quarta-feira, 3 de abril de 2013

NELSON ASCHER - Como você pode pensar assim?



Há poucas coisas mais reconfortantes do que contar com uma visão fechada de mundo

QUEM QUER que tenha procurado entender certas questões, particularmente as que envolvem o panorama internacional, não apenas sem o auxílio das categorias corriqueiras mas também segundo suas próprias luzes, já terá ouvido um interlocutor, entre atônito, assustado e enfurecido, perguntar-lhe: "Como é que você pode pensar assim?".

Inevitavelmente, para o bem de todos e felicidade geral dos convivas (tais incidentes costumam ocorrer em jantares), conclui-se logo que, se uma pessoa acha, por exemplo, que os perigos do aquecimento global não foram ainda demonstrados e que as medidas propostas pelo Protocolo de Kyoto não serviriam para muito, que a Guerra do Iraque não se assemelha à do Vietnã nem terá desfecho semelhante, que o ângulo territorial da crise do Oriente Médio é secundário, encobrindo manipulações demagógicas e motivações etno-religiosas, que desigualdades de renda pouco ou nada contribuem para elucidar as causas da criminalidade e do terrorismo, que, ao contrário do que se supõe, punição, retaliações e guerra são, sim, capazes de resolver diversos problemas, enfim, se alguém ensaia tais pontos de vista, está obviamente (a não ser que alegue insanidade) agindo de má-fé.

O curioso, porém, é que, antes de se chegar ao veredicto acima e à conseqüente sentença, não raro, a surpresa se revela intensa e sincera o bastante até para tolher os primeiros reflexos agressivos, pois não faltam, nem sequer nas rodas mais civilizadas, interlocutores que, enquanto não aplicam ao discordante, dissidente ou herético o tratamento merecido, entremostram, no seu pasmo, que nem esperavam nem haviam sido espiritualmente preparados para encontrar pela frente opiniões, idéias e informações diferentes das suas ou, pior ainda, maneiras distintas de pensar.

Como, durante um devaneio ou outro, eu me sinto tão humano quanto vocês, terráqueos, tampouco resisto, nessas ocasiões, ao acalanto de uma nostalgia que, de quando em quando, me invade, nostalgia menos da inocência perdida do que das certezas abandonadas. Há poucas coisas mais reconfortantes do que contar com uma visão fechada e completa de mundo.

Melhor do que Lexotan, Valium e similares, ela dissipa a angústia dos usuários, convertendo o estranho no conhecido, traduzindo meticulosa e certeiramente acontecimentos inesperados em termos que, além de domesticá-los, asseguram àqueles que seus postulados continuam inabalados e inabaláveis. De resto, o temperamento nacional inclina nossos compatriotas a adotarem concepções que ou negam a existência de conflitos passionais ou, se acaso a admitem, preferem interpretá-los como falhas facilmente corrigíveis de comunicação.

Preço

Que a tranqüilidade mental fique, portanto, de antemão assegurada nem por isso lhe reduz o preço. Qual é este? Talvez o mais alto consista em fazer parecer desinteressantes e insossos precisamente os assuntos cuja natureza, atualidade e complexidade tornariam intrigantes e sempre apetitosos.

Assim é o prisma programadamente tedioso e inapetente através do qual se narra a presente conflagração na Mesopotâmia, que, ao descartá-la como simples aventura imperial do grande vilão capitalista sequioso de petróleo, inibe a formulação de outras tantas indagações pertinentes. Entre elas: como se explica o comportamento de Saddam Hussein? Ele acreditava que o Iraque não seria invadido ou, caso o fosse, que seu Exército repeliria as tropas da coalizão? De onde vinham essas esperanças absurdas? Houve aliados ou simpatizantes seus que tenham lhe dado algum tipo de garantia?

E quanto ao Afeganistão, o que levou o regime dos talebans a se imaginar protegido, invulnerável? Seu verdadeiro fiador era o Paquistão, país que, após breves negociações, entregou aos Estados Unidos, numa bandeja, a cabeça do satélite vizinho: o que é que o presidente paquistanês Pervez Musharraf ganhou ou, mais provavelmente, evitou perder? E por que se passaram quase cinco anos sem novos mega-atentados em solo americano: os jihadistas não tentaram perpetrá-los ou não o conseguiram? Esse fato em si não apontaria para um sucesso parcial da estratégia militar da administração republicana? Como se vê, enigmas e mistérios não faltam, e os que se eximem de investigá-los deveriam, no mínimo, se abster de julgar maçante ou frustrante o mundo contemporâneo.

Nenhum comentário: