segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

43. E Riobaldo encontra um homem com lepra




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 43)

Riobaldo inicia novo hábito, sair de madrugada, na escuridão, e voltar já com o café cheirando. Numa dessas voltas ele encontra em cima dos galhos de uma arvore um homem escondido.

E era um homem em chagas nojentas, leproso mesmo, um terminado.

Riobaldo sente horror frente ao doente. E resolve matá-lo.

Eu tinha de esmagalhar aquela coisa desumana.

- “Ô guaimoré!” – xinguei. E gritei pulhas. Acho que insultava era por de certo modo retardar meu dever?

E, quando mira da cabeça do homem, ouve alguém se aproximando a cavalo. É Diadorim. Riobaldo embolsa a arma. E sai a galope.

Mas eu virei rédea e roseteei, com brado, meu animal cumprindo: rompemos em galope que era um abismo...

Como olhei, Diadorim estava acolá, estacado parado no lugar, perto da árvore do homem. Por certo ele tinha enxergado a coisa viva, e estava desentendendo meu espaço, esses desatinos.

E Riobaldo fala de seu nojo.

A enquanto sobejasse de viver um lázaro assim, mesmo muito longe, neste mundo, tudo restava em doente e perigoso, conforme homem tem nojo é do humano.

Temos nojo daquilo que foge da ordem, do estabelecido, daquilo que sentimos que está fora do lugar. A saliva trocada durante um beijo carinhoso não enoja. Mas a mesma saliva vira cuspe se arremessada em nossa direção, se deixada cair em nossa boca. Riobaldo, depois de tornado chefe, tem nojo daquilo que nele lembra quem ele de fato é, daquilo que nele lembra o humano que carrega em si.

Humano remete a terra, solo, em sua etimologia. Somos filhos da terra, em detrimento dos filhos dos deuses, extraordinários inumanos. Humilde trás em si essa mesma relação, etimologicamente remete ao de baixa estatura, próximo ao solo.

Riobaldo sentia sua condição anterior como falha e limitada e fora do que deveria ser. Ele deveria ser um ser sem medo nem temor. Ele deveria não hesitar nem ter dúvidas. Mas, por mais que tenha mudado depois do pacto – que nem houve -, Riobaldo sente dentro de si a presença dele mesmo, daquele que sempre foi, de sua profunda humanidade. E tem nojo, ela é imperfeita, não está na ordem ideal que ele almeja. E, tal como o lazarento, deve ser purificada, eliminada.  

Chefe não era para arrecadar vantagens, mas para emendar o defeituoso.

Riobaldo volta a galope, arma em punho. Mas a deixa cair ou, não sabe bem, é como se alguém arrancasse a arma de sua mão.  

Cheguei, esbarrei. Meu cavalo, tão airoso, batia mão, rapava; ele deu um bufo de burro. Vi Diadorim. Mas o leprento tinha ganhado para se ir, graças que não assisti à arriação dele: decerto descendo às pressas, se escapando de gatas nas moitas de feijão-bravo. Desse, tive um cansaço enorme; pode que seja por não saber se matava ou não matava, caso ele ainda estivesse lá.

Mas, ao ver Diadorim próximo Riobaldo se abala.

Mas Diadorim, conforme diante de mim estava parado, reluzia no rosto, com uma beleza ainda maior, fora de todo comum. Os olhos-vislumbre meu – que cresciam sem beira, dum verde dos outros verdes, como o de nenhum pasto. E tudo meio se sombreava, mas só de boa doçura. Sobre o que juro ao senhor: Diadorim, nas asas do instante, na pessoa dele vi foi a imagem tão formosa da minha Nossa Senhora da Abadia! A santa... Reforço o dizer: que era belezas e amor, com inteiro respeito, e mais o realce de alguma coisa que o entender da gente por si não alcança.

Era mais uma coisa saindo da ordem. Riobaldo tenta colocar tudo no lugar certo, novamente.

Mas repeli aquilo. Visão arvoada. Como que eu estava separado dele por um fogueirão, por alta cerca de achas, por profundo valo, por larguez enorme dum rio em enchente. De que jeito eu podia amar um homem, meu de natureza igual, macho em suas roupas e suas armas, espalhado rústico em suas ações?! Me franzi. Ele tinha a culpa? Eu tinha a culpa? Eu era o chefe. O sertão não tem janelas nem portas. E a regra é assim: ou o senhor bendito governa o sertão, ou o sertão maldito vos governa... Aquilo eu repeli?

É, ele tentou repelir, mas não sabe mesmo se conseguiu. E segue Riobaldo lutando sua luta mais dura: a consigo mesmo.

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