Amos Oz, Conferência
de 23 de Janeiro de 2002
"Como
curar um fanático? Perseguir um punhado de fanáticos através das montanhas do Afeganistão é uma
coisa. Lutar contra o fanatismo, outra muito diferente. Receio não saber muito bem
como perseguir fanáticos pelas
montanhas, mas talvez possa
apresentar uma ou duas reflexões acerca da natureza do fanatismo e sobre as formas, se não de curá-lo, pelo menos de controlá-lo. A chave
do ataque de 11 de Setembro
contra os Estados Unidos não deve
ser apenas procurada no confronto existente
entre pobres e ricos.
Esse
confronto constitui um dos mais terríveis problemas do mundo, mas estaríamos errados se concluíssemos que
o 11 de Setembro se limitou a ser um
ataque de pobres contra ricos. Não se trata apenas de «ter e não
ter». Se fosse assim tão simples,
deveríamos esperar que o ataque
viesse de África, onde estão os países mais pobres, e que talvez
fosse lançado contra a Arábia Saudita
e os emirados do Golfo, que são os estados produtores de petróleo e
os países mais ricos. Não. É uma
batalha entre fanáticos que crêem que o fim, qualquer fim, justifica os meios, e os restantes
de nós, para quem a vida é um
fim, não um meio.
Trata-se
de uma luta entre os que pensam que a justiça, o que quer que se
entenda por tal palavra, é mais importante do que a vida, e aqueles que, como nós,pensam que a vida tem prioridade sobre muitos outros valores, convicções ou credos. A actual
crise mundial, no Médio Oriente,
em Israel e na Palestina, não é uma consequência dos valores do Islão.
Não se deve à mentalidade dos Árabes, como proclamam alguns racistas. De forma
alguma. Deve-se à velha luta entre
fanatismo e pragmatismo. Entre fanatismo e pluralismo. Entre fanatismo e
tolerância. O 11 de Setembro não é uma consequência da bondade ou da
maldade dos Estados Unidos, nem tem a
ver com o capitalismo ser perigoso ou esplendoroso. Nem tão-pouco com ser oportuno ou com a necessidade
de travar ou não a globalização. Tem a
ver com a típica reivindicação fanática: se penso que alguma coisa
é má, aniquilo-a juntamente com aquilo que a rodeia.
O fanatismo é mais velho do que
o Islão, do que o Cristianismo, do que o Judaísmo. Mais velho do que qualquer Estado, governo ou sistema político.
Infelizmente, o fanatismo é um componente sempre presente na natureza humana, um gene do Mal, para
apelidá-lo de algum modo. Aqueles que fazem
explodir clínicas onde se pratica o aborto, nos Estados Unidos, os que incendeiam sinagogas e mesquitas na Alemanha,
só se diferenciam de Bin Laden na magnitude, mas não na natureza
dos seus crimes. Naturalmente, o 11 de
Setembro produziu tristeza, raiva, incredulidade, surpresa,
abatimento, desorientação e, é certo, algumas respostas racistas - antiárabes e antimuçulmanas - por todo o
lado. Quem teria ousado pensar
que ao século XX se seguiria de
imediato o século XI ?
A
minha própria infância em Jerusalém tornou--me especialista em fanatismo comparado. A Jerusalém da minha infância, lá pelos anos 40,
estava repleta de autoproclamados
profetas, redentores e messias.
Ainda hoje, todo o jerosolimitano possui a sua fórmula pessoal para a salvação instantânea. Todos dizem que chegaram a Jerusalém -
e cito uma frase famosa de uma velha
canção - para a construírem e
serem construídos por ela. Na realidade,
alguns (judeus, cristãos, muçulmanos, socialistas, anarquistas e reformadores do mundo) acudiram
a Jerusalém, não tanto para a
construírem ou serem construídos
por ela, mas para serem crucificados ou para crucificarem outros, ou para ambas as coisas ao mesmo
tempo.
Há uma desordem
mental muito arreigada, uma reconhecida doença mental chamada «síndrome de Jerusalém»: uma pessoa chega, inala
o ar puro e maravilhoso da montanha e, de repente, inflama-se e
pega fogo a uma mesquita, a uma igreja
ou a uma sinagoga. Ou então, tira a roupa, sobe a um rochedo e começa a fazer profecias. Já ninguém escuta. Mesmo hoje em dia, mesmo
na Jerusalém actual, em qualquer
fila do autocarro, é provável que
surja uma exaltada conferência na via
pública entre pessoas que não se conhecem de nenhum lado, mas que discutem política,
moral, estratégia, História, identidade, religião e as verdadeiras
intenções de Deus. Os participantes nessas conferências, enquanto discutem política e teologia, o Bem e o Mal, tentam, no entanto, abrir
caminho à cotovelada até aos
primeiros lugares da fila. Toda a gente grita, ninguém ouve.
Excepto eu. Eu escuto, às vezes, e assim ganho a vida.
Confesso que em miúdo, em
Jerusalém, também eu era um pequeno fanático limitado por uma lavagem cerebral. Com presunção de
superioridade moral, chauvinista, surdo
e cego a qualquer ponto de
vista que fosse diferente do poderoso discurso judeu sionista da época. Eu era um rapaz que atirava pedras, um rapaz da Intifada judaica. Na
verdade, as primeiras palavras que aprendi a dizer em inglês, à
parte o yes e o no, foram British, go
home!, que era o que nós, rapazes judeus, costumávamos gritar enquanto apedrejávamos as
patrulhas britânicas de Jerusalém.
Falando de ironias da História, no meu romance de 1995, Uma Pantera na Cave1, descrevo como um rapaz chamado ou com a alcunha
Profí perde o seu fanatismo, o seu chauvinismo,
e muda quase por completo no espaço de duas semanas ao tornar-se
mais relativista. Em segredo, ficara amigo de um inimigo: concretamente, de um
sargento da polícia britânica muito afável e pouco competente. Os dois
encontravam-se às escondidas e ensinavam
inglês e hebraico um ao outro. E o
rapaz descobre que as mulheres não têm cornos nem cauda, uma revelação quase
tão chocante para ele como a descoberta de que nem os Britânicos nem os
Árabes têm cornos ou cauda.
De algum
modo, o rapaz desenvolve um sentido de ambivalência, uma capacidade para
abandonar as suas crenças a preto
e branco. Mas, naturalmente, paga um preço por isso: no final deste
pequeno romance já não é uma criança, mas uma pequena pessoa mais velha, um pequeno adulto. Grande parte
da alegria e do fascínio, do entusiasmo e da singeleza da vida desapareceram. E, além disso, ganha outra alcunha: os antigos amigos começam a
chamá-lo de traidor. Vou citar a primeira página e meia de Uma Pantera na Cave, porque
julgo que é a melhor forma de
exprimir aquilo que eu penso em matéria
de fanatismo. É o primeiro capítulo de Uma Pantera na Cave:
Fui
apelidado de traidor muitas vezes durante a minha vída. Da primeira,
tinha eu doze anos e três meses e vivia num bairro de um dos extremos de Jerusalém.
Foi nas
férias grandes, a menos de um ano de os Ingleses deixarem o país e
de o Estado de Israel nascer no meio da guerra.
Certa manhã apareceu uma inscrição a
grossos traços negros na parede da nossa
casa, por baixo da janela da cozinha:
PROFI BOGUED SHAFEL - «Profi é um reles
traidor». A palavra shafel, reles, levantou uma questão
que ainda hoje, ao escrever esta história, me intriga: poderá um traidor deixar
de ser reles? Se a resposta for não,
por que motivo é que o Tchita Reznik (conheci-lhe logo a letra) se teria dado
ao trabalho de acrescentar a palavra
«reles»? Se for sim, em que circunstâncias é que a traição não é um
acto reles?
Foi a partir dessa
altura que me colaram a alcunha de «Profi», abreviatura de «Professor», resultante
da minha obsessão em examinar as palavras. Ainda hoje gosto imenso de
palavras, de as reunir, ordenar, misturar, inverter, combinar — um pouco
ao jeito dos avarentos, obcecados por moedas e notas, ou dos jogadores
por cartas de jogar.
O meu pai tinha saído às seis e meia da manhã para
ir buscar o jornal e deparara-se com a inscrição logo por baixo da janela da
cozinha. Ao pequeno-almoço, enquanto barrava uma fatia de pão integral com compota
de framboesa,
cravou a faca no boião, quase até ao cabo, e exclamou com o
seu tom pausado:
- Mas que surpresa! Que patifaria cometeu Vossa
Excelência para merecermos tamanha honra?!
- Não o aflijas logo pela manhã! - atalhou a minha
mãe. - Já lhe basta aturar os outros rapazes.
Nessa altura o meu
pai vestia roupa de caqui, como a maioria dos homens do nosso bairro, e tinha
os modos e a voz de uma pessoa cheia de
carradas de razão. Ergueu a
faca e retirou do fundo do frasco um pedaço viscoso de doce de framboesa; espalhou-o por igual sobre as
metades da fatia e replicou:
- É
verdade que hoje em dia quase toda a gente usa a palavra «traidor» com demasiada leviandade. Mas
o que vem a ser um traidor? Sim,
o que é, com efeito? É um homem sem honra, um sujeito que, às escondidas,
por detrás das costas, por um qualquer benefício insuspeito, ajuda o inimigo contra o seu povo, chegando mesmo
a desgraçar a sua família e
amigos. É mais infame do que um
assassino. E tu, faz-me o favor de acabar de comer esse ovo! Na
Ásia há quem morra de fome, está aqui escarrapachado
no jornal.
A minha mãe puxou o meu prato
para si e acabou de comer os restos do meu ovo e pão com doce - não por força do apetite, mas por amor à paz -
e rematou:
- Quem ama, não atraiçoa.
Mais à frente no romance, o leitor pode descobrir que a mãe estava completamente enganada. Só quem ama se pode converter num traidor. A traição não é o reverso do amor: é uma das suas
opções. Traidor, julgo, é quem
muda aos olhos daqueles que não
podem mudar e não mudarão, daqueles que detestam mudar e não podem
conceber a mudança, apesar de quererem
sempre mudar os outros. Por outras palavras, traidor, aos olhos do fanático,
é qualquer um que muda. E é difícil a escolha entre converter-se num fanático ou converter-se
num traidor. Não converter-se num
fanático significa ser, até certo
ponto e de alguma forma, um traidor aos olhos do fanático. Eu fiz a minha escolha e esse romance é disso
a prova fiel.
Intitulei-me
especialista em fanatismo comparado. Não é nenhuma piada. Se alguém souber de uma escola ou
universidade que vá abrir um departamento de Fanatismo Comparado, cá estarei eu
para solicitar um lugar de professor. Na minha qualidade de antigo
jerosolimitano, e como fanático reabilitado, sinto-me plenamente qualificado
para esse
posto. Talvez seja chegado o momento de todas as escolas, todas
as universidades, facultarem pelo menos um par de cursos de Fanatismo Comparado, pois este está em toda a
parte. Não me refiro tão-só às óbvias
manifestações de fundamentalismo e fervor cego.
Não me refiro apenas
aos fanáticos natos que vemos na
televisão entre multidões histéricas que agitam os punhos contra as câmaras, ao mesmo tempo que
gritam slogans em línguas que não entendemos. Não, o fanatismo está em todo o lado. Com modos mais silenciosos, mais civilizados.
Está presente à nossa volta e
talvez também dentro de nós. Conheço bastantes não-fumadores que o
queimariam vivo por acender um cigarro ao pé
deles! Conheço muitos
vegetarianos que o comeriam vivo por
comer carne! Conheço pacifistas, alguns dos meus colegas do
Movimento de Paz israelita, por exemplo, desejosos de dispararem directamente
à minha cabeça só por eu defender uma
estratégia ligeiramente diferente da sua para conseguir a paz com os Palestinianos. No entanto, não afirmo
que qualquer um que levante a voz contra alguma coisa seja um fanático.
Não
sugiro que qualquer um que manifeste opiniões veementes seja um
fanático, claro
que não. Digo que a semente do fanatismo brota ao adoptar-se uma
atitude de superioridade moral que impeça a obtenção de consensos. É uma praga muito comum que, certamente, se manifesta em
diferentes graus. Um ou uma militante ecologista pode adotar uma atitude de superioridade moral que
impeça a obtenção de consensos, mas causará
muito pouco dano se o compararmos, por exemplo, com um depurador étnico ou um
terrorista.
Mais
ainda, todos os fanáticos sentem uma atracção, um gosto especial, pelo kitsch. Muito frequentemente, o fanático só consegue contar
até um, já que dois é um número
demasiado grande para ele ou para ela. Ao mesmo tempo, descobriremos
que, com alguma frequência, os fanáticos são sentimentais incuráveis: preferem muitas vezes sentir do que pensar, e têm uma fascinação
especial pela sua própria morte.
Desprezam este mundo e estão
impacientes por trocá-lo pelo «Paraíso». No entanto, o seu Paraíso é geralmente imaginado como o final de um mau filme.
Vou
contar uma história em jeito de divagação: eu sou um reconhecido divagador, estou sempre a divagar. Um
querido amigo e colega meu, o admirável
romancista israelita Sammy Michael, passou uma vez pela experiência,
por que todos nós passamos de vez em
quando, de andar de táxi durante um bom tempo com um condutor que lhe ia dando a típica palestra sobre como é
importante para nós, Judeus,
matar todos os Árabes. Sammy ouvia-o
e, em vez de lhe gritar, «Que homem horrível que você é! É nazi ou fascista?», decidiu ir por outro caminho e perguntou-lhe: «E quem acha que
deveria matar todos os Árabes?» O taxista disse:
«O que quer dizer com isso? Nós! Os Judeus Israelitas! Temos de o
fazer! Não há escolha. Veja só o que
nos fazem todos os dias!» «Mas quem,especificamente,
é que deveria fazer o trabalho? A polícia? Ou o Exército talvez? O
corpo de bombeiros ou as equipas médicas?
Quem deveria fazer o trabalho?»
O
taxista coçou a cabeça e disse: «Penso que devíamos dividi-lo em
partes iguais entre cada um de nós, cada um de nós devia matar
alguns.» E
Sammy Michael, ainda no mesmo jogo, disse: «Pois bem, suponha que a
si lhe toca um determinado bloco residencial da sua cidade natal, Haifa, e que bate às portas ou toca às campainhas, e
pergunta: 'Desculpe, senhor, ou
desculpe, senhora. Por acaso é
árabe?' E se a resposta for afirmativa, você dispara. Quando acaba o seu bloco, dispõe-se a
regressar a casa, mas, ao fazê-lo,» continuou Sammy «ouve, algures no quarto andar do seu bloco, o choro
de um bebé. Voltaria para matar
o bebé? Sim ou não?» Houve um
momento de silêncio e, então, o taxista disse a Sammy: «Sabe, o senhor é um homem muito cruel.»
Esta
é uma história muito significativa, porque há algo na natureza do fanático que, essencialmente, é muito
sentimental e, ao mesmo tempo, carece de imaginação. E isto, às vezes, dá-me esperança - naturalmente, muito limitada -
de que injectando alguma imaginação nas
pessoas, talvez as ajudemos a reduzir o fanático que trazem
dentro de si e a sentirem-se
incomodados. Não é um remédio rápido, não é uma cura rápida, mas pode ajudar. Conformidade e uniformidade, a urgência de «pertencer
a» e o desejo de fazer com que todos os demais «pertençam a», podem constituir
perfeitamente as formas de fanatismo mais
amplamente difundidas, embora não sejam as mais perigosas. Lembrem-se de A Vida deBrian, esse
filme magnífico dos Monty Python, em
que o protagonista diz à multidão dos seus futuros discípulos «Sois
todos indivíduos!», e a multidão
responde aos gritos «Somos todos
indivíduos!», excepto um lá no meio, que diz timidamente com um fio de voz: «Eu não.» Mas todos o mandam calar furiosos.
Uma
vez tendo dito que a conformidade e a uniformidade são formas
moderadas mas expandidas de fanatismo, devo acrescentar que, com frequência, o
culto da personalidade,
a idealização de líderes políticos ou religiosos, a adoração de indivíduos sedutores,
podem muito bem constituir outras formas
disseminadas de fanatismo. O
século XX parece ter dado mostras excelentes neste sentido. Por um
lado, os regimes totalitários, as
ideologias mortíferas, o chauvinismo agressivo, as formas violentas de
fundamentalismo religioso.
Por
outro, a idolatria universal de uma Madonna ou de um Maradona. Talvez o pior
aspecto da globalização seja a infantilização do género humano — «o
jardim de infância global», cheio de brinquedos e adereços, rebuçados e chupa--chupas. Até
meados do século XIX, mais ano menos ano - varia de um país para outro, de um continente para outro -, mas grosso modo até um determinado momento do século XIX, a maior parte
das pessoas em grande parte do
mundo tinha, pelo menos, três
certezas básicas: onde passarei a minha vida, o que farei para
viver e o que acontecerá comigo depois de
morrer.
Quase
toda a gente - há uns cento e cinquenta anos - sabia que passaria
a sua vida onde nascera
ou em algum lugar próximo, talvez na
povoação vizinha. Todos sabiam que ganhariam a vida como os seus
pais ou de forma semelhante. E que,
portando-se bem, iriam para um
mundo melhor depois de mortos. O século XXprovocou uma erosão destas e de outras certezas, destruindo-as muitas vezes. A perda destas
certezas elementares pode ter originado o meio século maiscontaminado de ideologias, seguido do meio
século mais ferozmente egoísta, hedonista e mais virado para a
superficialidade.
No que respeita aos
movimentos ideológicos da primeira metade
do século passado, o mantra
costumava ser: «Amanha será um dia melhor - façamos sacrifícios
hoje, levemos os outros a fazer sacrifícios, para que os nossos
filhos herdem um paraíso no
futuro.» Num determinado momento
à volta de meados do século, esta noção foi substituída pela da felicidade
instantânea. Não se tratava já
do famoso direito a lutar pela felicidade, mas da ilusão - actualmente tão difundida - de que a felicidade está exposta nas prateleiras, de
que basta chegar a ser suficientemente rico para comprar a felicidade a troco de dinheiro. A ideia
do «foram felizes para sempre»,
a ilusão da felicidade duradoura,
é, na verdade, um oxímoro. Pode ser pontual ou prolongada, mas a
felicidade eterna não é felicidade, do
mesmo modo que um orgasmo sem fim
não seria de forma alguma um orgasmo.
A essência do
fanatismo reside no desejo de obrigar os outros a mudar. Nessa tendência
tão comum
de melhorar o vizinho, de corrigir a esposa, de fazer o filho
engenheiro ou de endireitar o irmão, em vez de deixá-los ser. O fanático é uma
das mais
generosas criaturas. O fanático é um grande altruísta. Está mais interessado
nos outros do que em si próprio. Quer salvar a nossa alma,
redímír--nos. Livrar-nos do pecado, do erro, do tabaco, da nossa fé ou da nossa carência de fé.
Quer melhorar os nossos hábitos
alimentares, ou curar-nos do alcoolismo
e do hábito de votar. O fanático morre de amores pelo outro. Das duas uma: ou
nos deita os braços ao pescoço
porque nos ama de verdade, ou se atira à nossa garganta em caso de
sermos irrecuperáveis.
Em qualquer caso, topograficamente falando, deitar os braços ao pescoço ou
atirar-se à garganta é quase o
mesmo gesto. De uma maneira ou
de outra, o fanático está mais interessado no outro do que em si mesmo, pela simples razão de
que tem um mesmo bastante exíguo, ou mesmo nenhum mesmo. O senhor Bin Laden e os da sua laia não se limitam a odiar o Ocidente. Não é
assim tão simples. Creio antes
que querem salvar as nossas almas,
querem libertar-nos dos nossos horríveis valores, do materialismo,
do pluralismo, da democracia, da liberdade de opinião, da emancipação da mulher... Tudo isto, segundo os
fundamentalistas islâmicos, é muito, mas mesmo muito prejudicial à
saúde. Com toda a certeza, o objectivo imediato de Bin Laden não era Nova Iorque ou Madrid.
O seu objectivo era
converter os muçulmanos pragmáticos, moderados, em crentes «autênticos», no seu tipo
de muçulmanos. O Islão, para Bin Laden, estavadebilitado pelos «valores
americanos», e, para defender o Islão, não basta ferir o Ocidente e feri-lo
forte e feio. Não. No
final, o Ocidente deve ser convertido. A
paz só prevalecerá quando o mundo se tiver convertido, não já ao Islão, mas à fornia mais rígida, feroz e fundamentalista do Islão. Será
para nosso bem. No fundo, Bin
Laden ama-nos. O 11 de Setembro,
no seu modo de pensar, foi um acto de amor. Fê-lo para nosso bem,
quer mudar-nos, quer redimir-nos.
Muito
frequentemente, tudo começa na família. O fanatismo começa em casa. Começa precisamente pela
urgência tão comum em mudar um ser querido para seu próprio bem. Começa pela urgência do sacrifício para bem de um vizinho muito amado. Começa
pela urgência de dizer a um filho: «Tens
de fazer como eu, não como a tua mãe» ou «Tens de fazer como eu, não como o teu pai» ou «Por favor, sê muito diferente de ambos». Ou quando
os cônjuges dizem entre si: «Tens de mudar, tens de fazer como eu, ou, de contrário, o
casamento não resultará.» Com frequência, começa pela urgência em viver a própria vida através da vida deoutrem. Em anular-se a si próprio para facilitar
a realização do próximo ou o
bem-estar da geração seguinte. O auto-sacrifício costuma infligir terríveis sentimentos de culpa ao seu beneficiário,
manipulando-o ou mesmo
controlando-o. Se eu tivesse de escolher entre os dois estereótipos
de mãe da famosa anedota judaica - a
mãe que diz ao filho, «Acaba o
pequeno-almoço ou mato-te», ou a que diz, «Acaba o pequeno-almoço ou mato-me» -, provavelmente escolheria o menor de dois
males, não acabar o pequeno-almoço e morrer, em vez de não acabar o
pequeno-almoço e viver com um sentimento de
culpa para o resto da minha vida.
Voltemos agora ao sombrio
papel dos fanáticos e ao fanatismo no conflito entre Israel e a
Palestina, entre Israel e grande parte do mundo árabe. O choque entre Israelitas e Palestínianos não é, na
sua essência, uma guerra civil entre dois segmentos da mesma população, do mesmo povo, da mesma cultura. Não é um conflito interno, mas
internacional. Felizmente. Porque os conflitos internacionais são mais fáceis de resolver do que os internos - guerras
religiosas, lutas de classes, guerras de valores. Disse mais fáceis, não fáceis.
Na sua essência, a batalha entre Judeus
Israelitas e Árabes Palestiníanos não é uma guerra religiosa, embora os fanáticos de ambos os lados façam o impossível por transformá-la numa guerra religiosa. Fundamentalmente, não é
mais do que um conflito territorial sobre a dolorosa questão: «De quem
é a terra?» É um doloroso conflito entre
quem tem razão e quem tem razão, entre
duas reivindicações muito convincentes, muito poderosas, sobre o mesmo
pequeno país. Nem guerra religiosa, nem guerra de culturas, nem desacordo entre duas tradições. Simplesmente uma
verdadeira disputa territorial sobre quem é o proprietário da casa. E
eu acredito que isto se pode resolver.
Acredito, de uma forma simples
e cautelosa, que a imaginação possa servir de protecção
parcial e
limitada contra o fanatismo. Acredito que uma pessoa capaz de
imaginar o que as suas ideias implicam, como no caso do bebé a chorar no
quarto andar,
pode converter-se num fanático parcial, o que já constitui uma ligeira
melhoria. Neste momento, bem gostaria de vos dizer que a literatura é a
resposta, porque a literatura contém um antídoto contra o fanatismo, que é a injecção de
imaginação nos leitores.
Gostava de poder receitar
simplesmente: leiam literatura e ficarão curados do vosso fanatismo. Infelizmente, não é assim tão
simples. Infelizmente, muitos poemas,
muitas histórias e dramas ao
longo da História foram utilizados para fomentar o ódio e a superioridade moral nacionalista. Apesar de tudo, há algumas obras literárias
que julgo poderem ajudar até
certo ponto. Não operam milagres,
mas podem ajudar. Shakespeare pode ajudar muito: todo o extremismo, toda a cruzada intransigente, toda a
forma de fanatismo em Shakespeare
acaba, mais tarde ou mais cedo, em tragédia ou em comédia. No fina!, o
fanático nunca estámais feliz ou mais
satisfeito, ora morrendo ora convertendo-se em bobo. É uma boa injecção. E Gogol também pode ajudar: faz com que,
grotescamente, os seus leitores tomem consciência do pouco
que sabemos, mesmo quando estamos
convencidos de ter cem por
cento de razão. Gogol ensina-nos que o nosso próprio nariz pode transformar-se num inimigo terrível, num inimigo fanático até. E
pode acontecer que acabemos por
perseguir fanaticamente o nosso
próprio nariz. Em si, não é uma má lição.
Kafka é um bom educador a este
respeito, se bem que tenho a certeza de que ele nunca
pretendeu leccionar
contra o fanatismo. Mas Kafka mostra-nos que também existe escuridão e enigma e engano
quando pensamos que não fizemos absolutamente nada de mal. Isso ajuda. (Se houvesse tempo e espaço, poderia falar muito mais sobre Kafka e Gogol
e sobre a subtil conexão que
vejo entre ambos, mas vamos
deixá-lo para outra ocasião.) E William Faulkner pode ajudar. O poeta israelita
Yehuda Amíjai expressa tudo
isto melhor do que eu poderia fazer,
quando afirma: «Onde temos razão não podem crescer flores.» É uma frase muito útil. Assim, de certo modo, algumas obras literárias
podem ajudar, mas não todas.
E se me prometerem não levar à
letra o que vou dizer, atrever-me-ia a assegurar que, pelo menos em princípio, julgo ter inventado o
remédio contra o fanatismo. O
sentido de humor é uma grande
cura. Jamais vi na minha vida um fanático com sentido de humor, nem nunca vi qualquer pessoa com sentido de humor converter-se num fanático,
a menos que ele ou ela tivessem perdido esse
sentido de humor. Os fanáticos são frequentemente sarcásticos. Alguns deles têm um sarcasmo muito agudo, mas de humor, nada. Ter sentido
de humor implica a capacidade de se rir de si próprio.
Humor é relativismo, humor é a
habilidade de nos vermos como os outros nos vêem, humor é a capacidade de perceber que, por muito cheia de razão que uma pessoa se sinta e por mais
tremendamente enganada que tenha
estado, há um certo lado da vida
que tem sempre a sua graça. Quanto mais razão se tem, mais divertida se torna a pessoa. E, neste caso, pode-se ser um israelita convicto da sua
razão ou um palestiniano
convicto da sua razão ou qualquer pessoa convicta da sua razão. Com
sentido de humor, bem pode acontecer que
se seja parcialmente imune ao
fanatismo.
Se
eu pudesse comprimir o sentido de humor em cápsulas e, depois, persuadir povoações inteiras
a engolirem as minhas pílulas humorísticas, imunizando desse modo toda a gente
contra os fanáticos, talvez um dia chegasse ao Prémio Nobel de Medicina, em vez do de Literatura. Mas escutem! A simples ideia de comprimir o sentido de humor
em cápsulas, a simples ideia de
fazer com que os outros engulam
as minhas pílulas humorísticas para seu próprio bem, curando-os assim do seu
mal, já está ligeiramente
contaminada de fanatismo.
Muito cuidado, o
fanatismo é extremamente infeccioso, mais contagioso do que qualquer vírus.
Pode-se contrair fanatismo facilmente, até mesmo ao tentarvencê-lo ou
combatê-lo. Basta ler os jornais ou ver televisão para verificar como as
pessoas se convertem facilmente em fanáticos antifanáticos, em fanáticos
antifundamentalistas, em cruzados antijihad. Afinal, se não podemos vencer o
fanatismo, talvez possamos, ao menos,
contê-lo um pouco. Como disse
antes, a capacidade de rirmos de nós próprios constituí uma cura parcial, a capacidade de
nos vermos como os outros nos vêem é um outro remédio. A capacidade de conviver com situações
cujo final está em aberto,
inclusivamente de aprender a desfrutar
com essas situações, de aprender a desfrutar com a diversidade, também pode ajudar. Não estou a pregar o relativismo moral total, com
certeza que não.
Tento
realçar a nossa capacidade de nos imaginarmos uns aos outros. Façamo-lo a todos os níveis, começando pelo mais
quotidiano. Imaginemos o outro quando
lutamos, imaginemos o outro quando nos queixamos, imaginemos o outro
precisamente quando sentimos que temos cem por cento de razão.
Mesmo quando se tem cem por cento de
razão e o outro está cem por cento equivocado, continua a ser útil imaginar o outro. Na verdade, fazemos isso a todo o momento. O
meu último romance, O Mesmo
Mar3, versa sobre seis ou sete pessoas
espalhadas pelo globo e que têm entre si
uma comunicação quase mística. Pressentem-se, comunicam constantemente entre si de forma telepática,
embora se encontrem disseminados pelos quatro
cantos da Terra.
A capacidade de
conviver com situações de final em aberto está, imaginariamente, em
aberto para
todos nós: escrever urn romance, por exemplo, implica, entre
outras responsabilidades, a necessidade de nos levantarmos todas as manhãs, tomar
um café
e começar a imaginar o outro. Como seria se eu fosse ela, e como
seria se eu fosse ele? E na minha experiência pessoal, na minha própria história
de vida,
na minha história familiar, não consigo deixar de pensar
frequentemente que, com uma ligeira modificação dos meus genes ou das circunstâncias
dos meus pais, eu poderia ser ele ou ela, poderia ser um colono da
Margem Ocidental, poderia ser um extremista ultra-ortodoxo, poderia ser um
judeu oriental
de um país do Terceiro Mundo, poderia ser alguém diferente. Poderia ser
um dos meus inimigos.
Imaginar isto é
sempre uma prática útil. Há muitos anos, quando ainda era uma criança, a minha sapientíssima
avó explicou-me com palavras muito simples a diferença entre um judeu e um cristão, não entre
um judeu e um muçulmano, mas entre um judeu e um cristão: «Olha,» disse «os Cristãos
acreditam que o Messias já cá esteve uma vez e que, certamente,
regressará um dia. Os Judeus defendem que o Messias ainda está por chegar.
Por isso,»
disse a minha avó «por isso, tem havido tanta raiva, tantas
perseguições, derramamento de sangue, ódio... Porquê? Por que não podemos simplesmente esperar todos e ver o que acontece? Se o Messias voltar e disser, 'Olá, estou muito
contente por vê-los de novo', os Judeus terão de aceitar. Se, pelo contrário, o Messias chegar e disser, 'Como
estão, prazer em conhecê-los', toda a Cristandade terá de pedir desculpa aos Judeus.
Entretanto,» disse a minha sábia
avó «vive e deixa viver». Ela era,definitivamente,
imune ao fanatismo. Conhecia o segredo
de viver em situações de final em aberto, no meio de conflitos não resolvidos, com a
diversidade de outras pessoas.
Comecei por dizer que o
fanatismo muitas vezes começa em casa. Quero terminar dizendo
que o
antídoto também se pode encontrar em casa, praticamente na ponta dos nossos
dedos. Nenhum homem é uma ilha, disse John Donne, mas atrevo-me humildemente a
acrescentar: nenhum homem e nenhuma mulher é uma ilha, mas cada um de nós é uma península, com uma metade unida à terra firme
e a outra a olhar para o oceano - uma metade
ligada à família, aos amigos, à cultura, à tradição, ao país, à nação, ao sexo e à linguagem e a muitas outras
coisas, e a outra metade a desejar que a deixem sozinha a contemplar o oceano. Penso que nos deviam deixar continuar a ser penínsulas.
Todo o sistema político e
social que converte cada um de nós numa ilha donneana e o resto da
humanidade em inimigo ou rival é uma monstruosidade. Mas aomesmo tempo, todo
o sistema ideológico, político e social que apenas nos quer transformar em moléculas do continente,
também é uma monstruosidade. A condição de península é a própria condição humana. É o que somos e o que merecemos continuar a ser. De modo que, em certo sentido, em cada
casa, em cada família, em cada
condição humana, em cada relação
humana, temos de facto uma relação entre um certo número de penínsulas, e será melhor que nos lembremos disso antes de nos tentarmos
modelar uns aos outros, de virarmos as costas uns aos outros e de tentarmos que quem está
ao nosso lado se torne igual a nós, enquanto que o que ele ou ela
necessitam é de contemplar o oceano durante
algum tempo.
E esta é a verdade para
os grupos
sociais, para as culturas, para as civilizações, para as nações e,
é verdade, para os Israelitas e os Palestinianos. Nenhum deles é uma ilha e
nenhum deles
pode misturar-se inteiramente com o outro. Estas duas penínsulas deviam estar relacionadas e,
ao mesmo tempo, deixadas à sua vontade. Sei que esta é uma mensagem pouco usual num tempo em que a
violência, a ira, a vingança, o fundamentalismo, o fanatismo e o racismo
campeiam livremente no Médio Oriente e
noutros lugares.
Sentido de humor, a capacidade
de imaginar o outro, a capacidade de reconhecer a
capacidade peninsular que existe em cada um de nós, pode
pelo menos constituir uma
defesa parcial contra o gene fanático
que todos temos dentro de nós."
Conferência de 23
de Janeiro de 2002
1 Edições ASA, 1998.-(W. do K)
2 Editado a partir de excerto da edição
portuguesa de Uma Pantera na Cave. (TV. do E.)
3 Edições ASA, 2004. (N. do E.)
Um amigo, Públio Athayde, disse algo que se aplica a este texto. E que tento reproduzir adiante, de memória : "Eu era coroinha. Aí achei que tava ficando carola demais e virei agnóstico. Aí achei que me apegava demais a dúvidas e resolvi virar ateu. Mas com o passar do tempo vi que o meu ateísmo tinha virado uma religião, aí abjurei."
Daí, pergunto eu: quantas vezes terei sido e serei um fanático? Quantas, tantas, que nem sei....
Um amigo, Públio Athayde, disse algo que se aplica a este texto. E que tento reproduzir adiante, de memória : "Eu era coroinha. Aí achei que tava ficando carola demais e virei agnóstico. Aí achei que me apegava demais a dúvidas e resolvi virar ateu. Mas com o passar do tempo vi que o meu ateísmo tinha virado uma religião, aí abjurei."
Daí, pergunto eu: quantas vezes terei sido e serei um fanático? Quantas, tantas, que nem sei....
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