segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

36. E quando Diadorim fala de amor, Riobaldo fala da dificuldade de lembrar




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 36)

Diadorim insiste que Riobaldo não abandone o cangaço.


– ele botou-se adiante. – “Riobaldo, põe tento no que estou pedindo: tu fica! E tem o que eu ainda não te disse, mas que, de uns tempos, é meu pressentir: que você pode – mas encobre; que, quando você mesmo quiser calcar firme as estribeiras, a guerra varia de figura...”

Riobaldo Resiste. Nunca considerou que tivesse serventia para a chefia.

“Arredei: – “Tu diz missa, Diadorim. Isso comigo não me toca...”

Da maneira, ele me tentava. Com baboseira, a prosável diguice, queria abrandar minha opinião. Então eu ia crer? Então eu não me conhecia? Um com o meu retraimento, de nascença, deserdado de qualquer lábia ou possança nos outros – eu era o contrário de um mandador. A pra, agora, achar de levantar em sanha todas as armas contra o Hermógenes e o Ricardão, aos instigares? Rebulir com o sertão, como dono? Mas o sertão era para, aos poucos e poucos, se ir obedecendo a ele; não era para à força se compor. Todos que malmontam no sertão só alcançam de reger em rédea por uns trechos; que sorrateiro o sertão vai virando tigre debaixo da sela. Eu sabia, eu via. Eu disse: nãozão! Me desinduzi. Talento meu era só o aviável de uma boa pontaria ótima, em arma qualquer. Ninguém nem mal me ouvia, achavam que eu era zureta ou impostor, ou vago em aluado. Mesmo eu não era capaz de falar a ponto. A conversa dos assuntos para mim mais importantes amolava o juizo dos outros, caceteava. Eu nunca tinha certeza de coisa nenhuma.”

E Diadorim insiste.

“Diadorim disse: – “Ei, retenteia! Coragem faz coragem...”

Demais eu disse: – “Sou Capitão-General?!...”

Antes tantas astúcias, em empalhar que eu não fosse embora, que eu ficasse preso naquele urjo de guerra, sem cabo nem ponta, sem costas nem frente, e que maçava. Recachei. A mão dele, doçura de dada, de leve na minha. Temi afracar. E em duro repostei, com outra ombrada:

– “Vou e vou. Só inda acompanho é até o Currais-do-Padre. Lá eu requeiro para mim um cavalo bom. E trovejo no mundo...”

E Diadorim muda de tom, mas Riobaldo acha que ele tá de zombaria, ao dizer que ele vai procurar por Otacília. Ou por outras. Mas a conversa é longa e no percorrer Riobaldo vai se envolvendo com as palavras de Diadorim e parece não mais ver ironias. No fim, parece nem achar que se trata de ciúmes de Diadorim. Riobaldo não está irritado, mas com dó.

– “Então, que quer mesmo ir, vai. Riobaldo, eu sei que você vai para onde: relembrado de rever a moça clara da cara larga, filha do dono daquela grande fazenda, nos gerais da Serra, na Santa Catarina... Com ela, tu casa. Cês dois assentam bem, como se combinam...” Nonde nada eu não disse. Se menos pensei em Otacília. Nem maldisse Diadorim, de que não se calava. A mais, pirraçou: – “Vai-te, pega essa prenda jóia, leva dá para ela, de presente de noivado...” Demorei no fazer um cigarro. Nós estávamos na beira do cerrado, cimo donde a ladeirinha do resfriado principia; a gente parava debaixo dum paratudo – pau como diz o goiano, que é a caraíba mesma – árvore que respondia à saudade de suas irmãs dela, crescidas em lontão, nas boas beiras do Urucuia. Acolá era a vereda. Com o tempo se refrescando, e o desabafo do ar, buriti revira altas palmas. A por perto, se ouvia a algazarra dos companheiros. De ver, eu tinha dó, minha pena sincera de Diadorim, nessas jornadas. De verdade, entardecia. Derradeira arara já revoava. – “... Ou quem sabe você resolve melhor mandar de dádiva para aquela mulherzinha especial, a da Rama-de-Ouro, filha da feiticeira... Arte que essa mais serve, Riobaldo, ela faz o gozo do mundo, dá açúcar e sal a todo passante...” Não era na Rama-de-Ouro – era na Aroeirinha. Mas, por que era que ele falava no nome de Nhorinhá, com tão cravável lembrança? Ao crer, que soubesse mais do que eu mesmo o que eu produzia no coração, o encoberto e o esquecido. Nhorinhá – florzinha amarela do chão, que diz: – Eu sou bonita!... E tudo neste mundo podia ser beleza, mas Diadorim escolhia era o ódio. Por isso era que eu gostava dele em paz? No não: gostava por destino, fosse do antigo do ser, donde vem a conta dos prazere e sofrimentos. Igual gostava de Nhorinhá – a sem-mesquinhice, para todos formosa, de saia cor-de-limão, prostitutriz. Só que, de que gostava de Nhorinhá, eu ainda não sabia, filha de Ana Duzuza. O senhor estude: o buriti é das margens, ele cai seus cocos na vereda – as águas levam – em beiras, o coquinho as águas mesmas replantam; dai o buritizal, de um lado e do outro se alinhando, acompanhando, que nem que por um cálculo. – “... Você se casa, Riobaldo, com a moça da Santa Catarina. Vocês vão casar, sei de mim, se sei; ela é bonita, reconheço, gentil moça paçã, peço a Deus que ela te tenha sempre muito amor... Estou vendo vocês dois juntos, tão juntos, prendido nos cabelos dela um botão de bogari. Ah, o que as mulheres tanto se vestem: camisa de cassa branca, com muitas rendas... A noiva, com o alvo véu de filó...” Diadorim mesmo repassava carinho naquela fala. Melar mel de flor. E me embebia – o que estava me ensinando a gostar da minha Otacília. Era? Agora falava devagarinho, de sonsom, feito se imaginasse sempre, a si mesmo uma estória recontasse. Altas borboletas num desvoejar. Como se eu nem estivesse ali ao pé. Ele falava de Otacília. Dela vivendo o razoável de cada dia, no estar. Otacília penteando compridos cabelos e perfumando com óleo de sete-amores, para que minhas mãos gostassem deles mais. E Otacília tomando conta da casa, de nossos filhos, que decerto íamos ter. Otacília no quarto, rezando ajoelhada diante de imagem, e já aprontada para a noite, em camisola fina de ló. Otacília indo por meu braço às festas da cidade, vaidosa de se feliz e de tudo, em seu vestido novo de molmol. Ao tanto, deusdadamente ele discorresse. De meu juízo eu perdi o que tinha sido o começo da nossa discussão, agora só ficava ouvinte, descambava numa sonhice. Com o coração que batia ligeiro como o de um passarinho pombo. Mas me lembro que no desamparo repentino de Diadorim sucedia uma estranhez – alguma causa que ele até de si guardava, e que eu não podia inteligir. Uma tristeza meiga, muito definitiva. No tempo, não apareci no meio daquilo. Assim foi que foi. Até que vieram uns companheiros, com João Concliz, Sidurino e João Vaqueiro, que ajuntaram lenhas e armaram um fogo bem debaixo do paratudo. Ao relançar das labaredas, e o refreixo das cores dando lá acima nos galhos e folhas, essas trocavam tantos brilhos e rebrilhos, de dourado, vermelhos e alaranjado às brasas, essas esplendências, com mais realce que todas as pedras de Araçuaí, do Jequitinhonha e da Diamantina. Era dia-de-anos daquela árvore? Ao quando bem anoiteceu, foi assim. A gente só sabe bem aquilo que não entende.

E Riobaldo fala do bloqueio das memórias. Diadorim era o proibido, o interditado, aquilo no qual ele não poderia nem pensar nem lembrar.

O senhor veja: eu, de Diadorim, hoje em dia, eu queria recordar muito mais coisas, que valessem, do esquisito e do trivial; mas não posso. Coisas que se deitaram, esqueci fora do rendimento. O que renovar e ter eu não consigo, modo nenhum. Acho que é porque ele estava sempre tão perto demais de mim, e eu gostava demais dele.

Riobaldo não podia lembrar-se de Diadorim, seja por viver no mundo da jagunçagem, seja por saber que tem responsabilidade pessoal em ter perdido Diadorim.

Quando presos em preconceitos e estereótipos não podemos ver além de todos os pré-juízos que nos cercam.

Mas Riobaldo também não pode lembrar-se de Diadorim por saber que, como ele mesmo disse, esteve perto do que era dele, e não sabia, não sabia, não sabia. E que, justamente ao negar si mesmo, em seus medos e inquietações, negou juntamente sua sensibilidade e percepção. E acabou fechado, duro, valente, provocando a morte de Diadorim.

E resta então a saudade e seus vazios.

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