Nello de Moura Rangel Neto
Alguns quadros parecem ter a propensão de causar estranhamento em quem os vê. A pintura “Os cachorros da madrugada”, de Nello Nuno, tem essa qualidade.
Esse quadro é cercado de roxo, de um
tom ao mesmo tempo profundo e ambíguo.
Acima, sobre o fundo negro, um
cachorro translúcido nos fita, tendo uma lua ao lado e um pequeno sol ao fundo,
que ilumina muito pouco.
Abaixo,
sobre um fundo azul, outro cão, igualmente translúcido, nos olha, ladeado por dois
pássaros que tentam entrar nesse fundo azul, e por um gato, que também nos olha
de frente, tranquilamente postado na zona de fronteira entre o azul e o roxo.
Invade ainda o espaço azul pela direita um galho com folhas.
Um dos
pássaros parece descer dos limites do quadrante superior para o quadrante
inferior, enquanto uma flor, com as raízes expostas, parece subir em sentido
contrário, para o quadrante superior. Como único elemento inteiramente fora dos
dois quadrantes aparece uma forma verde, à direita, que insinua a imagem de uma
das duas pedras do pico do Itacolomy, símbolo de Ouro Preto, cidade que o
artista escolheu para residir.
Apesar
de a pintura portar uma estrutura simples, dois quadrantes, um superior e um
inferior, preenchidos por diferentes elementos, essa estrutura não induz a uma
sensação de estabilidade. A dinâmica do quadro é intensa e complexa, com o
nosso olhar passeando por toda a obra, pulando de tom em tom, em uma dança de
cores que passa por todo o campo pictórico. A dicotomia aparente entre os dois
campos também é rompida quando vazada pelo pássaro que desce e pela planta que
sobe.
Paradoxal
esta composição: o pássaro, ser alado e associado ao
espaço livre e ao ar, desce ao solo; a planta, ser incapaz de sair do lugar,
enraizada ao solo, sobe ao ar e rompe espaços, explodindo numa flor rosa,
figura central do quadro pelo intenso contraste entre sua cor e o negro do
fundo.
Igualmente
paradoxal é a divisão do espaço em dois quadrantes. O superior sugere mais a
terra, pela sua cor negra e pela tênue sombra horizontal azul projetada pelo
sol, que parece indicar cumes de montanhas. O quadrante inferior é azul e
sugere com sua cor o céu, o espaço aéreo, apesar de estar na parte inferior do
quadro.
Outra
interpretação possível para os dois quadrantes é considerar noite no quadrante
negro superior e dia no quadrante azul inferior. Mas o quadrante inferior tende
mais para uma madrugada, especificamente quando na madrugada começa a se insinuar
um amanhecer. Parece mais com a madrugada não somente pelo tom de azul mais
próprio mesmo do final da madrugada como também por um efeito de lusco-fusco,
aquele período que não é dia nem é noite, período crepuscular, onde já não é
tão escuro, mas ainda não está realmente claro. Nesse período nossos olhos não
conseguem ver com precisão porque não sabem como se adaptar a essa luz
intermediária. Não sabem se privilegiam os cones, células especializadas da
nossa retina que veem cores e precisam de mais luz para funcionar bem. Ou se
privilegiam os bastonetes, células que veem movimentos e variações sutis de
luminosidades e precisam de menos luz.
Além
do azul crepuscular que preenche o fundo do quadrante inferior, o artista usa
também de um recurso cromático para induzir a sensação da madrugada e do
lusco-fusco. O azul do fundo possui uma luminosidade praticamente idêntica aos
verdes dos pássaros e do galho com folhas. Para definir os limites de uma forma,
nossa visão usa principalmente das diferenças de luminosidade entre os tons.
Como essa diferença é quase inexistente nesse caso, o olho se confunde ao
tentar precisar os contornos dessas figuras. Basta comprimir um pouco os olhos diante
do quadro que se percebe como as figuras azuis e verdes se misturam. Este é
mais um elemento do quadro que induz percepções ambivalentes.
É relevante
observar que a flor germina no quadrante dia e floresce no quadrante noite.
À
exceção dos pássaros, pelo fato de terem um olho de cada lado da cabeça, todos
os outros bichos nos olham de frente, nos encaram de uma maneira muito intensa,
com seus olhos ressaltados por cores de grande contraste e brilho. São olhares
acusatórios? São olhares inquisidores? São olhares que nos remetem a nós
mesmos, como se quisessem sugerir que olhássemos para dentro de nós? Difícil
precisar. Como é próprio deste quadro há mais de um sentido possível nesses
olhares.
A
translucidez dos corpos dos cachorros produz uma sensação de profundidade ambígua,
ora destacando os corpos do fundo, ora jogando-os para trás enquanto joga o
fundo para a frente. Ao mesmo tempo em que deixa ver através, essa translucidez
obscurece, não deixando ver tudo, mas apenas em parte.
Não há
nenhuma pessoa no quadro. Os seres vivos que o compõem são animais ou vegetais,
induzindo a ideia de uma vivência regressiva, remetendo às historias infantis,
permeadas de bichos sobre os quais projetamos as atitudes e os sentimentos
humanos.
As
linhas divisórias do quadrante superior e inferior funcionam como fronteira
entre os espaços da pintura. E essa fronteira é atravessada pelos pássaros,
pelo gato, pela flor e pelo galho. Mas ao atravessá-la todos eles mudam de cor,
metamorfoseados, como que sugerindo as mudanças que se sofrem quando se
ultrapassam as fronteiras do que é fixo e determinado. Particularmente o caule
da flor não só muda de cor como muda também de luminosidade. Na parte inferior
a luz que ilumina o caule vem a partir do lado direito. Já na parte superior a
luz vem iluminar a partir do lado esquerdo.
Chama
a atenção a assinatura do pintor, por ter dois tons. Percebe-se que o sobrenome
foi pintado algum tempo depois da pintura do nome, tendo o autor usado tom de
azul diferente. O tom de azul do nome é idêntico ao tom de azul da raiz da
flor. Sabe-se que foi a primeira vez que Nello Nuno assinou em uma obra sua o
seu sobrenome Rangel. Em um quadro tão fluido e tão avesso diante de qualquer
tentativa de classificação taxativa e apressada, o artista elabora a própria
identidade. E parece sugerir que identidade possa ser algo mais próximo do
fluido, da mudança, do que do fixo e do imutável.
Essa
pintura não aceita uma leitura dicotômica, dualista ou idealista. Seus
elementos constitutivos não permitem a classificação apressada, transmutando-se
sempre que tentamos aprisioná-los em estereótipos. São os cães que saltam aos
olhos ou recuam, que revelam ou escondem. É a flor que sobe e o pássaro que
desce. São os olhares que encaram sem permitir classificar seu sentido. É o sol
que não ilumina e a flor que o faz. É o animal e a planta que se metamorfoseiam
ao ultrapassar fronteiras. Assim, são muitos os elementos que indicam uma
ambivalência de sentidos e dessa forma nos lançam numa atmosfera de incerteza e
indefinição.
Daí
serem tão frequentes o estranhamento e a inquietude vivenciados pelas pessoas
que olham para essa obra.
Estranhamento
é uma palavra com etimologia muito precisa: remete ao estrangeiro, àquele que é
de fora, que não pertence à família. Estranhamento é a atitude primeira de
muitas pessoas quando estão diante desse quadro. Julgo que essa atitude revela
a dificuldade que temos com aquilo que em nós consideramos como feio, errado ou
mau, e que o quadro parece de alguma forma nos querer lembrar disso.
Talvez,
por isso mesmo, esse quadro traga em si a possibilidade de modificar algo em
nós, modificar algumas formas muito taxativas que temos de olhar para nós
mesmos (e consequentemente para os outros à nossa volta), ou até permitir uma
reconfiguração um pouco mais abrangente dentro de cada um, uma verdadeira
ressimbolização do modo de se ver e do modo de ver a realidade na qual vivemos.
É um
quadro que exige coragem. Especialmente a coragem de se refazer, de se
ressimbolizar, de se lançar no espaço da mudança e da transformação.
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