(Da série
"Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 1).
Imagine a
cena: um homem escuta tiros e percebe que vêem de uma casa de fazenda. Chegando
lá um senhor explica que estava só praticando tiro, mirando numa árvore. Esse
senhor é Riobaldo, personagem principal e narrador do livro "Grande
Sertão: Veredas". E aqui a estória começa. Por centenas de páginas
Riobaldo contará sua vida para esse interlocutor, cujas respostas nunca estarão
escritas no livro. E falará do medo, da pressa, da coragem, da valentia, do
amor, do temor, do diabo e do homem.
E João
Guimarães Rosa começa seu único romance pela discussão sobre a existência ou
não do diabo.
“De
primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi
puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não
fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos,
estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo
existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê:
existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo
por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra
cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...
Explico ao
senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado,
ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.
Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê
que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam –
é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor,
assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta
opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente,
na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo
nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este
vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas
criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é
ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra,
no vento... Estrumes.... O diabo na rua, no meio do redemunho...”
E termina o
livro da mesma forma, concluindo que “O diabo não há! É o que eu digo, se for...
Existe é o homem humano.”
E eu só fui
perceber essa simetria na quarta leitura do livro. Daí duas conclusões: a
primeira é que a discussão sempre existente se Riobaldo fez ou não um pacto com
o diabo parece indevida, uma vez que o autor afirma logo de cara e depois
termina seu livro negando a existência do mesmo. A segunda é que nos homens
temos o bem e o mal dentro de nós, e aceitar isso já é de grande ajuda para se
ter uma vida melhor. Ou ao menos para minimizar o mal que nos faz o sentimento
mais imprestável que existe: a culpa.
Ao vermos
uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi
repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos
assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo
engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que
foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a
compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a
criança em questão não saberá verdadeiramente em qual aspecto suas atitudes
estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original,
muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores.
A culpa não
se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do
nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos
afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido
expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se
afasta da compreensão de seu erro.
Mesmo
porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro,
peca-se contra Deus.
Se
compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e
escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos
desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou.
A culpa só
presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer
mais facilmente.
E Riobaldo
inicia sua estória.
(Da série
"Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 1).
Imagine a
cena: um homem escuta tiros e percebe que vêem de uma casa de fazenda. Chegando
lá um senhor explica que estava só praticando tiro, mirando numa árvore. Esse
senhor é Riobaldo, personagem principal e narrador do livro "Grande
Sertão: Veredas". E aqui a estória começa. Por centenas de páginas
Riobaldo contará sua vida para esse interlocutor, cujas respostas nunca estarão
escritas no livro. E falará do medo, da pressa, da coragem, da valentia, do
amor, do temor, do diabo e do homem.
E João
Guimarães Rosa começa seu único romance pela discussão sobre a existência ou
não do diabo.
“De
primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi
puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não
fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos,
estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo
existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê:
existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo
por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra
cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...
Explico ao
senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado,
ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum.
Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê
que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam –
é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor,
assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta
opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente,
na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo
nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este
vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas
criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é
ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra,
no vento... Estrumes.... O diabo na rua, no meio do redemunho...”
E termina o
livro da mesma forma, concluindo que “O diabo não há! É o que eu digo, se for...
Existe é o homem humano.”
E eu só fui
perceber essa simetria na quarta leitura do livro. Daí duas conclusões: a
primeira é que a discussão sempre existente se Riobaldo fez ou não um pacto com
o diabo parece indevida, uma vez que o autor afirma logo de cara e depois
termina seu livro negando a existência do mesmo. A segunda é que nos homens
temos o bem e o mal dentro de nós, e aceitar isso já é de grande ajuda para se
ter uma vida melhor. Ou ao menos para minimizar o mal que nos faz o sentimento
mais imprestável que existe: a culpa.
Ao vermos
uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi
repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos
assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo
engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que
foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a
compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a
criança em questão não saberá verdadeiramente em qual aspecto suas atitudes
estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original,
muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores.
A culpa não
se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do
nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos
afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido
expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se
afasta da compreensão de seu erro.
Mesmo
porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro,
peca-se contra Deus.
Se
compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e
escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos
desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou.
A culpa só
presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer
mais facilmente.
E Riobaldo
inicia sua estória.
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