domingo, 24 de fevereiro de 2013

44. E Riobaldo encontra seu Medo-Demo ao atravessar o deserto




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 44)

E Riobaldo acha sua missão, atravessar o liso do Sussuarão, o terrível deserto que antes, sob outra liderança, tentaram atravessar e tudo deu errado. Tiveram que voltar do meio pra trás, muitas mortes e desespero. Mas Riobaldo agora faz diferente, com menos preparo e bagagens, o grupo mais leve vai mais fácil.

E com grupos esparsos, distantes uns dos outros, mas alcançáveis pela vista ou pelos gritos, vão localizando algum alimento e água pelo caminho e seguindo.

E Diadorim diz a Riobaldo, com amor e ainda durante a travessia que, quando tudo acabar lhe contará um segredo. Mas Riobaldo, longe de si, não entende verdadeiramente o que Diadorim quer dizer.

- “Riobaldo, escuta: vamos na estreitez deste passo...” – ele disse; e de medo não tremia, que era de amor – hoje sei.
- “... Riobaldo, o cumprir de nossa vingança vem perto... Daí, quando tudo estiver repago e refeito, um segredo, uma coisa, vou contar a você...”
Ele disse, com o amor no fato das palavras. Eu ouvi. Ouvi, mas mentido. Eu estava longe de mim e dele. Do que Diadorim mais me disse, desentendi metade.

Riobaldo tenta se justifica considerando que precisava estar atento a coisas mais graves. E encontra um homem demo.

Ah, quase que eu estava cogitando nisso, quando o homem rosnou. Quem ele era, digo, em qualidade: um, troncudo, pardaz, genista, filho não sei de que terra. Assim, casta de gente?

Era um louco desajustado, de quem ele até sabia o nome: Treciziano.

Impaciente, ele grita e xinga alguma coisa, com intuito de ofensa.

Eu queria tolerar, primeiro: porque o demo não era homem para mandar em mim e me pôr em raiva. Aí, era só eu forçar calma, tenteador; depois, com palavras de energia boa, eu acautelava evitando a jerimbamba, e daí repreendia esse Treciziano, revoltoso, próprio por autoridade minha, mas sem pau nem pedra.

Mas Riobaldo vê o vislumbre da cólera no rosto do homem. Diz que ele era o Demo. E o louco tenta esfaquea-lo, mas atinge as tralhas que Riobaldo levava na cintura. Riobaldo, num átimo, o degola com seu punhal. Morto ele cai.

Ah-oh! Aoh, mas ninguém não vê o demônio morto... O defunto, que estava ali, era mesmo o do Treciziano! A morte dele deu certo. E era, segundo tinha de ser? E tinha de ser, por tanto que o demo não existe!

Riobaldo se sente mal.

Um frio profundíssimo me tremeu. Sofri os pavores disso – da mão da gente ser capaz de ato sem o pensamento ter tempo.

Os companheiros de bando o elogiam. Sua fama com a pontaria já era conhecida, mas agora ele matou na faca.

Na primeira vez que o bando tentou atravessar o deserto e teve que voltar, quase mortos, houve também uma morte semelhante. Encontraram o que parecia um macaco, mataram e comeram, desesperados de fome. E descobriram não ser um macaco, mas um homem perdido e louco, desfigurado.

Agora, quase a terminar a travessia encontram outro homem quase não homem, o homem demo. E também o matam.

O deserto desfigura o que de humano há em nós?

Esse segundo morto é denominado por Riobaldo de demo. Demo é anagrama de medo. É só trocar as letras de lugar. Riobaldo discute todo o tempo neste livro se o diabo existe ou não. E busca também todo o tempo se livrar de seu medo e ser valente como Diadorim. O medo é o demo de Riobaldo. E é muito sugestivo que essa morte ocorra justo no fim da travessia do deserto, justo na hora que Diadorim lhe diz que, terminada a vingança, vai lhe contar um segredo.

É Riobaldo matando seu Demo-Medo, é Riobaldo não escutando o que Diadorim lhe diz, é Riobaldo que não pode ver o que está diante de si.

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