligente o “esperar”, não precipitar-se, deixar que o que aparece ante
os olhos ou procura penetrar pelo ouvido se manifeste por inteiro, exiba seus
títulos de justificação, seja examinado por vários lados, desde distintos
pontos de vista”.
O humorismo, nos diz
Pirandello, consiste no (íntimo)
sentimento do contrário, provocado por uma espécie de reflexão que não se
converte numa forma de sentimento senão em seu contrário, ainda que seguindo
passo a passo o sentimento como a sombra segue ao corpo. O humorista se fixa no
corpo e na sombra, e, às vezes, mais na sombra que no corpo. Essa sombra do
humorista é o “outro âmbito, o âmbito irônico, alusivo, imprescindível para as
inversões e contrastes.
O humor, de natureza
científica, busca o real pela minúcia descritiva, para desvendá-lo. A tomada de
consciência é simultânea à transfiguração, transcendência na realidade, à
ruptura com o trabalho de Sísifo[5]
(condenação a recomeçar incessantemente uma mesma coisa, uma reprodução sem fim
do mesmo), à imitação inovadora da realidade que é a saída da prisão da lógica do modelo para a fluidez da lógica do processo.”
Meiga Maria Ribeiro Pires,
in “O lúdico, o sério e o lúdrico”
[6] “Os
estereótipos, enquanto maneiras de pensar, sentir e agir padronizados e
correntes, relacionam-se com a comicidade. Os estereótipos cômicos
constituiriam um setor da consciência coletiva (Durkheim), o conjunto de
atitudes e reações, mais ou menos padronizados, em face a certo número de
objetos, pessoas, instituições, valores, símbolos, etc. Portanto, os
estereótipos cômicos são o cômico “cristalizado“, consagrado pela sociedade e
susceptível, como tal, de certas repercussões sociais. (ex. a figura da sogra,
o marido enganado, o avarento, as caricaturas políticas (Mussolini, Hitler,
etc) .
Victoroff encara
os “estereótipos cômicos” como uma reação de defesa contra a dor e a
frustração. Tais estereótipos possuem um caráter freqüentemente ambíguo (Lúdico
x Seriedade x Lúdrico – Flexibilidade x
Rigidez adaptativa x Ambigüidade) – ao mesmo tempo que provocam uma hilaridade
geral, parecem estar correlacionados a fatos que inquietam e irritam
profundamente a opinião pública. Na verdade, eles tendem a destruir a própria
realidade a que se ligam ou, mais precisamente, destruir as representações
coletivas que a fazem ser vista como perniciosa ou insuportável, e, por isso
mesmo, propiciam invulnerabilidade aos ataques e frustrações que emanam dessa
realidade. Daí a sua evidente função de terapêutica social.
O temor do
ridículo, suscitado pela sanção satírica usada pela sociedade para obter
controle social visa desenvolver
atitudes comuns, manifestar aprovação e desaprovação, indicar segurança e
amizade, expressar rejeições ou hostilidades, etc. Todavia, se por um lado o
cômico ou o risível pode ser usado pelos que detêm o poder e a autoridade, em
todos os níveis, como uma forma de manutenção do quadro normativo e axiológico
de uma sociedade, por outro lado, é mais freqüente que outras camadas ou grupos
sociais utilizem-no como um meio de facilitação social e mudança, e até como
instrumento de luta e oposição. ... A personalidade autoritária ou a moralista
se revestem quase sempre de um manto de sisudez e não suportam o cômico e o
humor porque põem a nu a sua insegurança e inflexibilidade ou a sua hipocrisia.
A intolerância deriva de um espírito geométrico, ao passo que o riso e o cômico
originam-se do espírito de finesse.”
Meiga
Maria Ribeiro Pires, in “Do riso e do sério”
[7]
“Note-se
que a dita alteração que Howard teve em seu humor foi uma alteração lúdrica, em
que a pessoa perde a isenção do lúdico, fica séria de espírito e faz adaptação
algo oportunística de ajustes e ganhos secundários, que se define como “fazer o
jogo astuto”, o que prioriza o engano, o ocultamento, a obscuridade.”
Meiga
Maria Ribeiro Pires, in “Do lúdico brincar do menino ao lúdrico jogar do
menino”.
[8] “Existe nas Filipinas uma
curiosa enfermidade que os nativos chamam “mali-mali”. As pessoas endinheiradas
daquelas latitudes podem adoentar-se de “tiques”, isto é, de uma forma de
excitação nervosa. A doença de mali-mali é uma enfermidade própria das pessoas
pobres. É uma forma de debilidade psíquica. Os homens ou as mulheres pobres que
ficam doentes de mali-mali apresentam o seguinte sintoma: sentem-se
impulsionados a imitar tudo, absolutamente tudo, o que faz a pessoa debaixo de
cuja influencia se acham neste momento. Se seu modelo - e seu modelo pode mudar
várias vezes por dia – olha o céu, o enfermo olha o céu. Se fica de quatro, o
enfermo também fica. Se gritar algo, o enfermo também grita. E assim
sucessivamente até que o modelo consiga safar-se do seu imitador ou o proíbe
imitá-lo. Mas se o modelo quer divertir-se à custa do infeliz enfermo será fácil,
pois este o imita simiescamente. Se o modelo chega a desaparecer de sua vista,
o enfermo escolhe rapidamente outro modelo, pois um enfermo de mali-mali não
pode existir sem um modelo.
É de se imaginar a miserável existência que levam
estes enfermos, privados como se vem de toda autodeterminação. São incapazes de
realizar qualquer trabalho que antes não lhes tenha sido “ensinado”; não podem
comer se o modelo não come e nem sequer são capazes de cumprir com suas funções
puramente vegetativas, involuntárias, se previamente não tenha satisfeito suas
necessidades o modelo.
Como se produz esta enfermidade? Que força priva de
maneira tão absoluta a alma de sua capacidade de iniciativa? É muito importante
como indício que esta enfermidade apareça somente entre pessoas pobres e que
suas vítimas imitem precisamente as pessoas endinheiradas, poderosas. Isto
permite relacionar a doença com certa forma de mali-mali de nossa própria
cultura. Também entre nós, os pobres imitam simiescamente as pessoas mais ricas
e adotam seus costumes, seus gestos, sua maneira de vestir. E isto também
acontece com a classe média.
De modo que o povo filipino não faz mais que
mostrar-nos um fenômeno humano universal; a diferença é que os filipinos sofrem
desse mal em um grau mais agudo. Os povos civilizados sabem ocultar seus
defeitos com muita mais habilidade. Um malaio se cria com um respeito quase
supersticioso, próprio do despossuído, ante ao poderoso. O desejo de ser tão
rico como ele é tão intenso que o pobre malaio acaba por anular o pequeno traço
de independência que restava e força sua
individualidade a buscar um modelo. Mas nós somos melhores ou mais razoáveis?
Notemos que nesta enfermidade se faz manifesto a falta de independência da maioria
dos homens. Cremos eleger livremente e decidir de acordo com nosso próprio
critério. Mas nada é mais difícil que seguir o próprio caminho e pertencer-se a si mesmo. Somos escravos da
moda. E pobre daquele que se opor a esta tirania. Tiramos nossos pontos de
vista dos livros ou dos periódicos, nossos gostos nos são prescritos por
estranhos, nossas predileções se adequam a moda em voga. Onde está o livre
arbítrio?
Há ainda um sintoma que chamamos de abulia: o
abúlico não é capaz de resolver nada. Não consegue decidir-se a levantar de
manha, o que comer, o que vestir... Esta enfermidade é também uma caricatura da
falta de vontade que está tomada a civilização.
Nunca se repete o suficiente que a educação para a
independência é um bem que devemos legar aos nossos filhos.”
Trechos retirados do livro
“El querido ego”, de Wilhelm Stekel. Tradução e adaptação Nello Rangel.
[9] “É
preciso recuperar a noção de trajeto e para tal a noção de futuro mediato. O
instante presente das comunicações imediatas “engole”o espaço e principalmente
o tempo, numa verdadeira poluição dromosférica (de dromos- corrida) que atinge
a vitalidade do sujeito, atrofiando o trajeto (os passos e o tempo necessários
para dá-los), a ponto de torna-lo inútil, dando uma ilusão de ser possível
realizar os projetos sem percorrê-lo e a vivência de ser ele um estorvo, um
fardo.”
Eugenia Matilde Peixoto
Sofal, in “Sobre os trabalhadores do conhecimento”.
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