sexta-feira, 27 de julho de 2012

1. E o livro começa, com Riobaldo perguntando sobre sobre a existência do diabo



(Da série "Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida", parte 1).


Imagine a cena: um homem escuta tiros e percebe que vêem de uma casa de fazenda. Chegando lá um senhor explica que estava só praticando tiro, mirando numa árvore. Esse senhor é Riobaldo, personagem principal e narrador do livro "Grande Sertão: Veredas". E aqui a estória começa. Por centenas de páginas Riobaldo contará sua vida para esse interlocutor, cujas respostas nunca estarão escritas no livro. E falará do medo, da pressa, da coragem, da valentia, do amor, do temor, do diabo e do homem.


E João Guimarães Rosa começa seu único romance pela discussão sobre a existência ou não do diabo.


“De primeiro, eu fazia e mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de dificel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora, feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me inventei neste gosto, de especular idéia. O diabo existe e não existe? Dou o dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é negócio muito perigoso...


Explico ao senhor: o diabo vige dentro do homem, os crespos do homem – ou é o homem arruinado, ou o homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum! – é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco – é alta mercê que me faz: e pedir posso, encarecido. Este caso – por estúrdio que me vejam – é de minha certa importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela-já o campo! Ah, a gente, na velhice, carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças – eu digo. Pois não é ditado: “menino – trem do diabo”? E nos usos, nas plantas, nas águas, na terra, no vento... Estrumes.... O diabo na rua, no meio do redemunho...”


E termina o livro da mesma forma, concluindo que “O diabo não há! É o que eu digo, se for... Existe é o homem humano.”


E eu só fui perceber essa simetria na quarta leitura do livro. Daí duas conclusões: a primeira é que a discussão sempre existente se Riobaldo fez ou não um pacto com o diabo parece indevida, uma vez que o autor afirma logo de cara e depois termina seu livro negando a existência do mesmo. A segunda é que nos homens temos o bem e o mal dentro de nós, e aceitar isso já é de grande ajuda para se ter uma vida melhor. Ou ao menos para minimizar o mal que nos faz o sentimento mais imprestável que existe: a culpa.


Ao vermos uma criança chorando, sentindo-se culpada por algo que fez e pelo qual foi repreendida, supomos estar frente a um verdadeiro arrependimento e imaginamos assim que o comportamento criticado dificilmente acontecerá novamente. Ledo engano. Pode até acontecer um retraimento na criança daquele tipo de ação que foi repreendido. Mas, se o foco da reprimenda foi a produção de culpa e não a compreensão do erro cometido – este é o padrão mais comum em nossa cultura – a criança em questão não saberá verdadeiramente em qual aspecto suas atitudes estavam inadequadas, e, quando atenuado o temor diante da reprimenda original, muito provavelmente voltará às suas atitudes anteriores.


A culpa não se presta para a promoção da mudança. Mudamos se compreendemos o fundamento do nosso erro. A culpa não nos aproxima desta compreensão, pelo contrário, nos afasta dela. A pessoa que se sente culpada, ao sofrer diante do acontecido expia com seu suposto arrependimento seus incômodos sentimentos. E assim se afasta da compreensão de seu erro.


Mesmo porque diante da culpa não se erra, peca-se. E não se erra diante do outro, peca-se contra Deus.


Se compreendêssemos os fundamentos de nossos erros poderíamos voltar atrás e escolher outro caminho. Se não estamos mais na direção equivocada estamos desobrigados por que mudamos, não respondemos mais pelo que caducou.


A culpa só presta para incutir temor e assim possibilitar que a manipulação possa ocorrer mais facilmente.


E Riobaldo inicia sua estória.

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