“Minha
mãe era uma figura de constante e misteriosa doçura, sempre mergulhada em um
sonho longínquo, como se toda ela estivesse envolvida em seu manto de viuvez,
de crepe suave, quase invisível, que não deixava distinguir-se bem os seus traços,
os seus olhos distantes. Andava pelas salas de nossa casa em silencio,
sentava-se em sua cadeira habitual sem que se ouvisse o ruído de seus passos,
e, quando falava, era em um só tom, sem que nunca a impaciência a
alterasse. A influencia que exerceu sobre os caracteres inquietos e
contraditórios de seus filhos foi intensa, invencível, mas serena, e se fazia
sentir apenas por intuição, pela rede mágica que nos prendia na preocupação
sufocante de não provocar uma nuvem de tristeza que perturbasse o seu
olhar altivo e doce, que nos falava com irresistível eloquência. Parecia
a nós todos que um gesto mais forte, uma palavra mais alta, de nossa parte,
viria quebrar aquele encanto, e partir o cristal muito frágil que a mantinha
entre nós, e vivíamos assustados, retidos pelo medo de agir, de sentir, de
viver, de forma poderosa e plena, e assim despertá-la, e poderia então ouvir as
batidas de nossos corações, agitados pela maldade do mundo. Sabíamos todos,
contado em segredo pelas outras senhoras, o rápido e doloroso drama que a tinha
despedaçado. Tendo casado em Paris, seguira para Itabira do Mato Dentro, e,
depois de oito anos de felicidade, meu pai morrera subitamente. Desorientada,
tentou refugiar-se junto de minha avó, que ficara em Honório Bicalho, onde
estava a mineração de ouro de minha família materna, e, na estação, soube que
ela falecera na véspera. Quis então ir para junto da irmã materna e sua
madrinha, em São Paulo, mas esta também morreu, no mesmo mês... e assim se
fechara sobre ela uma lousa inviolável de renúncia e de tristeza, que nunca
podemos vencer, durante tantos anos de sobrevivência. Quando fecho os olhos
ainda a vejo, a mesma de todo o tempo, e procuro em seu rosto ou em suas mãos
um sinal de paz e de espera. Mas não o vejo, e me lamento porque não a fiz
sofrer sem reservas, porque não a fiz chorar todas as lágrimas da maternidade
infeliz, porque não despejei em seu coração todo o fel que prendi ferozmente no
meu, porque não lhe pedi socorro aos gritos, não deixei que eles saíssem de
minha boca, fechada com violência pelo medo e pela incompreensão... e é
por isso que desejava guardar sua imagem muito pura, muito secreta, e tenho a
impressão de traí-la, falando sobre ela! “
in
Cornélio Penna, romances completos, editora José Aguilar, 1958.
Pg XXVI.
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