quinta-feira, 18 de abril de 2013

51. De como temos que optar entre a lamentação e o amor




Do conto Campo Geral, do livro Manuelzão e Miguilim.



“- Miguilim, você tem medo de morrer?
- Demais... Dito, eu tenho um medo, mas só se fosse sozinho. Queria a gente todos morresse juntos...
- Eu tenho. Não queria ir para o céu menino pequeno.”

A estória de Dito e Miguilim narra a vida de uma família isolada num interior muito distante de tudo, sob a ótica dos dois pequenos irmãos. É uma estória linda sobre a infância, os temores, o pasmo olhar infantil diante do mundo adulto, as descobertas, o sofrimento.  

A certa altura do conto Dito – o irmão menor – corta o pé ao pisar num caco. O corte se infecciona e o menino piora. É o tétano se instalando. E Dito chama seu irmão.

“Uma hora Dito chamou Miguilim, queria ficar com Miguilim sozinho. Quase que ele não podia mais falar. –‘Miguilim, e você não contou a estória da Cuca pingo-de-Ouro...’ –‘Mas eu não posso, Dito, mesmo não posso! Eu gosto demais dela, estes dias todos...’ Como é que podia inventar estória? Miguilim soluçava. –‘Faz mal não, Miguilim, mesmo ceguinha mesmo, ela há de me reconhecer...’ –‘No Céu, Dito? No Céu?!’ – e Miguilim desengolia da garganta um desespero. –‘Chora não, Miguilim, de quem eu gosto mais, junto com Mãe, é de você...’ E o Dito também não conseguia mais falar direito, os dentes dele teimavam em ficar encostados, a boca mal abria, mas mesmo assim ele forcejou e disse tudo: – ‘Miguilim, Miguilim, eu vou ensinar o que agorinha eu sei, demais: é que a gente pode ficar sempre alegre, alegre, mesmo com toda coisa ruim que acontece acontecendo. A gente deve de poder então ficar mais alegre, mais alegre, por dentro!’ ”

Um amigo disse-me um dia de suas duas avós, com vidas praticamente idênticas e posturas radicalmente diferentes.

As duas eram de origem muito humilde, casaram-se muito jovens, tiveram o mesmo número de filhos, os dois maridos se tornaram alcoólatras e agressivos, as duas apanhavam muito, as duas ficaram viúvas mais ou menos com a mesma idade e terminaram de criar seus filhos sozinhas, da mesma forma, como costureiras.

As duas agora eram agora amparadas pelos seus filhos, que estudaram e se estruturaram na vida.

Mas as semelhanças paravam aí. Uma delas era absolutamente envolvida com a vida, alegre, feliz. Sabia-se idosa e sofria dos problemas da idade, mas sem que isso abatesse seu gosto em viver.

A outra de tudo se queixava, nada estava bom, permanentemente estava mal humorada, era muito hostil com todos e se sentia absolutamente injustiçada. Enfim, estava afundada na própria lamentação.

Como era possível duas pessoas com histórias tão semelhantes e tão distintas?

E Dito dizendo que podemos ser felizes mesmo com coisas ruins acontecendo.

A lamentação é uma cachaça extremamente embriagante. Uma vez engolida vamos afundando nela de tal forma que muitos não conseguem mais se reerguer. A dor tem seu feitiço, como tão bem expresso por Paulo Mendes Campos:

“Por fim, mais uma palavra de bolso: às vezes uma pessoa se abandona de tal forma ao sofrimento, com uma tal complacência, que tem medo de não poder sair de lá. A dor também tem o seu feitiço, e este se vira contra o enfeitiçado. Por isso, Alice, depois de ter chorado um lago, pensava: “Agora serei castigada, afogando-me em minhas próprias lágrimas”.

Conclusão: a própria dor deve ter a sua medida: É feio, é imodesto, é vão, é perigoso ultrapassar a fronteira de nossa dor, Maria da Graça.”

É perigoso ultrapassar a fronteira da própria dor. E é necessário saber que muitas vezes temos que escolher por qual caminho irá: o da lamentação que justifica todo nosso rancor ou o de se tentar tocar algum possível que se apresenta diante de nós, como chance de felicidade, como chance de amor.

O personagem Antonio, do livro "Arroz de Palma", de Francisco Azevedo, diz algo a respeito na passagem abaixo.

"Quando penso que acabou, Sebastião ainda me cutuca a lembrança e me confidencia que não acredita em nada disso de pobre, rico, feio e bonito, mau e bom...para ele, só existem dois tipos de pessoas no mundo: as que reclamam e as que agradecem".

No filme “Hiroxima, meu amor” a personagem principal, ao rememorar o enorme sofrimento que sentiu durante sua adolescência, na segunda grande guerra, vai se afundando de tal forma na dor e no desespero que o seu namorado, também muito bem provido de sofrimento, pois perdeu sua família em Hiroxima, e por isso mesmo conhecedor do poder embriagante da lamentação, a tira bruscamente da espiral lamentativa na qual ela se afundava, estapeando-a. E ela agradece-o, verdadeiramente.

E motivos justos para lamentar não nos falta. Assim como ninguém é privado do amor, também ninguém é privado do sofrimento. Qual não é a tentação de se afundar na lamentação e sentir-se justificado em todas as dificuldades? Qual não é o conforto de se achar um culpado que não seja eu mesmo para meus problemas?

Mas não podemos esquecer que temos a opção. Está ao alcance de nossas mãos recuperar nossa soberania, tatear com cuidado o nosso amigo tempo e escolher o amor. O poeta Czeslaw Milosz inspira-nos nessa direção.

“Só agora estou sadio, e era doente, porque meu tempo galopava e afligia-me o medo do que viria.
Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim:
por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros?
Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano
onde se viam nadando enormes peixes marítimos.
Tive medo que se olhasse, cairia. Virei então,
agarrei-me nas asperezas da parede rochosa,
e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.
Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais
incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de molho.”

(Trechos de “A condição poética” - Berkeley, 1978)

Ou, dito de outra forma, nas palavras de Antônio Cícero.


Presente
Por que não me deitar sobre este
gramado, se o consente o tempo,
e há um cheiro de flores e verde
e um céu azul por firmamento
e a brisa displicentemente
acaricia-me os cabelos?
E por que não, por um momento,
nem me lembrar que há sofrimento
de um lado e de outro e atrás e à frente
e, ouvindo os pássaros ao vento
sem mais nem menos, de repente,
antes que a idade breve leve
cabelos sonhos devaneios,
dar a mi mesmo este presente?








Nenhum comentário: