(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua
vida”, parte 47).
E na noite Riobaldo se deixa pensar, descuidado
de si.
Ao que,
alforriado me achei. Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha
recordação do cheiro dele.Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das
feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da
idéia. Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto carinho: minha
repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e
remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure!
Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para
destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e
calar qualquer palavra. Ela fosse uma mulher, e àalta e desprezadora que sendo,
eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de
meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela
conversação – por detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em
luta, um o outro. E tudo impossível. Três tantos impossível, que eu descuidei,
e falei. –... Meu
bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... –; o disse,
vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, modo se diz um
verso. Diadorim se pôs pra trás, só assustado. – O senhor não fala
sério! – ele rompeu e disse, se desprazendo. “O senhor” –
que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com meu
patetear. – Não
te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... – eu disfarcei, afetando que
tinha sido brinca de zombarias, recompondo o significado. Aí, e levantei,
convidei para se andar. Eu queria airar um tanto. Diadorim me acompanhou.
A guerra estava ali, ao lado. E Riobaldo
deixa-se escorregar no seu amor por Diadorim. Mas recua logo, frente a reação
que vê. E convence a si mesmo que não era aquilo que havia dito, que o que
sentia era amizade. Mas mesmo assim ele hesita. E diz sentir mais mesmo que
amizade
Andamos.
Mas, agora, eu já tinha demudado o meu sentir, que era por Diadorim uma amizade
somente, rei-real, exata de forte, mesmo mais do que amizade. Essa simpatia que
em mim, me aumentava. De tanto, que eu podia honestamente dizer a ele o meu bemquerer,
constância da minha estimação.
Ele podia dizer do seu bem querer, mas não
disse.
Não
disse. Por que que não disse, foi porque o perigo da ocasião me invocou: achei
que podia ser agouro, em véspera de guerra, a conversa afeiçoada assim.
Diadorim – em que era que ele devia de estar pensando?; é o que eu não soube,
não sei, minha morte esta pergunta
faço... Como certo é que só do semmais de coisas falamos, sem nenhuma
expedição.
Riobaldo ainda sentirá saudade do que não disse
a Diadorim. Porque temos vergonha de manifestar o amor? Porque quando encontramos
um amigo, a muito tempo não visto, ao invés de perguntar “Ei, você é o fulano?
Eu sou o beltrano, lembra?” costumamos desviar o olhar e fingimos não ver?
Drummond fazia diferente.
“Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.”
Curiosamente, a maior parte das vezes não temos
vergonha de manifestar nossa raiva e ressentimento, como temos de dizer a uma
pessoa que gostamos dela.
E, tal como Riobaldo, acabamos saudosos.
Riobaldo vai dormir. E dorme muito, pois pouco
havia dormido na noite anterior, procurando por Otacília.
Ao acordar seus homens vigias não lhe falam
nenhuma novidade. Tudo parece estar tranquilo. Alguns chegam a pensar que os
inimigos não virão. Mas Riobaldo pede a todos que fiquem atentos e vai, com
suas armas a mão, tomar banho. E ouve tiros.
A guerra começou.
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