A briga começou de
novo. Quando isso acontece é quase impossível parar. É sempre assim. Por
qualquer coisa - na maior parte das vezes por um entendimento equivocado de
algo que foi dito - as ofensas e grosserias se iniciam e contê-las é tarefa
quase impossível. Sabe-se o final: a exaustão vence Eduarda, que se
entristece terrivelmente. E João permanece irritadíssimo e seguro de que
tem razão, ainda por dias ou semanas, nas quais o casal mal trocará
palavra. Isso se não voltar a brigar de novo.
Brincadeira, né? Achar que ter ou não ter razão presta pra alguma coisa. René
Descartes resolveu esse imbróglio já a uns 500 atrás, mas parece que ninguém
contou pra gente. Inicia seu “Discurso Sobre o Método”, um dos livros mais
importantes da história da filosofia, com o parágrafo:
"O bom senso (ou a razão, preferem alguns...)
é a coisa do mundo melhor partilhada, pois cada qual pensa estar tão bem
provido dele, que mesmo os que são mais difíceis de contentar em qualquer outra
coisa não costumam desejar tê-lo mais do que o têm.”
É um bom texto para se iniciar uma psicoterapia de casal. Casal que procura
tratamento normalmente já chega brigando. Um acusa o outro com uma facilidade
impressionante. Quando a coisa parece fora de controle, leio o parágrafo acima.
E digo que, isso posto, todos os presentes à entrevista podem considerar que
têm razão a priori. O marido, a esposa, o namorado, a namorada, e até o
terapeuta presente na sessão, têm razão. E que isso não será discutido na terapia.
Pois nunca se viu ninguém rezar para deus tirar seu excesso de razão:
- Oh, senhor, tira um pouco da minha razão, sempre sou eu que a tenho...
A partir desse ponto,
sugiro que cada qual pense em três características próprias que gostaria de
mudar para facilitar o relacionamento. E não nos problemas que o outro tem,
porque ver no outro o que ele tem de errado é fácil. O complicado é cada qual
ver a parte que lhe cabe. Ou, como diria Guimarães Rosa:
"Se o tolo admite, seja nem que um instante,
que é nele mesmo que está o que não o deixa entender, já começou a melhorar em
argúcia."
Brigar para ter razão é
brigar pelo trono vazio das pretensões. Sentar nesse trono não leva
a lugar algum. O máximo que conseguimos é colher um deserto.
A esposa estava bem
alterada. Quase gritando elencava muitos motivos para sua raiva, desespero e frustração.
Alguns desses bem que se adequavam aos problemas que o casal precisaria
resolver. Mas o tom alto com o qual falava e, principalmente, a dureza dos
argumentos que usava, faziam com que o marido emudecesse. Sentia que nada do
que dissesse resolveria alguma coisa. Pelo contrário, pioraria. Sentia raiva,
muita. Sentia também dor e tristeza. Pensava em como se separar com meninos tão
pequenos, se desesperava ao pensar no sofrimento deles. Mas, para piorar, sabia
que eles já deviam estar sofrendo com esse clima malsão em casa. E foi assim,
quando o marido já alcançara o auge da desesperança, que a esposa colocou certa
frase no meio de tantos impropérios:
- Fulano, eu gosto muito de você, mas...
E continuo falando no mesmo tom e com o mesmo tipo de argumento que vinha
usando antes. Mas algo já acontecera. O marido estancara naquela frase.
-Mas, ela ainda gosta de mim?
Agora ele conseguia
escutar alguma coisa e entender, ao menos em parte, a solidão da esposa em seu
desespero.
A ciência da
convivência é sutil e cheia de reentrâncias.
Os objetos coexistem.
Os animais, pelo menos em sua esmagadora maioria, coexistem. Seres humanos
convivem. Mais do que isto: seres humanos precisam conviver para se tornarem
humanos. E conviver é diferente de coexistir. Em primeiro lugar na convivência
- quando ela de fato é convivência - as pessoas envolvidas interferem,
verdadeiramente, uma na outra. Modificam-se mutuamente. Após o encontro não são
mais as mesmas. Em segundo lugar, na convivência não é preciso que as pessoas
envolvidas concordem uma com a outra. Conviver é enxergar tudo, as
concordâncias e as discordâncias, as semelhanças e as diferenças, as
aproximações e os distanciamentos. É não buscar a homogeneidade nem a
unanimidade. E não ter pressa diante do encontro.
O marido acima já
estava trancando com sete chaves a porta da convivência quando escutou "Eu
gosto muito de você, mas...”. E foi suficiente para que ele destrancasse a
porta e a deixasse aberta. Foi como se a esposa tivesse colocado o pé na porta
que estava se fechando, permitindo assim alguma abertura, alguma brisa passando
por essa fresta.
Já foi dito pelo
filósofo Julian Marias que não se pode ser verdadeiramente inteligente sem
alguma dose de bondade. E esse autor parece associar bondade a saber esperar,
não fechar o sentido das coisas tão rapidamente, afeiçoar-se à realidade
deixando, por isso mesmo, que ela se manifeste por inteiro e de distintos
pontos de vista antes de tentar classificá-la em algum sentindo único. E que,
para que isso aconteça, não podemos ter pressa. Assim, sem alguma bondade dá
até para se ser rápido, mas não verdadeiramente inteligente.
Dessa forma teríamos de
optar, a cada dia, se seremos mais abertos ou mais fechados, diante da vida.
Quando mais fechados ficamos mais defensivos, vivemos como se a realidade fosse
algo intrinsecamente ameaçador. Assumimos então uma posição beligerante, de
conflito e desconfiança frente ao mundo. E ficamos mais miseráveis, pois
desprovidos da riqueza que a diversidade que a vida pode nos oferecer.
Podemos porém optar
pela abertura diante da vida. Conseguiríamos assim mais flexibilidade. E
ficaríamos mais ricos, receptivos que estaríamos à diversidade das pessoas e do
mundo. Aprenderíamos mais sendo receptivos à realidade e à experiência das
outras pessoas. Um bom indício que estaríamos com maior abertura é a nossa
postura diante erro, do engano ou da percepção de que algo nos havia escapado.
Quando abertos à vida sentimos gratidão diante da percepção de que estávamos
equivocados. Sentimos alegria quando admitimos que havíamos nos enganado.
Gratidão e alegria justo porque agora nos aproximamos da realidade, podemos
lidar com ela com mais clareza, podemos vê-la melhor.
As brigas entre Eduarda
e João chegaram ao nível do insuportável, Eduarda já pensava em como fazer para
separar-se. João já deixara claro que não abriria mão do filho. E eram de
cidades distantes, o que dificultaria bastante a separação. Eduarda desabafa
com um amigo de João, em busca de conselho. Ao saber, João indigna-se, sente-se
exposto. É bem verdade que quem mais explode, quem mais vê intenções hostis em
qualquer afirmação, quem mais se mostra impermeável a qualquer abordagem, é
ele. Ainda assim vai conversar com o amigo, na expectativa de provar alguma
coisa, de mostrar como são justificadas suas atitudes. O amigo lhe surpreende:
- João, Eduarda te ama
demais...
(A fresta se abre na
porta, dá pra sentir a brisa entrando...).
Algumas horas depois,
ainda sem saber da conversa, Eduarda tenta uma nova aproximação. Liga e
pergunta se pode buscá-lo no trabalho com o filho, nesta tarde de sol. Moram na
praia, poderiam distrair um pouco o menino. Ele topa. O encontro é bom, ela
toma sol, ele nada com o filho pequeno. Voltam pra casa em outro clima. Quando
chegam Eduarda percebe, aterrorizada, que esquecera a porta de casa aberta.
Isso já havia acontecido antes. João sempre explodia, achava um abusurdo esse
descuido. Ele vê a porta escancarada. Olha pra ela. E diz:
- Estava com saudades,
né?
Finalizando, lembrei-me
de um pequeno poema de meu pai, Nello Nuno:
Atrás de uma porta aberta
há outra porta
aberta.
Atrás de uma porta
fechada
há outra porta
e outra porta
e outra porta
fechadas.