Há poucas coisas mais reconfortantes do que contar com uma visão
fechada de mundo
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QUEM
QUER que tenha procurado entender certas questões, particularmente as que
envolvem o panorama internacional, não apenas sem o auxílio das categorias
corriqueiras mas também segundo suas próprias luzes, já terá ouvido um
interlocutor, entre atônito, assustado e enfurecido, perguntar-lhe: "Como
é que você pode pensar assim?".
Inevitavelmente, para o bem de todos e felicidade geral dos convivas (tais
incidentes costumam ocorrer em jantares), conclui-se logo que, se uma pessoa
acha, por exemplo, que os perigos do aquecimento global não foram ainda
demonstrados e que as medidas propostas pelo Protocolo de Kyoto não serviriam
para muito, que a Guerra do Iraque não se assemelha à do Vietnã nem terá
desfecho semelhante, que o ângulo territorial da crise do Oriente Médio é
secundário, encobrindo manipulações demagógicas e motivações etno-religiosas,
que desigualdades de renda pouco ou nada contribuem para elucidar as causas da
criminalidade e do terrorismo, que, ao contrário do que se supõe, punição,
retaliações e guerra são, sim, capazes de resolver diversos problemas, enfim,
se alguém ensaia tais pontos de vista, está obviamente (a não ser que alegue
insanidade) agindo de má-fé.
O curioso, porém, é que, antes de se chegar ao veredicto acima e à conseqüente
sentença, não raro, a surpresa se revela intensa e sincera o bastante até para
tolher os primeiros reflexos agressivos, pois não faltam, nem sequer nas rodas
mais civilizadas, interlocutores que, enquanto não aplicam ao discordante,
dissidente ou herético o tratamento merecido, entremostram, no seu pasmo, que
nem esperavam nem haviam sido espiritualmente preparados para encontrar pela
frente opiniões, idéias e informações diferentes das suas ou, pior ainda, maneiras
distintas de pensar.
Como, durante um devaneio ou outro, eu me sinto tão humano quanto vocês,
terráqueos, tampouco resisto, nessas ocasiões, ao acalanto de uma nostalgia
que, de quando em quando, me invade, nostalgia menos da inocência perdida do
que das certezas abandonadas. Há poucas coisas mais reconfortantes do que
contar com uma visão fechada e completa de mundo.
Melhor do que Lexotan, Valium e similares, ela dissipa a angústia dos usuários,
convertendo o estranho no conhecido, traduzindo meticulosa e certeiramente
acontecimentos inesperados em termos que, além de domesticá-los, asseguram
àqueles que seus postulados continuam inabalados e inabaláveis. De resto, o
temperamento nacional inclina nossos compatriotas a adotarem concepções que ou
negam a existência de conflitos passionais ou, se acaso a admitem, preferem
interpretá-los como falhas facilmente corrigíveis de comunicação.
Preço
Preço
Que a tranqüilidade mental fique, portanto, de antemão assegurada nem por isso
lhe reduz o preço. Qual é este? Talvez o mais alto consista em fazer parecer
desinteressantes e insossos precisamente os assuntos cuja natureza, atualidade
e complexidade tornariam intrigantes e sempre apetitosos.
Assim é o prisma programadamente tedioso e inapetente através do qual se narra
a presente conflagração na Mesopotâmia, que, ao descartá-la como simples
aventura imperial do grande vilão capitalista sequioso de petróleo, inibe a
formulação de outras tantas indagações pertinentes. Entre elas: como se explica
o comportamento de Saddam Hussein? Ele acreditava que o Iraque não seria
invadido ou, caso o fosse, que seu Exército repeliria as tropas da coalizão? De
onde vinham essas esperanças absurdas? Houve aliados ou simpatizantes seus que
tenham lhe dado algum tipo de garantia?
E quanto ao Afeganistão, o que levou o regime dos talebans a se imaginar
protegido, invulnerável? Seu verdadeiro fiador era o Paquistão, país que, após
breves negociações, entregou aos Estados Unidos, numa bandeja, a cabeça do
satélite vizinho: o que é que o presidente paquistanês Pervez Musharraf ganhou
ou, mais provavelmente, evitou perder? E por que se passaram quase cinco anos
sem novos mega-atentados em solo americano: os jihadistas não tentaram
perpetrá-los ou não o conseguiram? Esse fato em si não apontaria para um
sucesso parcial da estratégia militar da administração republicana? Como se vê,
enigmas e mistérios não faltam, e os que se eximem de investigá-los deveriam,
no mínimo, se abster de julgar maçante ou frustrante o mundo contemporâneo.
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