quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Do amor à vida



Quanto atentos estamos ao mais singelo aspecto ao nosso redor?

Essa rachadura na parede à nossa frente será, provavelmente, consertada em tempo. Mas mesmo que não o fosse, mesmo que tudo aqui ruísse, ainda assim, sobre as pedras que sobrassem, musgos, capim, moitas e, depois, árvores, viriam, transformando e recriando esse lugar.

Esse menino esteve doente outro dia. Mas a febre passou e ele voltou a comer melhor. Já está crescendo de novo.

Mesmo após um tsunami, após a explosão de um vulcão, ou um terremoto, ou guerras terríveis, mesmo após isso tudo, a vida volta. 

Será se precisaríamos passar por enorme apuro para, somente então, conseguirmos vislumbrar as janelas, portas e frestas abertas?

Quando biófilos conseguimos ver melhor.

Parece que temos a necessidade de projetos duradouros, por nossa sede de permanência. O trabalho nos tomará muitos anos. Os filhos, se os tivermos, mais tantos. Mas um dia estaremos aposentados e nossos filhos estarão cuidando da vida deles (e isso nos fará felizes). Nosso conjugue poderá demorar mais que os outros dois. Mas um dia também poderá nos deixar. Contudo, os três, como tudo que é vivo, seguirão seu curso, afirmando cada qual a sua finitude. Nós também.

O amor à vida não seria, pois, o afeiçoar-se a esses processos, essas jornadas? A esperança - belo sinal da presença biófila - não seria também algo semelhante? Um saber-se finito e a caminho dessa finitude, e permanecer caminhando, intuindo que é nesse caminhar que permanecemos, mesmo se formos?

É como Miguilim descobrindo a beleza do mundo pouco depois de perder seu irmãozinho, o Dito.

O amor à vida é como o capim agora verdinho, que depois de meses de seca, acaba de ver chuva. É como a cadelinha sumida do sítio que reaparece cheia de cachorrinhos.  É como aquela pessoa arrasada por meses depois de um término de um amor que conhece alguém muito legal e se vê com os olhos brilhando. É como a cidade depois da enchente que começa a se limpar, tirar a lama, se assemelhando ao que era antes. O amor a vida se parece com a pessoa magoada, triste por pensar que nunca recuperaria aquela amizade e que se assusta ao perceber que já conversa com o amigo, esquecendo-se, ao menos por momentos, do rancor. Se parece com um filho inesperado para um casamento até então infértil, ou com um casamento sem filhos que descobre outros frutos gerados. Ou com um neném boquiaberto ao ir descobrindo o mundo. Ou com uma criança às vésperas do natal. O amor à vida é como um caderno novo no primeiro dia de aula. É uma aposta, de carta marcada, na beleza, bondade e sentido da vida.

O amor à vida está ao alcance de nossas mãos. Já. Agora. Se olharmos verdadeiramente o mundo. 

O amor à vida é um bom remédio para a saudade.


terça-feira, 22 de setembro de 2015

- Mamãe pediu para eu conversar com você sobre meu pai.




- Mamãe pediu para eu conversar com você sobre meu pai.

- É?

- É. Porque ele só liga no domingo. E fica uns dez minutinhos comigo no telefone. Não tem assunto, parece.

- Você fica chateada?

- Sim. Acho que ele deveria me procurar mais. Mas sei que eu também não tenho muito assunto com ele. Já tem tanto tempo que quem cuida de mim é o meu padrasto...

- Você sabia que seu padrasto marcou comigo quando seu irmão ia nascer?

- Não...

- Sabe o porquê?

- Não...

- Ele estava muito aflito. Alguns amigos falaram que só agora, que ele ia ter um filho dele mesmo, é que ele ia saber o que era ser pai. Diziam que com o neném nas mãos ele sentiria algo que nunca sentiu antes. E que ainda por cima era um menino, que agora ele ia saber, de verdade, o que era ser pai. E sabe porque ele estava tão aflito que chegou a marcar uma consulta comigo?

- Por que?

- Ele estava morrendo de medo. Morrendo de medo dos amigos estarem certos. Ele achava que já sabia o que era ser pai. Pois ele já era seu pai. Ele sentia assim. Mas estava com medo de sentir algo diferente com o nascimento do neném. E descobrir que realmente não sabia o que era ser pai. Depois do parto ele marcou comigo de novo. E me contou o que sentiu...

- E o que foi?!

- Um maravilhoso e profundo amor. Lindo. Ficou extasiado com o filho recém-nascido nos braços. E viu que era exatamente igual ao sentimento que ele sentia em relação a você. Ele ficou todo feliz ao perceber que os amigos estavam errados. Até marcou pra me contar, todo alegre. Que ele é seu pai, sim.


Um sorriso iluminou o rosto e os olhos de Carolina.


- É curioso as pessoas se referirem ao pai biológico com sendo o pai verdadeiro. Pai verdadeiro é quem cria, quem cuida, quem ama. Seu padrasto é seu pai verdadeiro. E com ele você tem uma relação ótima! Se for do seu desejo podemos tentar melhorar sua relação com seu pai biológico, tem várias coisas que você pode fazer. Mas é importante você saber que já tem um pai muito legal. Que moça sortuda! Tem dois pais! Um precisa de uma ajeitadinha, é verdade. Tá meio fechadão, meio sem jeito. Mas o outro já está mais do que bom!


Difícil descrever o tanto que seus olhos brilhavam.


É importante saber que problemas falsos, apesar de serem equivocados no que afirmam, podem gerar consequências verdadeiras. De certa forma ela se sentia meio órfã, com a distância desconcertada de seu pai biológico. Se sentia meio órfã tendo, verdadeiramente, dois pais. Se sentia miserável no meio da fartura.

Definir bem um problema é já encaminhar bastante a sua resolução.


domingo, 13 de setembro de 2015

Eu gosto de laranja


A noite foi muito legal. Combinaram de se ver de novo na sexta, os dois teriam uma semana bem puxada. Conversaram num clima ótimo todos os dias durante a semana. Na quinta, quando ele ligou a conversa já era outra:

- Foi bom mesmo você ter ligado. Preciso conversar com você.

O tom definitivamente não era bom. Na hora ele percebeu que já era. Combinaram um horário. Na sexta sentaram e ela começou:

- Sabe o que é? Sei lá... Acho que o que aconteceu entre nós não deveria ter acontecido.... Acho que foi um erro.... Não devíamos ter ficado juntos.... Acho que foi um engano...

E foi falando, falando... Ele permanecia em silêncio. Até que ela concluiu:

- .... Acho que eu não gosto de você...

Ele ficou em silêncio mais um pouco e disse:

- Eu gosto de laranja.

- Como?

- Eu gosto de laranja. Aí eu descasco, chupo e não gosto mais. A vontade passa.

- Mas...

- Eu nunca pensei que gostasse de você. Gostar, para mim, é pouco. E passa rápido. Eu percebia em nós uma afinidade, uns interesses comuns.... Eu achei mesmo que poderia te amar.

- !?... Mas, se é assim...


- Desculpe, mas acho que você não está entendendo. Agora quem não quer sou eu. Sinto, mas não quero me envolver com uma pessoa que uma hora quer, depois segue entusiasmada, toda feliz e, do nada, muda de opinião e acha que não gosta mais. Se orientar por gostar ou não é muito pouco. Eu gosto de laranja. E não trato pessoas assim. Não quero quem quer uma hora, depois avalia se não haveria algo melhor e já não quer mais. Quero quem me queira.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

inapetência



não sei colocar o pronome

confundo ao concordar certas palavras

me canso diante das regras

- preguiça que me torna suspeito -

coragem colegas poetas

gramaticalmente incompetentes

poesia é para os dentes

domingo, 23 de agosto de 2015

Meu bem



Meu bem
amar é coisa do dia
- bem sei, tem gente notívaga -
mas amar
mesmo
tem a ver com a escova
de dentes.
Com café, despertador
e levar meninos a escola.
Não se decepcione,
amar assim é bom
e é verdade.
Mostra-se num espelho cotidiano
de pequenos detalhes
dia após dia,
ainda juntos,
confiar
que andamos
a algum lugar.
Um olhar diz muito,
uma palavra basta,
um gesto preciso
surpreende.
É fácil supor
que o novo é o amor
mais fácil ainda
é gostar do frescor.
Mas, meu bem,
sabemos
eu e você
que todos um dia vão
se conhecer.
E verão
o amor compartilhado
é o único consistente.
Se bem cuidado
e atento
é eternamente
semente.



(Para Ângela)

sábado, 8 de agosto de 2015

Pai

Meus Amores, Óleo sobre tela, Nello Nuno.


Do que me lembro quando penso em você? E tenho tanta pena por me lembrar tão pouco...

Lembro-me de conseguir sua autorização para brigar de canivete com meninos bem mais velhos que estavam me provocando. Bem que tentei, mas eles acharam graça.

Lembro do dia que você chegou com alguma coisa de comer em casa - acho que eram uvas - e uma algazarra de meninos se montou em volta.

Algumas vezes tenho uma vaga lembrança de você bravo comigo. 

Lembro de estar quase sufocado quando você colocou sua perna em cima de mim quando brincávamos de brigar. Lembro que você ficou sem ar quando acertei uma cabeçada na sua barriga.

Lembro da gente no clube, você nadando de costas e eu deitado na sua barriga.

Lembro que uma noite acordei apavorado com o barulho de um monstro e descobrir que era você roncando.

Lembro que passava no Tofollo e jogava xadrez com o Ivan enquanto você bebia cerveja. Lembro de pegar dinheiro com você para comer um pudim de leite condensado na massaroca.

Tenho vagas memórias de você que não sei se são lembranças ou imaginações de casos escutados. Acho que sua voz está nessa categoria. Não sei se me lembro ou se imagino. Acho que era meio rouca, parecida com a minha. Mas pode ser que eu  desejasse que fosse.

Tem coisas que lembro de todos os detalhes. Mas não gosto. E não era você. Lembro direitinho de entrar no quarto e ouvir Meiga dizer que precisava me contar uma coisa. Lembro que vi Alessandra chorando e que, apesar de não saber de nada do que se passara, perguntei se você tinha morrido. Lembro que só chorei depois que Meiga começou a perguntar das coisas que fazíamos juntos.

Gostaria de me lembrar de tanta coisa. Mas o susto foi tão grande que acho que me esqueci. Apesar disso tenho a impressão de que meu corpo se lembra de você. Outro dia um senhor descobriu que eu era seu filho e disse que eu andava igualzinho a você. Gostei muito de saber. Gosto de pensar que eu puxei ao menos uma parte do seu bom humor. E uma parte da sua alegria.

Gostaria de me lembrar de você me ensinando a barbear. Foi meio arriscado aprender sozinho. Será se você me encorajaria a dizer pra coleguinha que eu gostava dela? Gostaria muito de me lembrar de você com meus filhos. Acho que Ângela ia adorar conhecer você, acho que voces combinariam bem. Gostaria de me lembrar, imagina, de beber com você em algum bar, apesar da tristeza que tantas vezes sinto quando bebo com alguém da minha família. 

Gostaria de me lembrar de uma despedida. Gostaria que eu pudesse ter-lhe dito adeus. Ou até logo.

domingo, 2 de agosto de 2015

De como a cobiça, a pressa e o medo são irmãos


- Não sei o que fazer... Tenho um marido maravilhoso, um neném lindo... Mas meu colega no novo trabalho está dando em cima de mim! Pior! Estou interessada! Como posso estar apaixonada por esse cara?!
- Você não está apaixonada.

- Como não!?
- Você está com cobiça. A cobiça é também um tipo de pressa. E um tipo de medo.
- Como assim...?
- Ele é rico?
- É...
- Você sente que estando com ele os problemas de dinheiro acabariam. Você mudou de cidade, casou, teve filho, mudou de trabalho, iniciou uma pós, tudo ao mesmo tempo. Está com pressa. E cobiça. E medo. A renda é insuficiente. Mas é insuficiente agora. VocÊ acabou de se mudar. E se apertar um pouco dá pra adaptar. Mas ficando com o sujeito parece que tudo se resolveria. É a impressão que você tem. E ele parece tão legal, resolvido, simpático. Bem, legal por legal seu marido também é. E já o é há um bom tempo. E ele você conhece bem, ele é mesmo bem carinhoso e cuidadoso. Tá certo que não tem aquela paixão do início mais, mas paixão é assim mesmo, vai e volta. Ainda voltará com seu marido. E acabaria indo com esse cara. É assim mesmo.

(Um pouco mais sobre as diferenças entre amor, paixão e obsessão no link http://blog.opovo.com.br/psicologiadocotidiano/o-fim-noivado/ ).
- Mas como que esse cara pode estar a fim de mim? Ele está me seduzindo, puxa papo, trata muito bem...

- Ele não está a fim de você. Ele mal te conhece. É o desafio: Você é casada, tem filho, a vida certinha e ainda vai jogar tudo para alto para ficar com ele. Ele vai achar que pode tudo, que é gostoso demais. Qual é a fama dele mesmo?
- Pegador, garanhão, fica com todas e todo mundo quer ficar com ele...
- Pois é. Você é só mais uma, mais um troféu, mais uma conquista. Assim que ele conquistar vai perder a graça. E vai te deixar. Calma. Você está com pressa e com a impressão que sua vida se resolveria magicamente. Calma. As coisas estão indo bem. E esse aperto financeiro é momentâneo. Daqui a pouco você começa a ganhar melhor, daqui a pouco seu menino cresce e dá um pouco mais de sossego. Se você tiver calma tudo vai bem, se acertando. Você e Marcus têm um relacionamento legal, ele é um bom companheiro e um pai dedicado. Vocês tem tudo pra construir uma bela vida juntos. Calma. Pra que tanta pressa?
- É... Acho que você tem razão...
- Vem cá, vou lhe ensinar uma oração de minha autoria que se aplica bem a você e vai ajudar. Reze comigo: Senhor, muito obrigado por me ter me feito mulher. Na sua imensa graça e sabedoria Senhor, nada de melhor poderia ter escolhido. Pois, Senhor, se eu fosse um homem, com essa minha pressa, além de todos os problemas que eu já tenho, eu teria mais um: a ejaculação precoce. E, graças a Deus, sendo mulher, se eu tenho certa precocidade ou não, ninguém percebe mesmo... ninguém tem nada a ver com isso... Muito obrigada, Senhor...

Kely contou da oração para as amigas e agora, quando a turma percebe que ela está começando a ficar ansiosa, todas a cercam e, de mãos dadas, rezam a oração da mulher apressada para ela.
- E não é que vem funcionando?!


A cobiça, a pressa e o medo são irmãos. E se ficam juntos com frequência e sem cuidado, acabam desembocando na saudade.

- Parabéns, mãe!
- Obrigado...
- Tudo de bom! Muitas felicidades!!
- Obrigado...
- Credo, Mãe... Que voz é essa? É o seu aniversário!
- Ah, sei não... To meio triste, meio chateada. Acho que com a minha idade. É... To com a sensação de que o meu corpo já não acompanha meu espírito...
- “O espírito só tem uma idade: ou se é sempre jovem, ou não é espírito. Tudo o mais é arquivo e reminiscências”.
- Uai, gostei disso! De quem que é?
- Anibal Machado. Legal né? Não sei o que você acha, mãe, mas a impressão que tenho é que já deve ter pra mais de 25 anos que eu não lhe vejo tão interessada na vida, tão envolvida com suas coisas... Até mais firme, reivindicando mais o que quer e o que não quer, você está.
- É verdade...
- Lembro-me que, mais de 20 anos atrás, logo após sua separação, você dizia, ainda aos 40 e poucos anos, que não queria mais saber de homem. “Homem só serve pra querer mandar na gente, querer controlar a vida da gente. Agora vou cuidar do meu trabalho e da minha família”. Acho que você levou bem a sério essa determinação, não?
- Levei sim.
- Pois é. E agora esta até arrumando namorado. E trabalhando, fazendo suas coisas... Não sei, mãe, quando foi a última época de sua vida que lhe vi tão animada.
- É verdade, filho. Mas também é verdade que meu corpo já não é o mesmo.
- É sim, mãe. Nem o seu, nem o meu. Eu preferiria ainda ter cabelos. Fazer o que? Perdi os que tinha, ganhei uma “barriguinha” que não tinha, meu corpo também mudou. Mas enquanto eu conseguir me envolver com a vida, enquanto sentir que ela ainda me surpreende e me oferece perspectivas e aprendizagens novas, estou com o meu espírito jovem. Ou talvez esteja com o espírito velho. Ou talvez esteja com o meu espírito mesmo, com a idade que tenho. Mas cheio de vida. E eu acho que você já vem há um bom tempo bem envolvida com sua vida, interessada, cheia de graça. Tá certo, hoje, no seu aniversário, deu uma desanimadinha. Às vezes a gente se assusta um pouco. Mas você sabe bem que tem o espírito ainda bem serelepe...
- É. Tem razão.
- E aí, vai ter festa?
A voz da mãe já estava bem melhor.

Ao alcance da mão


- Estou bem.
- Que bom. E Por que?
- Não sei. Estou bem. Meio à toa, sem motivo. Outro dia escutei uma música e fiquei bem. Só por isso! Imagina!



O grupo todo estava bem deprimido. E era um grupo grande, umas doze pessoas. Eu e a outra terapeuta começamos o grupo perguntando o que que eles gostavam muito e que a muito tempo não faziam.
- Como assim?
- O que você gosta muito e a muito tempo não faz?
- Mas que tipo de coisa? Viajar pro exterior, por exemplo?
- Não! Uma coisa mais simples. Pequena mesmo. Que seja muito fácil de fazer. Mas que, mesmo assim, a muito tempo você não faz. 
- Eu gosto de sorvete de creme... e a muito tempo não como...
- Isso! Esse exemplo tá ótimo! Sorvete de creme vende em todo lugar. Nem precisa comprar o potão. Pode comprar uma bola só.
- Pois é. Gosto muito. E, sei lá... deve ter muitos anos que não como...
- Por que? 
- Taí uma boa pergunta. Não sei o porque.
- Pois eu gosto de conversar com Tia Babita e tem um tempão que não converso com ela.
- Ela mora longe?
- Mora no mesmo quarteirão que eu, tá velhinha... sempre penso em ir lá. Mas nunca vou.
- Eu gosto de andar de bicicleta.
- Eu de dobradinha.
- Tem gosto pra tudo...
E foi disparando. Cada um dizendo de uma pequena coisa, de um detalhe, de uma miudeza, todas simples, ao alcance da mão, mas que já há muitos anos não eram feitas. Mas lembrar também é uma forma de viver. E narrar é uma forma de lembrar. E cada um dizia, um outro escutava, achava graça, e lembrava de alguma coisa que também gostava, que achava bonita, e que podia até pegar se quisesse.
O grupo já tinha outro tom. Semblantes mais leves. Olhares trocados. Uns caçoando amorosamente doutros. 
Terminamos a reunião com uma poesia:

"Enfim, o que importa?
Saber em qual porta tentar?
Saber como continuar?
Cair, deitar, levantar?
Enfim, algo importa?
Topo, auge, ponta ou meta,
cima, baixo, melhor ou pior:
Algo me toca?
E então, porque tanto medo?
Se nada tem relevância,
se não se busca o aconchego?
Enfim, o que fica?
Se se pode morrer tão cedo,
se o tempo sempre marca e envelhece?

Na retina das lembranças se há amor
a saudade se distancia.
Se se morre cedo
durante alguns anos aqui esteve
(nunca agradeci os dez anos que tive, sempre xinguei os setenta que me foram tomados).
E o tempo também nós trás uma sabedoria infantil
de não perder mais tempo
de se fazer o que gosta e por inteiro
de amar intensamente.

Está ao lado
de tão perto
singelo
ao alcance da mão
                basta pegar."

Por fim, na saída da reunião cada qual levava um dever de casa. Fazer, antes do próximo encontro, aquilo que amava e não fazia a tanto tempo.



- Quer dizer então que uma música lhe deixou bem por um dia inteiro?
- É... Não que eu esteja toda boa. Não estou. Ainda ando meio triste, às vezes, lembrando do Carlos. Ainda não entendo muito bem porque não deu certo. É certo que desde o início, tenho que admitir, não prometia muito né? Mas, apesar disto, não chego a estar triste mesmo. Engraçado... acho que devia estar mais triste...
- Luíza, quantos anos você ficou sozinha, sem nem procurar por alguém?
- Dez.
- Pois é. Dez anos. De luta, muita luta. Você precisava trabalhar, sua família teria que devolver a casa onde moravam e você precisou resolver isso. Trabalhou, construiu sua casa nova, levou sua família pra lá. Um período no qual você mais sobreviveu do que viveu. Agora essa etapa acabou e você começa a olhar em torno de si. Vê o Carlos. Se aproxima e acaba envolvida. Mas tudo acaba muito rápido. E você ficou bem mal. Mas já tá melhorando. Porque está recomeçando a viver. Ver o mundo, as pessoas, conviver, procurar, amar. Ter coragem de pensar que a felicidade também pode ser para você. Que a vida está toda aberta no adiante, que muito ainda você há de viver, que em muitas você ainda pode se transformar. Sofrimentos também serão vividos, é claro, ninguém escapa disso. Mas você sente que agora pode recomeçar.
- Ah! Entrei pra aula de dança também! Sempre quis aprender a dançar!
- Mas você tá impossível! Que bom! Dançar é bom demais!
- Sou dura demais. Mas começo segunda.
Nossa, essa música fez milagre nessa semana! Que música é essa?



Um pedido de graça, um pedido de vida, um afã de esperança... música assim faz mesmo bem.

quarta-feira, 24 de junho de 2015

A fresta



A briga começou de novo. Quando isso acontece é quase impossível parar. É sempre assim. Por qualquer coisa - na maior parte das vezes por um entendimento equivocado de algo que foi dito - as ofensas e grosserias se iniciam e contê-las é tarefa quase impossível. Sabe-se o final:  a exaustão  vence Eduarda, que se entristece terrivelmente. E  João permanece irritadíssimo e seguro de que tem razão, ainda por dias ou  semanas, nas quais o casal mal trocará palavra. Isso se não voltar a brigar de novo.



Brincadeira, né? Achar que ter ou não ter razão presta pra alguma coisa. René Descartes resolveu esse imbróglio já a uns 500 atrás, mas parece que ninguém contou pra gente. Inicia seu “Discurso Sobre o Método”, um dos livros mais importantes da história da filosofia, com o parágrafo: 

"O bom senso (ou a razão, preferem alguns...) é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”

É um bom texto para se iniciar uma psicoterapia de casal. Casal que procura tratamento normalmente já chega brigando. Um acusa o outro com uma facilidade impressionante. Quando a coisa parece fora de controle, leio o parágrafo acima. E digo que, isso posto, todos os presentes à entrevista podem considerar que têm razão a priori. O marido, a esposa, o namorado, a namorada, e até o terapeuta presente na sessão, têm razão. E que isso não será discutido na terapia. Pois nunca se viu ninguém rezar para deus tirar seu excesso de razão:

- Oh, senhor, tira um pouco da minha razão, sempre sou eu que a tenho...

A partir desse ponto, sugiro que cada qual pense em três características próprias que gostaria de mudar para facilitar o relacionamento. E não nos problemas que o outro tem, porque ver no outro o que ele tem de errado é fácil. O complicado é cada qual ver a parte que lhe cabe. Ou, como diria Guimarães Rosa:

"Se o tolo admite, seja nem que um instante, que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em argúcia."

Brigar para ter razão é brigar pelo trono vazio das pretensões.  Sentar nesse trono não leva a lugar algum. O máximo que conseguimos é colher um deserto.



A esposa estava bem alterada. Quase gritando elencava muitos motivos para sua raiva, desespero e frustração. Alguns desses bem que se adequavam aos problemas que o casal precisaria resolver. Mas o tom alto com o qual falava e, principalmente, a dureza dos argumentos que usava, faziam com que o marido emudecesse. Sentia que nada do que dissesse resolveria alguma coisa. Pelo contrário, pioraria. Sentia raiva, muita. Sentia também dor e tristeza. Pensava em como se separar com meninos tão pequenos, se desesperava ao pensar no sofrimento deles. Mas, para piorar, sabia que eles já deviam estar sofrendo com esse clima malsão em casa. E foi assim, quando o marido já alcançara o auge da desesperança, que a esposa colocou certa frase no meio de tantos impropérios:

- Fulano, eu gosto muito de você, mas...

E continuo falando no mesmo tom e com o mesmo tipo de argumento que vinha usando antes. Mas algo já acontecera. O marido estancara naquela frase.

-Mas, ela ainda gosta de mim?

Agora ele conseguia escutar alguma coisa e entender, ao menos em parte, a solidão da esposa em seu desespero.



A ciência da convivência é sutil e cheia de reentrâncias.

Os objetos coexistem. Os animais, pelo menos em sua esmagadora maioria, coexistem. Seres humanos convivem. Mais do que isto: seres humanos precisam conviver para se tornarem humanos. E conviver é diferente de coexistir. Em primeiro lugar na convivência - quando ela de fato é convivência - as pessoas envolvidas interferem, verdadeiramente, uma na outra. Modificam-se mutuamente. Após o encontro não são mais as mesmas. Em segundo lugar, na convivência não é preciso que as pessoas envolvidas concordem uma com a outra. Conviver é enxergar tudo, as concordâncias e as discordâncias, as semelhanças e as diferenças, as aproximações e os distanciamentos. É não buscar a homogeneidade nem a unanimidade. E não ter pressa diante do encontro. 

O marido acima já estava trancando com sete chaves a porta da convivência quando escutou "Eu gosto muito de você, mas...”. E foi suficiente para que ele destrancasse a porta e a deixasse aberta. Foi como se a esposa tivesse colocado o pé na porta que estava se fechando, permitindo assim alguma abertura, alguma brisa passando por essa fresta.

Já foi dito pelo filósofo Julian Marias que não se pode ser verdadeiramente inteligente sem alguma dose de bondade. E esse autor parece associar bondade a saber esperar, não fechar o sentido das coisas tão rapidamente, afeiçoar-se à realidade deixando, por isso mesmo, que ela se manifeste por inteiro e de distintos pontos de vista antes de tentar classificá-la em algum sentindo único. E que, para que isso aconteça, não podemos ter pressa. Assim, sem alguma bondade dá até para se ser rápido, mas não verdadeiramente inteligente. 

Dessa forma teríamos de optar, a cada dia, se seremos mais abertos ou mais fechados, diante da vida. Quando mais fechados ficamos mais defensivos, vivemos como se a realidade fosse algo intrinsecamente ameaçador. Assumimos então uma posição beligerante, de conflito e desconfiança frente ao mundo. E ficamos mais miseráveis, pois desprovidos da riqueza que a diversidade que a vida pode nos oferecer. 

Podemos porém optar pela abertura diante da vida. Conseguiríamos assim mais flexibilidade. E ficaríamos mais ricos, receptivos que estaríamos à diversidade das pessoas e do mundo. Aprenderíamos mais sendo receptivos à realidade e à experiência das outras pessoas. Um bom indício que estaríamos com maior abertura é a nossa postura diante erro, do engano ou da percepção de que algo nos havia escapado. Quando abertos à vida sentimos gratidão diante da percepção de que estávamos equivocados. Sentimos alegria quando admitimos que havíamos nos enganado. Gratidão e alegria justo porque agora nos aproximamos da realidade, podemos lidar com ela com mais clareza, podemos vê-la melhor.


As brigas entre Eduarda e João chegaram ao nível do insuportável, Eduarda já pensava em como fazer para separar-se. João já deixara claro que não abriria mão do filho. E eram de cidades distantes, o que dificultaria bastante a separação. Eduarda desabafa com um amigo de João, em busca de conselho. Ao saber, João indigna-se, sente-se exposto. É bem verdade que quem mais explode, quem mais vê intenções hostis em qualquer afirmação, quem mais se mostra impermeável a qualquer abordagem, é ele. Ainda assim vai conversar com o amigo, na expectativa de provar alguma coisa, de mostrar como são justificadas suas atitudes. O amigo lhe surpreende:

- João, Eduarda te ama demais...

(A fresta se abre na porta, dá pra sentir a brisa entrando...). 

Algumas horas depois, ainda sem saber da conversa, Eduarda tenta uma nova aproximação. Liga e pergunta se pode buscá-lo no trabalho com o filho, nesta tarde de sol. Moram na praia, poderiam distrair um pouco o menino. Ele topa. O encontro é bom, ela toma sol, ele nada com o filho pequeno. Voltam pra casa em outro clima. Quando chegam Eduarda percebe, aterrorizada, que esquecera a porta de casa aberta. Isso já havia acontecido antes. João sempre explodia, achava um abusurdo esse descuido. Ele vê a porta escancarada. Olha pra ela. E diz:

- Estava com saudades, né?



Finalizando, lembrei-me de um pequeno poema de meu pai, Nello Nuno:


Atrás de uma porta aberta
há outra porta
aberta.
Atrás de uma porta fechada
há outra porta
e outra porta
e outra porta
fechadas.