Verdade e concórdia
(...)
Coexiste tudo o que existe juntamente e ao mesmo tempo. As
coisas coexistem, e o homem com elas; conviver é viver juntos, e se refere às
pessoas como tais. Isto é, com suas diferenças, com suas discrepâncias, com
seus conflitos, com suas lutas no âmbito da convivência, dessa operação que
consiste em viver juntos.
Isto é precisamente a concórdia, cuja condição é o escrupuloso
respeito ao que é verdade, ou seja, à estrutura da realidade, o que exclui a
homogeneidade, a unanimidade, que escassas vezes existe.
(...)
Viver, para o homem, não é um empreendimento demasiado
fácil. Ele não tem outra solução senão acertar; sua vida é permanentemente
insegurança; não dispõe de um sistema eficaz de instintos que orientem e
regulem o seu comportamento; tem projetos, sendo necessário decidir se são ou
não factíveis, e se são conciliáveis com os dos outros homens. Por essa razão,
o erro, tão raro na vida animal, é ameaça constante da vida humana. Por isso, o
homem não pode senão pensar, usar a razão, que nem sempre possui em grau
necessário, mas de que – e isso é decisivo – precisa, sem a qual não pode viver
humanamente.
(...)
Trata-se, pois, do que acontece à verdade; quando esta é
desconhecida ou negada, não só se perde a liberdade e se é servo da falsidade,
como também é suscitada a destruição da concórdia, da capacidade de conviver
conservando todas as diferenças, as discrepâncias ocasionais; em suma, o
conjunto das diversas e verdadeiras liberdades.
Abertura e fechamento
Cada vez parece mais confirmada minha convicção de que sem
uma considerável dose de bondade se pode ser “esperto”, mas não verdadeiramente
inteligente. (...) A inteligência consiste sobretudo em abrir-se à realidade,
deixar que ela penetre na mente e seja aceita, reconhecida, possuída.(...)
Inteligência é compreender a realidade, o que é diferente de utilizá-la ou
manipulá-la.
É característico do homem inteligente “esperar”, não
precipitar-se, deixar que o que aparece ante seus olhos ou procura penetrar em
seus ouvidos se manifeste por inteiro, exiba seus títulos de justificação, seja
examinado por vários lados, de distintos pontos de vista. Essa é a razão pela qual
as mulheres, quando de fato o são – ou seja, quando são fiéis à sua condição
própria -, se revelam sumamente inteligentes, proporcionalmente mais do que os
homens, tantas vezes apressados.
(...)
Às vezes, o fechamento se deve `a escassez de inteligência,
à incapacidade de se refletir sobre o que se leu ou ouviu. (...)
Mas há uma forma de fechamento mais profundo e que merece
ser examinado. Não se trata de simples fechamento, obturação da mente diante do
que procura penetrar nela. Tem um caráter defensivo, é uma resistência ao real,
como se este fosse uma agressão ou ameaça. Por isso esta forma de fechamento é
hostil, quase sempre polemica, beligerante.
A pessoa sente-se em perigo, inquieto, agredido, não por uma
tese distinta ou oposta, mas pela própria realidade. Isto é, defende o que no
fundo sabe que não é verdade, identifica-se com isto, como se fosse ele mesmo,
rejeita o diferente.
Não se compreende bem essa atitude. Como se pode a realidade
ser inimiga? Não é ela aquilo que nos cerca, com o qual temos que construir a
nossa vida? A estrutura efetiva do mundo, a historia que de fato aconteceu, a
consistência do humano, as condições da personalidade, como pode ser isso
adverso, devendo ser combatido e rechaçado? Se olharmos com cuidado, é a expressão
máxima de insegurança, o temor de ver dissipar-se aquilo se considerou, sem
motivo, como fundamento da própria vida.
Essa impressão de que há muitos que não percebem nada, que
persistem imperturbáveis em noções que não resistem a um minuto de reflexão e
análise, ao confronto com os fatos, é desalentadora. É sobremaneira freqüente
quando intervem a paixão política, quase sempre associada à mentira. (...) Há
formas extremas que estão rigorosamente estabelecidas sobre a falsificação,
para as quais a realidade é um veneno mortal.
Mas ao lado desse fechamento, há sintomas encorajadores de
abertura - muito especialmente entre pessoas que não tem grandes pretensões,
que não procuram definir, que não crêem que sabem tudo. São aquelas que buscam
precisamente inteirar-se, perceber – isto é, integrar-se, - que sentem alegria
e gratidão quando lhes é mostrado algo que não tinham visto ou com o que não
tinham contado.
E essa magnitude é máxima se descobrem que se achavam em
erro, se se vêm obrigadas a corrigir, isto é, a instalar-se na verdade que lhes
escapara. Sentem que são melhores, mais reais, que aconteceu um fortalecimento
de sua própria pessoa.
(...)
Creio perceber sintomas de abertura nos jovens, que às vezes
adota a forma de desorientação, provavelmente porque eles têm de combater as
tentações de fechamento para procurar ser eles mesmos, aquilo que no fundo
desejam ser. Se não me equivoco, isto é o mais esperançoso no horizonte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário