(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua
vida”, parte 49)
Diadorim está morto. E
Riobaldo vai embora do Paredão.
Resoluto saí de lá, em galope, doidável. Mas,
antes, reparti o dinheiro, que tinha, retirei o cinturão-cartucheiras – aí
ultimei o jagunço Riobaldo! Disse adeus para todos, sempremente.
O chefe desaparece e o
homem volta. Sai Urutu-Branco, volta Riobaldo.
Desapoderei.
E Riobaldo resolve voltar
às Veredas-Mortas, onde
supostamente fez o pacto com o diabo. Pensava em voltar atrás, em desfazer
todos os realizados?
De volta, de volta. Como se, tudo revendo,
refazendo, eu pudesse receber outra vez o que não tinha tido, repor Diadorim em
vida? O que eu pensei, o pobre de mim.
Mas está muito confuso, mal
de saúde, se esquecendo das coisas, com o espírito assombrado. Tonteava de ter
de se segurar para não cair. Chegava a se esquecer do próprio nome. Alguns
amigos cuidavam dele.
Um sitiante lhe diz que o
lugar onde eles iam não se chamava Veredas-Mortas, mas Veredas-Altas... Parece
que Riobaldo havia se enganado até do lugar ideal para se fazer o pacto.
Mais adiante na viagem
Riobaldo fica febril. A febre se agrava e ele fica fora de si, desacordado,
numa casinha, sendo cuidado. Quando volta a dar notícias de si já está em outra
casa, bem maior. E ele começa a melhorar.
E já parava meio longe aquele pesar, que me quebrantava.
Lembro de todos, do dia, da hora. A primeira coisa que eu queria ver, e que me
deu prazer, foi a marca dos tempos, numa folhinha de parede. Sosseguei de meu
ser. Era feito eu me esperasse debaixo de uma árvore tão fresca. Só que uma coisa,
a alguma coisa, faltava em mim. Eu estava um saco cheio de pedras.
E Riobaldo tem um
pressentimento de alegria.
Até que, um dia, eu estava repousando, no claro
estar, em rede de algodão rendada. Alegria me espertou, um pressentimento.
Quando eu olhei, vinha vindo uma moça. Otacília. Meu coração rebateu, estava
dizendo que o velho era sempre novo. Afirmo ao senhor, minha Otacília ainda se
orçava mais linda, me saudou com o salvável carinho, adianto de amor. Ela tinha
vindo com a mãe. E a mãe dela, os parentes, todos se praziam, me davam
Otacília, como minha pretendida. Mas eu disse tudo. Declarei muito verdadeiro e
grande o amor que eu tinha a ela; mas que, por destino anterior, outro amor,
necessário também, fazia pouco eu tinha perdido. O que confessei. E eu, para
nojo e emenda, carecia de uns tempos.
Otacília me entendeu, aprovou o que eu quisesse.
Uns dias ela ainda passou lá, me pagando companhia, formosamente. Ela tinha
certeza de que eu ia retornar à Santa Catarina, renovar; e trajar terno de sarjão,
flor no peito, sendo o da festa de casamento. Eu fui, com o coração feliz, por
Otacília eu estava apaixonado. Conforme me casei, não podia ter feito coisa melhor,
como até hoje ela é minha muito companheira – o senhor conhece, o senhor sabe.
Mas isto foi tantos meses depois, quando deu o verde nos campos. Eu já estava
de todo bom, firme para as arremessadas(...)
Riobaldo recebe a noticia
que seu padrinho tinha deixado duas fazendas de herança, para ele. Mas adia de
tomar posses. Primeiro tinha outras coisas a cumprir. Viaja com dois
companheiros do bando, com uma tira de pano preto no braço.
Riobaldo tem duas grandes
travessias a fazer durante sua estória. A primeira seria conseguir ser
corajoso. E ele tentará ser corajoso com o exemplo de Diadorim. Mas Riobaldo
erra ao supor que para ser corajoso precisa se livrar do medo-pressa. E acaba
temerosamente valente. A segunda grande travessia é compreender o amor e
verdadeiramente amar. E aqui entra Otacília, que será seu par de aprendizagem.
É por isso que, apesar de por três vezes dizer que a estória se acabou com a
morte de Diadorim, a estória ainda continua por algumas páginas. É então
Riobaldo se recuperando, buscando compreender e se aproximando do amor.
Vale ressaltar como em
Riobaldo o retorno da alegria e do amor, com o reaparecimento de Otacília, pôde
ocorre juntamente com o luto ainda se fazendo. Ele não sente culpa por amar
mesmo ainda sofrendo pela perda. Não sente dor por não sentir somente dor.
Parece ter ao menos iniciado a elaboração de algo que poucas pessoas
compreendem: suas culpas.
Riobaldo tenta então
recuperar os rastros de memória de Diadorim. Vai ao lugar onde ele nasceu. Com
todos conversa. Não acha nenhum velho que a tivesse conhecido menina. Mas acha
um registro de batismo.
Maria Deodorina da Fé Bettancourt Marins – que nasceu para
o dever de guerrear e nunca ter medo, e mais para muito amar, sem gozo de
amor...
Reze o senhor por essa minha alma. O senhor acha
que a vida é tristonha? Mas ninguém não pode me impedir de rezar; pode algum? O
existir da alma é a reza... Quando estou rezando, estou fora de sujidade, à
parte de toda loucura. Ou o acordar da alma é que é?
E Riobaldo vai tocando, com
cuidado, sua tristeza e sua alegria.
E, o pobre de mim, minha tristeza me atrasava,
consumido. Eu não tinha competência de querer viver, tão acabadiço, até o cumprimento
de respirar me sacava. E, Diadorim, às vezes conheci que a saudade dele não me
desse repouso; nem o nele imaginar. Porque eu, em tanto viver de tempo, tinha
negado em mim aquele amor, e a amizade desde agora estava amarga falseada; e o
amor, e a pessoa dela, mesma, ela tinha me negado. Para que eu ia conseguir
viver? Mas o amor de minha Otacília também se aumentava, aos berços primeiro,
esboço de devagar. Era.
Passado esse tempo, conforme foi, pouca
tardança.
O processo do esquecimento
foi belamente descrito por Alain de Botton.
“Então, inevitavelmente, eu comecei a esquecer.
Poucos meses após romper com ela, descobri-me na área de Londres em que ela
havia vivido e reparei que pensar nela não me causava mais tanta agonia, eu até
notei que meu primeiro pensamento não era para ela (embora aquelas fosse
exatamente suas vizinhanças), mas para o encontro que eu havia marcado com
alguém num restaurante nas proximidades. Percebi que a lembrança de Chloe havia
se neutralizado e se tornado parte da história. Mas a culpa acompanhava esse
esquecimento. Não era mais a ausência dela que me feria, mas a minha crescente
indiferença por ela.”
“Aconteceu uma reconquista gradual do eu, novos
hábitos foram criados e uma identidade desvinculada de Chloe foi erigida. Minha
identidade havia sido por tanto tempo forjada em torno de “nós” que voltar ao
“eu” envolveu uma reinvenção quase completa de mim mesmo. Foi preciso um longo
tempo para que as centenas de associações que Chloe e eu havíamos acumulado
juntos se desvanecessem. Tive que viver com meu sofá por meses antes que a
imagem dela deitada nele de camisola fosse substituída por outra imagem, de um
amigo lendo um livro nele, ou meu casaco jogado sobre ele... tive que revisitar
quase todos os locais físicos, rescrever todos os tópicos de conversação, tocar
de novo cada música e repassar cada atividade que ela e eu havíamos
compartilhado para reconquistá-las para o presente, para desfigurar suas
associações. Mas aos poucos eu me esqueci”.
E Riobaldo reencontra Zé
Bebelo, que fica muito feliz em vê-lo. Passam três dias conversando. E Zé
Bebelo indica que Riobaldo vá conversar com Quelemém.
– “Riobaldo, eu sei a amizade de que agora tu
precisa. Vai lá. Mas, me promete: não adia, não desdenha! Daqui, e reto, tu sai
e vai lá. Diz que é de minha parte... Ele é diverso de todo o mundo.”
E ele vai.
Compadre meu Quelemém me hospedou, deixou meu contar
minha história inteira. Como vi que ele me olhava com aquela enorme paciência –
calma de que minha dor passasse; e que podia esperar muito longo tempo. O que
vendo, tive vergonha, assaz.
Mas, por fim, eu tomei coragem, e tudo
perguntei:
– “O senhor acha que a minha alma eu vendi,
pactário?!”
Então ele sorriu, o pronto sincero, e me vale me
respondeu:
– “Tem cisma não. Pensa para diante. Comprar ou
vender, às vezes, são as ações que são as quase iguais...”
E aqui Riobaldo cerra sua
estória.
E me cerro, aqui, mire e veja. Isto não é o de
um relatar passagens de sua vida, em toda admiração. Conto o que fui e vi, no
levantar do dia. Auroras.
Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou
aqui, quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim?
Cumpro. O Rio de São Francisco – que de tão grande se comparece – parece é um
pau grosso, em pé, enorme... Amável o senhor me ouviu, minha idéia confirmou: que
o Diabo não existe. Pois não? O senhor é um homem soberano, circunspecto.
Amigos somos. Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é homem
humano. Travessia.
E aqui a estória acabada.
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