quarta-feira, 27 de março de 2013

A melhor matéria que eu já li sobre problemas com o alcool

28 de maio de 1997
A crua realidade do alcoolismo
A tênue passagem entre
beber socialmente e ir
perdendo o controle da vida
Sexta-feira de um feriadão recente. Quem pôde dormiu até tarde, viajou, torrou na praia ou bebeu um pouco mais que durante a semana. Andando na contramão, uma animada tribo de mais de 5 000 pessoas se reuniu, logo cedo, no pavilhão de eventos do Riocentro, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro. Vindas do Brasil inteiro, elas chegavam de ônibus fretado, carro, bicicleta, táxi ou, quem morava nas redondezas, a pé mesmo. Passaram o feriado enfurnadas em auditórios e salas, ouvindo palestras ou dando depoimentos. Mesmo sem se conhecer, reconheciam-se no essencial: à exceção de alguns conferencistas, todos eram alcoólatras. E sobreviventes. Festejavam os cinqüenta anos de fundação dos Alcoólicos Anônimos, AA, no Brasil.  
À noite, vestindo roupa mais domingueira, foram lotar o ginásio do Maracanãzinho para sua grande festa. Teve selo comemorativo dos Correios, Hino Nacional puxado por um coral, a música  Unidos para Sempre cantada de mãos dadas, o cerimonioso desfile das bandeiras, com quinze países estrangeiros e 26 Estados brasileiros representados. A delegação dos Estados Unidos, onde o AA nasceu, em 1935, e hoje abriga mais de 1,7 milhão de alcoólatras, e a da caçula Hungria, que abriu seu primeiro grupo só em 1991, receberam aplausos dobrados. Depois vieram os depoimentos ao vivo, narrando a travessia sempre desesperada de cada orador para a sobriedade. Naquela platéia, qualquer um que se levantasse teria uma história de perdas e precipício semelhante para contar. Ao final, na hora da tradicional chamada geral, um frisson de expectativa quase adolescente tomou conta do ginásio.
- Quem tem até três meses de sobriedade contínua? - perguntou o mestre-de-cerimônias, ele mesmo um alcoólatra em recuperação há quase dezessete anos.
A quase totalidade do Maracanãzinho respondeu 'Eu!', levantou-se, abraçou-se, festejou. Sentiu-se gente.
- Quem tem até seis meses?... Nove?... E dois anos?... Cinco?... Quem tem mais de dez anos?... Alguém com até vinte anos de sobriedade contínua?

À medida que aumentava a contagem do tempo de abstinência, diminuía o número de homens e mulheres que permaneciam de pé, no meio da platéia, com os braços erguidos de felicidade. Eram aplaudidos e se aplaudiam. 'No AA, dependemos um do outro, e é isso que ninguém entende', tenta explicar Ronaldo*, um veterano que não bebe há doze anos. Ou, como reza a cartilha da entidade, 'se o seu caso é beber, o problema é seu. Se o seu caso é parar de beber, o problema é nosso'. Por fim, quando a chamada chegou aos 43 anos de sobriedade, só Jonas continuou de pé. Fez muita gente chorar de esperança. Ali, todos sentiram na garganta o real significado daqueles 43 anos: 15.695 intermináveis dias em que Jonas não cedeu ao primeiro gole da recaída - aquele que já foi descrito como 'a mais sedutora procissão de tochas descendo pela sua garganta'. Para quem chega ao estágio de precisar beber a intervalos delirantes, de apenas quinze ou trinta minutos, como o personagem de Nicholas Cage no filme Despedida em Las Vegas, um dia inteiro de abstinência tem a duração de uma vida. Cientes disso e montados numa sabedoria pé-no- chão (veja reportagem na pág. 76), os Alcoólicos Anônimos se limitam a tentar não beber por um período de 24 horas. No dia seguinte, outras 24 horas, e assim sucessivamente. Para quem está no último estágio da alcoolatria, a meta é monumental. E comovente. Conta Paulo: 'Vem aquele desespero. Eu estava no banheiro, de porta aberta, de frente para a pia e sem coragem de olhar para o espelho. Escovo os dentes ou não? Se eu escovar, vomito bílis. Se eu não escovar, vai ser o terceiro dia sem escovar os dentes. Minha ex-mulher tinha vindo ver se eu ainda estava vivo. Veio por trás de mim, colocou a mão no meu ombro e perguntou: ‘Onde está aquele homem bonito que conheci anos atrás?’ Comecei a chorar. ‘Ainda é tempo’, disse-me ela. Pedi o endereço do AA'.

Pode parecer estranho que Jonas, com seus 43 anos de abstinência no currículo, ainda se apresente como 'alcoólatra' e continue freqüentando reuniões do AA. Mas, a cada ano que passa, a ciência lhe dá mais razão. 'Não creio que exista algum trabalho científico de importância, em algum lugar do mundo, que mostre que o alcoólatra pode voltar a beber com moderação. Não importa a quantidade ou a freqüência com que a pessoa beba, ela não consegue diminuir o seu patamar ou mantê-lo diminuído por longo tempo', explica o psiquiatra carioca Marcos Micelli, especializado em drogas, que já viu de tudo nos seus dezoito anos de atuação no Hospital Psiquiátrico do Pinel, no Rio. Micelli, como cerca de 85% dos médicos americanos, considera o alcoolismo uma doença, no sentido de ser um distúrbio involuntário. É o conceito amplamente aceito, também, pela psiquiatria, pelas clínicas de tratamento e pelos Alcoólicos Anônimos. Há quem prefira o termo transtorno mental decorrente do abuso de álcool. A Organização Mundial de Saúde classifica a doença do alcoolismo como síndrome, de causas múltiplas. E, fora do âmbito da ciência, o termo mais usado é ainda o que mais fere e humilha o alcoólatra - vício. Em oposição à virtude, sua forte conotação moral é demolidora e encontra eco na medicina. Em 1972, o americano Thomas Szasz decretava que excesso de bebida era um hábito. Ou desvio comportamental. 'Se escolhermos chamar maus hábitos de doença, não haverá mais limite para definir o que é doença', advertia. Roer unhas, jogar baralho e outras compulsões acabariam no mesmo saco. 'De fato', contra-argumenta o pesquisador de Harvard George E. Vaillant, autoridade mundial no assunto, 'o alcoolismo reflete um desvio de comportamento que costuma ser mais bem entendido por psicólogos do que por médicos. Mas, ao contrário do roedor de unhas e do jogador compulsivo, a maioria dos alcoólatras requer cuidados médicos.' Durante o período de abstinência, tendem a desenvolver sintomas secundários agudos - crises convulsivas, insônia, formigamentos, câimbras, vômito, derrame, hipertensão, delírio, tremores. E, sobretudo, o alcoolismo pode levar ao óbito. Marcos conhece a agonia da abstinência: 'Foi a pior fase da minha vida. Ao tentar parar de beber, tive alucinações terríveis com ratos e cobras geladas subindo pelas minhas pernas. Eu ficava encolhido no quarto, ouvindo vozes que me diziam para me jogar pela janela. Eu vi barata do tamanho de rato, rato do tamanho de gato, e o pânico era insuportável. Saí do delírio em dois dias. Seguiu-se a fase do suor frio e quente, das tremedeiras, coceiras inexplicáveis, furiosas. Vinte dias depois, estava começando a me sentir fisicamente melhor. Mas a cabeça piorou. Recomecei a beber'.
Na verdade, são tantas as variáveis no terreno dessa doença que o Conselho Nacional do Alcoolismo dos Estados Unidos, em conjunto com a Associação Americana de Medicina de Dependências Químicas, constituiu uma comissão só para estudar uma definição de alcoolismo e critérios de diagnóstico mais adequados. A versão final ficou assim: 'Alcoolismo é uma doença primária, crônica, com fatores genéticos, psicossociais e ambientais influindo em seu desenvolvimento e manifestações. A doença é freqüentemente progressiva e fatal. Tem por características contínuas ou periódicas a perda de controle sobre a ingestão de bebida, o uso do álcool apesar de conseqüências adversas e distorções de raciocínio. A negação do problema se torna parte integrante da doença e o maior obstáculo para a recuperação do doente'. Ou, segundo definição mais simples do professor de psiquiatria Donald W. Goodwin, da Universidade do Kansas, 'alcoólatra é a pessoa que bebe, tem problemas crescentes pelo fato de beber, quer parar de beber, mas continua bebendo'.
Parece simples, quase frustrante na sua banalidade. Mas nada, nos 6.000 anos de convivência da humanidade com a bebida alcoólica, é óbvio e simples. Definir o exato momento em que o abuso de álcool merece ser catalogado como alcoolismo é tão difícil quanto cravar o ponto exato em que a cor amarela se transforma em verde. Ou como saber, no caso do câncer, em que momento a primeira célula se torna maligna. O que há é um padrão: a condição se manifesta de certa maneira, progride de modo bastante previsível e acaba também de forma mais ou menos conhecida. Segundo Goodwin, autor de oito livros sobre o assunto, o típico alcoólatra caucasiano começa a abusar da bebida em torno dos 20 anos, desenvolve os primeiros problemas depois dos 30, é hospitalizado (caso o seja) antes dos 40 e é identificado como alcoólatra, por ele ou por terceiros, entre os 40 e os 50 anos. 'Alcoolismo depende de observação a longo prazo', adverte o americano Vaillant, autor de um trabalho seminal - selecionou um grupo de 660 jovens americanos como amostra e acompanhou o seu relacionamento com bebida alcoólica ao longo dos quarenta anos seguintes, quando já beiravam a terceira idade. Pôde comprovar quanto o consumo normal de bebida se funde, imperceptivelmente, ao consumo patológico. E quanto é tênue a fronteira entre o chamado heavy drinker (o 'bebedor pesado', que abusa do consumo de álcool) e o alcoólatra, aquele cujo organismo necessita de álcool para voltar a funcionar normalmente ou que desenvolveu dependência psicológica da garrafa. Conta Ronaldo: 'Chega-se a um ponto em que a bebida vira remédio. Eu usava bebida para dormir e para acordar. Meu organismo pedia. Para conseguir fazer a barba sem cortar a orelha, eu me levantava às 5h30 da manhã, tateava para fora do meu condomínio, na Barra, ia até uma das barracas abertas àquela hora e bebia três cervejas geladas. Lentamente, sentia diminuir o tremor das mãos. Me sentia em condições de voltar para casa, fazer a barba e ir trabalhar. Estava pronto para a segunda agonia do dia: como agüentar o trajeto de microônibus até o centro sem poder beber'.
Sabe-se hoje que, no início do processo, não há diferença entre um bebedor social e um futuro alcoólatra. O alcoolismo não é hereditário. As pessoas bebem por questões psicoemocionais e criam dependência por questões fisiológicas. O que existe é um fator genético de predisposição ao consumo excessivo de álcool. Em outras palavras, geneticamente, ninguém tem compulsão para a bebida - ou, como escreveu a revista americana US News & World Report, 'nenhum gene pode fazer com que você compre uma garrafa de uísque, a verta num copo e a tome toda' -, mas com o passar do tempo a pessoa com predisposição genética cria tolerância ao álcool. Ela costuma ser fatal: o jovem que faz sucesso nas rodas da noite por sua capacidade de beber muito, sem ficar embriagado, é o mais forte candidato a alcoólatra de amanhã. Do ponto de vista do diagnóstico de alcoolismo, porém, o que conta não é a quantidade de álcool ingerida, e sim o conjunto de sintomas que disso resulta. Winston Churchill, por exemplo, bebeu mais do que vários alcoólatras juntos ao longo de seus 90 anos de vida e foi considerado mero 'bebedor social'. Era mais conhecido por fumar charuto até na banheira. Por sorte sua, pesava perto de 100 quilos. Se um piloto de avião, magrinho, viesse a consumir um volume de bebida semelhante, provavelmente estaria internado - e demitido. A equação, no caso, é dada pela quantidade de álcool no sangue de cada um. Pelos critérios americanos, é considerado 'bebedor-problema' todo aquele que tiver mais de 100 miligramas de álcool em 100 mililitros de sangue. Tradução não literal: quatro ou mais doses de bebida, para um adulto de mais de 70 quilos. E o que deve ser chamado de 'dose'? Pelo padrão internacional, a dose, ou unidade, equivale a 12 gramas de álcool etílico. Isto é, um mísero copo de chope ou de vinho ou dois dedos de uísque, vodca ou cachaça.

Não é de hoje que a humanidade bebe - só no Antigo Testamento há mais de cinqüenta referências ao uso inadequado da bebida, a começar por Noé, que 'bebeu vinho e se embriagou'. E, de lá para cá, houve todo tipo de flutuação de consumo, dependendo da disponibilidade de água potável ou de fatores como a introdução do chá e do café a preços acessíveis. Neste final de século, a média mundial anda estagnada em torno de 10% da população mundial com problemas físicos, psicológicos ou sociais por beber, e nem a propaganda maciça nos meios de comunicação parece alterar significativamente esse padrão de consumo. A pesquisadora Ilana Pinsky, do Instituto de Psicologia da USP e co-autora, com o professor Ronaldo Laranjeira, do livro O Alcoolismo, analisou 2.107 comerciais de TV para a sua tese sobre propaganda e bebidas alcoólicas e constatou que há mais comerciais de bebidas alcoólicas na televisão brasileira do que de bebidas não alcoólicas, cigarros, medicamentos ou automóveis. E quando se analisam vinhetas, ou seja, comerciais curtos de no máximo cinco segundos de duração, bebidas alcoólicas lideram o ranking, à frente de outras categorias fortíssimas como serviços bancários e aparelhos domésticos. 'Hoje, a sociedade não faz outra coisa senão convidá-lo a beber. E, quando você faz parte dos 10% que se tornarão alcoólatras, ela simplesmente o rejeita', constata, com amargura, um empresário que chegou a cronometrar a velocidade do ônibus que passava em frente a sua casa para se jogar embaixo, no momento exato. 'Assim não seria suicídio, e sim atropelamento.' Paulo, que largou um emprego de vinte anos numa multinacional do petróleo para poder 'beber em paz', entende: 'Também cheguei a tentar o suicídio. Só que era fajuto. Peguei um punhal cego de abrir correspondência, escrevi uma carta sentimental de despedida, mas demorei tanto que acabei dormindo. Minha filha não se comoveu. No fundo, o alcoólatra quer ver o próprio enterro, com todo mundo chorando e com pena dele. Quer imaginar os amigos comentando, em volta do caixão, que, apesar de alcoólatra, ele era um grande sujeito'. Segundo uma pesquisa americana, um em cada quatro suicidas é alcoólatra. Na maioria dos casos, é um homem com mais de 35 anos de idade.
Historicamente, a bebida sempre foi usada com três objetivos básicos: alívio de angústias, contato com o sobrenatural e busca do prazer. Nisso se inclui, é claro, a mola mestra de quem se inicia na bebida - o seu efeito desinibidor, ferramenta para melhor socialização. Isso vale para indivíduos de qualquer idade, raça, sexo, futuros alcoólatras ou não. 'Talvez tenhamos uma potencialidade à adição', arrisca o psiquiatra Micelli. 'Segundo alguns trabalhos de antropologia que analisaram vestígios de plantas em múmias, o fato de o ser humano ter parado em algum sítio e se tornado sedentário ocorreu por ele ter entrado em contato com substâncias que modificam o estado mental.' Variações culturais à parte - Israel é o país onde se bebe menos, a França é campeã, e algumas raças orientais têm deficiência de enzimas que metabolizam o álcool -, uma coisa é certa: o álcool tem sido o método de intoxicação mais popular na cultura judaico-cristã. Ou, como alardeou Friedrich Nietzsche, no século passado, 'cristianismo e álcool são os nossos dois maiores narcóticos'.
Um dos motivos pelos quais o alcoolismo levou tanto tempo para ser incorporado às preocupações da medicina é que, ao contrário da diabete ou da hipertensão, ele é falsamente associado a prazer. Os bêbados consagrados pela literatura, cinema e artes em geral sempre pareceram invejáveis demais para ser considerados doentes. 'Nenhum ser humano, nenhum poema ou música, nenhum livro ou pintura pode substituir o álcool no seu poder de dar ao homem a ilusão de criar', escreveu a francesa Marguerite Duras. 'A natureza deu-nos a embriaguez natural do sono, mas oito horas de sono não bastam. É preciso estar bêbado de todas as mentiras vitais', ensinou Paulo Mendes de Campos, na antológica crônica Por Que Bebemos Tanto Assim. 'O melhor da vida está na intoxicação', proclamava lorde Byron, o romântico dos românticos. E, mais de um século depois, o escritor Ernest Hemingway emendava: 'A vida é uma opressão mecânica, e a bebida, o único alívio'. Já na vida real, a intimidade com o álcool é tudo, menos criativa. Richard Burton, o magistral ator de teatro e cinema que imortalizou uma galeria de beberrões com problemas, era, ele próprio, alcoólatra. Mas jamais conseguiu interpretar nenhum deles quando estava alcoolizado. 'Eu tinha de estar sóbrio para ser convincente no papel do bêbado.'
Na vida real, o que sobra para o alcoólatra é o deprimente papel de bobo da corte. 'Ele pensa que está se divertindo, mas na verdade está apenas divertindo os outros', observa Helena, que já passou pelo amargor de ver o marido, empresário, numa festa a rigor, engatinhando no meio do salão, de smoking, tentando morder o cachorro da casa. Na vida real, a celebrada voz rouca de Ângela Rô Rô não encanta - seus vizinhos a vêem, de vez em quando, seminua, pelos corredores do edifício em que mora. Na vida real, o genial Zeca Pagodinho acorda num quarto de hotel, em Nova York, ensangüentado. Pergunta à esposa se ela 'está num daqueles dias', leva a maior bronca e só então percebe que tinha decepado o pedaço de um dedo da mão, sem lembrar como. Na vida real, o empresário e artista plástico paulista Antônio Maschio, hoje abstêmio e pacato morador da cidade histórica de Tiradentes, foi encontrado embaixo de um carro, à saída de uma festa, soluçando pela morte de Elis Regina - que ocorrera vários anos antes. Na vida real, Walter Clark esbarrou num amigo freqüentador dos Alcoólicos Anônimos, no restaurante Plataforma, do Rio de Janeiro, dez dias antes de morrer. Combinaram de se encontrar. 'Mas não é para falar de AA, é?', esquivou-se. Saiu curvo, andando com dificuldade. Foi atropelado dias depois, alcoolizado.
O médico psiquiatra Luiz Renato Carazzai, de 37 anos, formado pela Universidade Federal do Paraná e estudioso de ponta de dependências químicas, explica como tudo começa. 'O bebedor normal, social ou moderado, é aquele que bebe menos do que o necessário para ter problemas médicos, sociais ou psicológicos. No Brasil, 82% da população adulta se enquadra nessa faixa. Desses, uma média de 30% vai desenvolver algum tipo de problema - gastrite, úlcera, problemas sociais, legais, ocupacionais, brigas, separação, violência. Mais da metade dos acidentes de trânsito, por exemplo, está ligada ao consumo de álcool. Nas delegacias da mulher, 87% das agressões também. Na área profissional, o álcool é responsável por um absenteísmo galopante - nas segundas-feiras e após dias de pagamento ou feriados, quem bebe falta dez vezes mais do que os demais funcionários. A produtividade é 20% menor e o índice de erro, bem maior. São os chamados ‘bebedores-problema’, que abusam do álcool em vários momentos. Desses, é consenso mundial que 10% se tornarão dependentes.'
Para descrever a ladeira abaixo da dependência, Carazzai costuma contar a parábola da idade regressiva. É uma seqüência humilhante, que parte de um alcoólatra de 40 anos de idade. Quando ele começa a beber, tem comportamento de um jovem de 20: tudo é nota 10, tudo é festa, tudo é ótimo. Se continuar bebendo, comporta-se como se tivesse 15: tudo está ótimo, com a condição de que seja do jeito dele. Ao beber mais um pouco, baixa para no máximo 5 anos de idade: tudo está ótimo, do jeito dele, mas tem de ser na hora em que ele quer - não pode esperar nem dez minutos. A etapa seguinte é a regressão para os 2 anos: deixa de se preocupar com a aparência, não toma banho, não se importa com a roupa. Por fim, quando perde o controle dos esfíncteres, cai da cama,  machuca-se, lembra um bebê de meses de idade. Obviamente, ele percebe não estar bem. Começa a culpa, surge o sintoma da negação.
Mesmo com hálito alcoólico, dirá que não bebeu nada. Mesmo que totalmente embriagado, dirá que só tomou uma cervejinha. Começa a construir desculpas racionais. 'Fui a um jogo com amigos', 'até bebo, mas só em festa.' Passa a marcar reuniões em casa, faz churrascos nos fins de semana, rodeia-se intensamente de amigos, porque, se ele beber sozinho, dará muito na vista. Por fim, admite que bebe, mas por ter problemas - 'não agüento mais minha mulher', 'o chefe é um cretino', 'falta dinheiro', 'o meu time perdeu'. Está completamente atolado na necessidade orgânica da bebida - um mecanismo psicossocial faz com que beba, e um mecanismo fisiológico o impede de parar de beber. O corpo do alcoólatra passa a depender de bebida quase tanto quanto de oxigênio ou comida. Ronaldo lembra-se da solidão: 'Cheguei a ponto de comprar a companhia de pessoas da rua, de qualquer classe social, para sentar comigo nos bares. Você começa a se sentir sozinho, marginalizado da sua sociedade, e procura qualquer companheiro de copo'.

Ao entrar no organismo humano, o álcool vai direto para o sangue. De lá, migra para o fígado, onde é metabolizado, e para o cérebro. Quando o fígado não consegue desintoxicar-se por inteiro, produz-se a ressaca. E quando é alta a quantidade de álcool que vai para o cérebro, sem passar pelo metabolismo, vem o porre - o comportamento do alcoólatra fica intoxicado. 'Cientificamente', explica o carioca Marcos Micelli, 'o porre ocasional não pode ser considerado alcoolismo, embora o bebedor que se embriague com alguma freqüência seja forte candidato a ter problemas com bebida alcoólica. No fundo, qualquer padrão de uso que não pode ser diminuído é sinal vermelho, inclusive o porrista de seis em seis meses.' O produtor de vinho da França, por exemplo, bebe regularmente, mas nunca se fez a experiência de lhe cortar o vinho diário. E chamá-lo de alcoólatra seria considerado atentado à soberania gaulesa. Animado com o fato de que pequenas doses de vinho fazem bem às coronárias, o francês acaba embaralhando quantidades. No Brasil, faz-se o mesmo préjulgamento em relação à cerveja - não é ela que faz mal, e sim a cachaça, cuja concentração de álcool é dez vezes maior. Melhor não se enganar. Uma pessoa que deixa de beber pinga e passa para a cerveja, na suposição de que com isso está diminuindo sua alcoolatria, ou dominando melhor a sua compulsão, na verdade está apenas trocando de bebida. A dependência do alcoólatra se constrói em cima do que ele já bebeu, não do que ele passa a consumir. Em consumo per capita, aliás, o Brasil ostenta uma sobriedade surpreendente: 50 litros de cerveja por ano, em 1996, contra 90 litros nos Estados Unidos e a enxurrada de 170 litros por ano por habitante checo. No ramo dos destilados, os dados são mais suspeitos. Segundo as estatísticas, o Brasil estaria num bem-comportado 28º lugar - mas nessa conta não está computada toda a produção clandestina de cachaça, em alambiques de fundo de quintal.  
Luiz Renato Carazzai, que está fazendo um levantamento pioneiro sobre quando, e como, o dependente busca tratamento, vem observando uma mudança animadora. Vinte anos atrás, o brasileiro procurava ajuda por volta dos 55 anos, com o quadro já grave. Hoje, as clínicas recebem pessoas de 30, 40 e 50 anos, que chegam menos castigadas, permitindo uma condição de recuperação e sobrevida maior. A detecção melhorou porque a sociedade passou a reconhecer com mais segurança que alcoolismo é o problema-causa, e não a conseqüência de outros problemas. Também se avançou bastante no aperfeiçoamento da farmacologia para tratar dos sintomas mais agudos da abstinência - hoje, já se consegue perceber em qual área do cérebro um ou outro medicamento vai surtir o efeito mais preciso. Mas, atenção: remédios antidepressivos não curam alcoolismo, apenas a doença paralela.
Curiosamente, a média internacional de recuperação de alcoólatras tende a ser fixa, independentemente do método utilizado - em torno de 20%. O que varia são os critérios para considerar alguém recuperado. O mais gabaritado estudo sobre transplantes de fígado, que vem do Canadá, considera uma abstinência de seis meses suficiente para a realização da cirurgia em condições ideais - ou seja, com 80% de resultados positivos. No Brasil, o maior centro de excelência de transplantes, a Unidade de Fígado do Hospital das Clínicas de São Paulo, segue o mesmo critério. De resto, um ano de abstinência pode ser considerado cientificamente bom, quando sujeito à reavaliação. Segundo um estudo americano, no entando, psicólogos, psiquiatras e familiares de alcoólatras costumam trabalhar com pelo menos dois anos para garantir a plena reinserção social do doente. Quanto aos alcoólicos anônimos, são os mais radicais: consideram que uma vez alcoólatra, sempre alcoólatra. O que muda é o doente estar ou não 'na ativa', como dizem. Os especialistas sustentam que tratamentos baseados na redução gradual do consumo de álcool não são eficazes. 'Se eu der menos, não supre a necessidade do alcoólatra. O tratamento recomendado é parar de beber, tapar a garrafa, ponto', garante Carazzai. O estudo longitudinal do americano George Vaillant dá-lhe razão - no grupo que estudou por quatro décadas, o retorno ao consumo 'social' e controlado se revelou exceção.
Segundo os especialistas, a recaída ocorre, emocionalmente, muito antes de ela acontecer de fato. O alcoólatra começa a se mostrar mais irritado, mais agressivo. Tudo o incomoda. Parece estar faltando algo na vida dele. Ele vai criando armadilhas para si próprio, e vai-se encurralando. O período de maior turbulência se estende dos seis meses aos três primeiros anos de abstinência, justamente quando ele começa a relaxar, achar que está muito bem, que não precisa ser mais tão assíduo nas reuniões do AA ou no consultório médico. 'Nossa doença é cruel e traiçoeira', comenta um veterano. 'Você não dá um passo sem ser convidado a beber. Toda esquina tem um botequim aberto. Na televisão, os anúncios mais sedutores são os de bebida. Nos restaurantes, a primeira pergunta do garçom é o que você vai beber.' Vinte anos atrás, o economista John Kenneth Galbraith já se espantava com o fato de que, nos Estados Unidos, a maioria dos negócios era fechada ou por telefone ou 'com participação de bebida alcoólica - e, freqüentemente, em condições de intoxicação avançada'. Hoje, o governo americano gasta um total de 200 milhões de dólares ao ano em pesquisas e campanhas de educação contra  o alcoolismo, enquanto a indústria do setor gasta dez vezes mais em publicidade - 2 bilhões de dólares. No Brasil, segundo dados do Ministério da Fazenda, a arrecadação do governo com bebidas chegou a 1,8 bilhão de reais - mais do que o lucro líquido em 1995 da Telebrás, Petrobrás e Vale do Rio Doce somadas. Em contrapartida, no currículo de seis anos de medicina, apenas seis horas de aula versam sobre alcoolismo.

Na semana passada, o Senai de São Paulo entrou na arena distribuindo uma ferramenta útil em sessenta de suas escolas e centros de treinamento: um CD-ROM pioneiro, intitulado Umas e Outras, com linguagem clara e direta, para seus alunos adolescentes. Ótimo, uma vez que apenas 5% dos adolescentes brasileiros acreditam que o álcool seja uma droga. No jovem, a iniciação à bebida costuma ser bem mais suave do que ao cigarro - pesquisas mostram que a primeira tragada costuma ser um desprazer. Provoca certa dor de cabeça, tontura, e o próprio gosto do cigarro faz com que, em média, o jovem leve de três a seis meses para gostar de fumar. Com o álcool, a adesão é mais imediata. No momento em que o jovem coloca álcool em seu organismo, ele se sente mais tranqüilo, mais solto, mais enturmado. E, quanto maior o potencial de prazer da droga, maior o risco de dependência. Hoje, a garotada começa a beber entre os 12 e os 13 anos de idade, ao passo que, cinco ou dez anos atrás, a iniciação se dava entre 14 e 15 anos, em média. No Brasil, há clubes de dança que nem sequer servem água, e uma coisa vai puxando a outra: a experimentação com drogas, entre jovens que bebem pesado, passa a ser regra, não exceção. Um estudo com 320 pacientes revelou que o alcoólatra 'puro' está em extinção. Alarmada, a maioria dos pais tende a passar por cima das cervejas dos filhos para se concentrar no impacto das drogas. Em termos de prioridade, eles podem ter razão, pois são raros os casos de adolescentes alcoólatras. Como explica o psiquiatra gaúcho Paulo Knapp, autor do livro Prevenção da Recaída, enquanto o processo de dependência psicológica da cocaína pode ocorrer em dez semanas, e o da maconha, em dez meses, a dependência do álcool exige pelo menos dez anos de uso constante. No final das contas, porém, a agressão ao organismo e o desperdício de vida acabam sendo iguais. 
O capixaba Valério, de 53 anos, já passou por tudo isso. De boina preta, bigode albino e um kit chimarrão que o acompanhou durante toda a estada no Rio, despediu-se com entusiasmo da tribo do AA. Valeu a pena pagar 10 reais por mês, durante dois anos, para poder participar do encontro no Riocentro. Saiu de Xanxerê, em Santa Catarina, num ônibus fretado, com outros 26 alcoólatras de cinco municípios vizinhos, e estava de sacola pronta para voltar. 'Sou eletricista e só fiz o primário, mas aprendi no AA o que não aprendi na escola. Dessa faculdade eu não quero buscar o diploma.' Está há sete anos sem beber.
* Ao longo da reportagem, nenhum entrevistado dos Alcoólicos Anônimos foi identificado por completo

Como funciona o AA
A receita de auto-ajuda inventada 62 anos atrás, na cidade de Akron, Estado de Ohio, por um corretor da bolsa e um médico - ambos alcoólatras - é um achado. No rastro de sua eficácia, pipocaram primos próximos como os mais de 100 grupos calcados nos mesmos princípios - do Tabagistas Anônimos ao Drogaditos Anônimos. Sem falar nos dois filhotes diretos: o Alanon, voltado exclusivamente a familiares de alcoólatras (pais, cônjuges, irmãos que não sabem o que fazer), e o Alateen, para filhos e jovens dependentes de bebida. Para a ciência, não foi fácil admitir a taxa de sucesso de uma organização que se intitula 'irmandade', tem forte conteúdo de espiritualidade, não faz pesquisa nem tem estatísticas, não aceita doações nem tem patrimônio de espécie alguma - vive de contribuições próprias. De fato, não deve ser fácil para um profissional que levou seis anos para se formar em medicina cruzar com um tal de AA, cuja cartilha de doze passos de recuperação dá bons resultados. Vinte anos atrás, quando o alcoólatra Paulo já tinha passado por seis tipos de tentativa de tratamento - inclusive eletrochoque -, acabou batendo no consultório de um médico carioca de renome. Foi-lhe recomendada a auto-internação, sempre que julgasse necessário. Paulo achou esplêndido. Internava-se no sanatório como se estivesse entrando num hotel, com sua garrafa de Johnny Walker dentro da maleta executiva. Tinha quarto cativo, bebia toda a noite e podia alardear que estava em tratamento. Como piorasse, perguntou se não havia outra saída. 'Se o senhor morasse nos Estados Unidos, eu recomendaria o AA', disse-lhe o clínico, 'mas aqui no Brasil só tem pé-de-chinelo.' Paulo gostou da resposta, pois não se considerava um pé-de-chinelo - era um bem-sucedido empresário. Anos depois, num congresso anual do AA, reencontrou o mesmo médico. Era um dos conferencistas, com passagem e estada pagas pela entidade. E Paulo, um dos alcoólatras em recuperação da platéia. 'O senhor por aqui?', espantou-se o médico. 'E o senhor por aqui?', devolveu Paulo.
Na época da ditadura, polícia e militares suspeitavam feio daquela gente. 'Nos reuníamos na Rua Direita, no centro de São Paulo, e a polícia achava que éramos comunistas porque nos tratávamos de ‘camarada’. Queriam saber o que fazíamos nas reuniões', lembra Melinho. Ao ser fundado um primeiro grupo em Petrópolis, Estado do Rio, a reunião foi feita de pé e sem acender as luzes da sala para não chamar a atenção. Hoje, no Brasil, existem 5133 grupos (o maior contingente está em Minas Gerais), com um número aproximado de 95000 membros. Como tudo no AA, trata-se de mera estimativa, já que não existe ficha de inscrição, nem mensalidade, nem caderno de presença. O que existem são fichas de plástico de cores variadas, que fazem as vezes de medalhas de sobriedade. Quem quer se apresenta, diz que está há xis tempo sem beber e ganha sua 'medalha' colorida. No AA, a palavra do alcoólatra conta, e isso vale ouro para ele. Fora dali, está habituado a ser olhado com suspeição, dúvida e decepção pela família, pelos amigos e pelos médicos. 'Não medimos quanto o outro bebe - cada um sabe do seu beber', diz Ronaldo.
Cinco e meia da tarde de uma terça-feira recente. Décimo andar do número 435 da Avenida Nossa Senhora de Copacabana, quase esquina com a República do Peru, sede do maior grupo de AA da América Latina. São perto de 400 freqüentadores, espalhados por seis salas alugadas. Alguns vêm por indicação de parentes, amigos, médicos, companheiros de bebedeira ou por consulta à lista telefônica - o AA costuma estar logo na primeira página, lá em cima. Vêm desde porteiros humildes carregando saco de plástico das Casas da Banha até executivos com carro importado e motorista. O local fica aberto das 10 da manhã às 10 da noite, não fecha em feriado nem fim de semana, Natal ou Ano-Novo e oferece inclusive duas reuniões em língua inglesa. Cada reunião tem horário rigoroso para começar e terminar, e vigora a disciplina do 'eu falo, você escuta, depois eu sento, você é chamado e eu escuto'. Entra quem quer e, se não quiser abrir a boca, só ouve. Pode ir embora no meio. Ninguém vai perguntar nada. As salas se assemelham a salas de aula, com cadeiras de plástico voltadas para o que seria a mesa do professor. Só que na cabeceira está sentado outro alcoólico. Fumantes sentam-se à direita, não fumantes à esquerda. No lugar do quadro-negro, a lista dos 'doze passos' (que ensinam a readquirir um bom relacionamento consigo mesmo), das 'doze tradições' (que ensinam boas relações com os outros dentro do AA) e dos doze 'conceitos gerais' (que visam melhorar o relacionamento do alcoólatra com o mundo). Na parede, um luminoso pisca com os dizeres 'Evite o primeiro gole'.
Numa reunião típica de duas horas de duração, o primeiro a falar foi um uruguaio de sandália e bermudão. Estava de passagem pelo Brasil e foi recalibrar-se nos ensinamentos do AA: 'Para nosotros borrachos es todo igual'. Seguem-se a moreninha Lúcia, há dois anos sem beber, e o veterano Luizinho, abstêmio há 25 anos. Levanta Roberto, meia-idade e terno risca de giz. Está em recuperação há sete anos. 'Continuo gostando do cheiro, do gosto, do efeito, do poder de ser agressivo e prepotente', admite. Chegou a passar três meses em estado de coma, mas ao sair do hospital com 100 pontos no corpo foi festejar no bar da esquina. 'Evite locais de ativa', recomenda. Sentada a seu lado, na primeira fila, está Patrícia, de 23 anos. Esguia, sapato de plataforma da moda, mochila nas costas e andar de modelo, ouve tudo, calada. 'Estou confusa. Tem uma consciência que me diz para ir em frente, e outra que não me deixa ir em frente. Vou pensar.' 'Apenas 10% ficam', esclarece Ronaldo.
O AA trabalha com um autodiagnóstico em forma de doze perguntas, deliberadamente redigidas na primeira pessoa:
• Já tentei parar de beber por uma semana mais ou menos, e não consegui?
• Já desejei que pessoas parassem de falar sobre como ando bebendo?
• Já mudei de bebida para tentar não me embriagar?
• Alguma vez precisei beber de manhã para começar o dia?
• Invejo pessoas que podem beber sem se meter em encrencas?
• A minha maneira de beber traz problemas em casa?
• A minha maneira de beber causa problemas com outras pessoas?
• Tento conseguir doses extras de bebida?
• Já tentei parar de beber, mas continuei me embriagando?
• Já faltei a compromissos por causa da bebida?
• Tenho 'apagamentos' - momentos dos quais não me lembro?
• Minha vida seria melhor se parasse de beber?
Segundo a cartilha, quem responder afirmativamente a quatro ou mais perguntas deve procurar ajuda.
A ferocidade com que o AA defende o anonimato de quem o procura está na raiz de seu sucesso. O próprio co-fundador da entidade, Bill Wilson, a quem o escritor Aldous Huxley chamou de 'maior arquiteto social de nossos tempos', só teve o anonimato quebrado após morrer, em 1971. Tivesse Garrincha podido passar despercebido nas vezes em que conseguiu arrastar-se até um AA, o seu curso talvez fosse outro. Quando a notoriedade do alcoólatra o impede de procurar ajuda anônima - alguém imagina uma Xuxa, o ministro Sergio Motta ou Ronaldinho conseguindo freqüentar normalmente um grupo desses? -, tentam-se outras fórmulas. Já houve grupos rigorosamente secretos, reunindo apenas pessoas de grande projeção nacional. Não deram muito certo. A homogeneidade, seja social, etária, cultural ou financeira, acaba emaciando a riqueza da proposta de auto-ajuda entre pessoas que jamais se encontrariam fora do AA. Sangue novo também é vital. 'Você depende daquele que está ingressando, senão esquece como você era ontem', explica Fabão. 'E quem chega depende de você. Essa troca é vital.'
No mundo do AA não há espaço para nenhum assunto não relacionado a alcoolismo. Literalmente nenhum - nem futebol, nem os escândalos de Brasília, nem a vitória de Deep Blue sobre Kasparov. Um coordenador do Grupo Rio de Janeiro conta que, durante a última Copa do Mundo, instalou um aparelho de televisão numa das salas de reunião. Foi um desastre - quem vai até o AA quer parar de beber, não ver jogo de futebol. Futebol ele vê em casa.
No grupo da favela Vila São Jorge, perto de Irajá, no Rio - também conhecida como favela Paga-Pedro -, não é diferente. Numa sala cedida pela associação dos moradores, as reuniões se fazem a portas abertas, com a criançada correndo no chão de terra batida. A alma e fundadora do grupo é Conceição, de 35 anos, que esclarece a diferença entre seus três filhos: a mais velha é 'fruto do álcool' - foi alcoolizada por Conceição com cerveja e açúcar, aos 3 anos, para parar de pedir comida - e os dois menores já são 'filhos da sobriedade'. Dos quase quarenta presentes a uma reunião recente, metade quis levantar e falar de si. João, trabalhador de meia-idade, estava satisfeito: 'Sei o que fiz hoje, sei o que fiz ontem e acho que sei o que vou fazer amanhã'. Aline, a bonitona, estava aliviada: 'Hoje tenho amigos. Não me chamam mais de safada'. Edson, que perdera uma vista e o duodeno para o álcool, comemorava: 'Hoje tenho dois filhos que me amam. É o meu maior orgulho'. Miltinho contou das dívidas pesadas. 'Estou no meio da tempestade.' Acha que é responsável pelo fato de a filha ter síndrome de pânico e a mulher tremer e não falar com ninguém. Vovô Bidu, de 87 anos, trouxe o genro, Manoel Bidu, que estava arrasado - tivera uma recaída. 'Levei oito meses de fé, estava indo bem. Minha mulher perdeu dois dias de trabalho para cuidar de mim, e o sogro agüentando. Pedi para vir, mas a gente até perde a fisionomia de falar.' O coordenador da sessão daquele dia, um funcionário de estatal de nível médio que já morou em banco de praça e albergue, sabia o que dizer: 'Continuamos te esperando. A tua cadeira está sempre aí'.

Um mundo à parte
Existe um 'comportamento típico' de alcoólatra? Não. Mas das dezenas de depoimentos colhidos por VEJA algumas manias, atitudes, síndromes ou situações emergiram com maior freqüência:
• Obsessão com o copo - O alcoólatra raramente o larga. Brinca com ele o tempo todo, mantém o contato físico. 'No meu caso', explica um veterano, 'o barman pode colocar dez daquelas varetinhas de mixar bebida, e eu jamais abriria mão de fazer girar o gelo do copo com o dedo. Provavelmente o tato é mais uma forma de participar da bebida. Além de bebê-la, quero tocá-la.'
• Sofreguidão ao beber - O alcoólatra não bebe com prazer, e sim para que o efeito comece logo. Prefere comer pouco enquanto bebe, para não diminuir o efeito da bebida. Se comer, a oxidação do álcool será maior, sua eliminação da corrente sanguínea, mais rápida, e o efeito, menor.
• Sono instável - Dorme pouco e o sono não é reparador.
• Comportamento autoritário - Passa a querer as coisas à sua maneira, com impaciência. Com o tempo, alcoolizado ou não, vai se tornando monossilábico, sem vontade de falar, sobretudo em casa.
• Percepção obliterada - Torna-se vulnerável a bajulações; facilmente enganado por sócios ou parceiros de trabalho.
• Medo de copo vazio - Numa festa, logo que surge uma bandeja cheia, o alcoólatra captura logo o seu copo. Passa o resto da noite vigiando os garçons. Para se garantir, freqüentemente distribui gorjetas desnecessárias.
• Isolamento - Só consegue confraternizar bebendo. Passa a não achar graça em amigos que não bebem. Começa a não gostar de gente.
• Negação permanente - O uísque, que passa a guardar no escritório, é 'para os clientes'. Acredita que ninguém percebe sua dependência da bebida.
• Planejamento obsessivo - Vive de olho no relógio e em estratagemas para não lhe faltar bebida. Quanto tempo ainda falta para a próxima dose? E para o almoço? Memoriza horários de fechamento dos bares que freqüenta, conhece as empresas aéreas mais liberais com bebida, investiga se os donos da casa aonde vai jantar servem bebida farta. Seu planejamento do dia é obsessivo.
• Roteiro próprio - Os anos de bebida levam o alcoólatra a se afastar de quem pode atrapalhá-lo: o chefe, a mulher, os filhos. A vida passa a ser uma sucessão de 'dane-se'. Meteu-se em briga de rua? Dane-se. A mulher saiu de casa? Dane-se. Bateu o carro? Dane-se.
• Soltando as amarras - Enquanto os filhos são pequenos e estão acordados, ainda procura dissimular. Quando adormecem, costuma soltar tudo, pois passou o dia controlando-se no trabalho. É o início da briga conjugal.
• Caloria pobre - A metabolização do álcool passa por uma substância chamada aldeído acético (a mesma encontrada na combustão de motores a álcool) e se transforma em glicose por um processo de transformação celular. Isso explica por que muitos alcoólatras que tomam cachaça e não comem nada ainda têm energia para continuar bebendo todos os dias. O álcool se transforma em caloria, mas em caloria pobre, sem proteína, sem gordura, sem nada. É uma energia que serve de sustento para a pessoa, mas não impede o corpo de ir-se consumindo.
• Lapsos de memória - Os 'apagamentos' em relação ao que fez ou aconteceu, enquanto esteve alcoolizado. É capaz de viajar, seduzir estranhos, discutir temas complexos e não lembrar-se de nada após a bebedeira. Pode acordar num quarto de hotel de outra cidade, ao lado de quem não conhece, sem saber como nem por que está ali. Fica aterrorizado e tenta recapitular - checa se seu carro está na garagem, se está batido. 'É como acordar de uma anestesia e ver um pedaço do seu corpo faltando', define um dos entrevistados.
• Impotência - Como já advertiu Shakespeare em Macbeth, 'o álcool provoca o desejo mas rouba a performance'. O homem alcoolizado tem dificuldades em alcançar a ereção ou ejacular. Em alguns casos, a impotência persiste nos períodos de sobriedade, levando o alcoólatra à paranóia conjugal: por toda parte vê indícios de infidelidade da esposa. Começa a chamá-la corriqueiramente de 'vagabunda' e 'p...'. A taxa de divórcio entre os que bebem é duas vezes maior que a verificada entre os que não bebem.

'Só por hoje'
Hoje, ao chegar para um almoço no restaurante Fiorentina, do Leblon, um dos templos cariocas de suas bebedeiras do passado, o doutor Glauco passa direto pelo bar cavernoso e sobe para o restaurante, no 1º andar. 'Drinques?', pergunta o garçom, automaticamente. Não, água mineral. Sua fala é menos tempestuosa do que nos tempos em que foi um dos grandes empresários nacionais. Durante duas décadas, foi assíduo freqüentador do poder e privou da intimidade de dois presidentes da República. Hoje, esse gaúcho de 66 anos trabalha num dos endereços mais cobiçados do Rio de Janeiro. Poucos conhecem a sua biografia de alcoólatra que chegou ao fundo do poço, foi bater na porta dos Alcoólicos Anônimos e se reergueu. O doutor Glauco é um sobrevivente.

Jamais conseguirei transmitir a quem não bebe o que é a sensação de acordar às 4 horas da madrugada, olhar-se no espelho, ver suas feições alteradas, pedindo a Deus para não beber. De repente, você sente a garrafa escondida no banheiro, escondida em todos os locais da casa por você mesmo, atrás de caixas de material de limpeza, nos lugares mais absurdos. Trêmulo, você a acha e traz para a pia, para se acalmar. Daí a um átimo de segundo o líquido está num copo. Mais um átimo e você tomou o copo inteiro. Você tem quatro filhos, topa morrer de acidente, mas não agüenta mais a morte sofrida, desesperadora do álcool. Ninguém, a não ser outro alcoólatra, pode entender o desespero de um cidadão que é capaz de ir até o seu carro, tirar um pouco de gasolina do tanque para beber, porque não achou nada melhor em casa.
Comecei a beber como todo garoto de 16, 17 anos. Um chopinho gostoso no final da tarde. Depois passei para quatro ou cinco, cortando de vez em quando com um trago mais forte. Aos sábados, era ótimo ficar embriagado para me sentir mais agradável, mais solto, capaz de chegar a qualquer ambiente. Aquilo foi se tornando uma necessidade - para freqüentar um ambiente, eu precisava de bebida. Em casa, quando chegava alguém que eu não conhecia bem, bebia para me tornar espirituoso, para impressioná-lo bem. De vez em quando vinha um porrezinho mais pesado, mas não me preocupava - era tudo muito prazeroso.
Na fase II, você ainda não está bebendo de manhã, mas está fazendo do almoço de negócios o seu trampolim. Lembro que, de início, eu criticava obsessivamente os amigos que pediam um aperitivo na hora do almoço. Dez anos mais tarde, parafraseando aquele anúncio de vodca ‘Eu sou você amanhã’, eu era eu amanhã: já estava tomando aperitivo, de estímulo ao apetite. Era ótimo. Em pouco tempo já eram três ou quatro doses antes do almoço, depois uma cerveja ou vinho com a refeição e, por que não?, um licorzinho depois do café. Eu voltava ao escritório às 3h30, 4 da tarde, meio no embalo, e quando tomava o primeiro uísque do fim do dia estava emendando. Na manhã seguinte, aguardava ansiosamente a hora do almoço.
A negação começa quando você sente que está perdendo o controle. Nessa fase, eu não admitia que ninguém, absolutamente ninguém, se atrevesse a fazer alguma referência ao meu hábito de beber. Como tantos alcoólatras, minha resistência à bebida era fenomenal. Poucas pessoas assistiram a um porre meu. Você dissimula e segura muito além do limite normal. Um grande amigo meu, ex-ministro de Estado, foi um dos poucos que me diziam ‘Pare de beber’. Mas como ele também bebia muito, só que não era alcoólatra, eu não lhe concedia a menor moral para me aconselhar. Nossa capacidade de dissimulação é formidável. Certa vez, por ocasião da inauguração da filial de uma empresa, participei de uma grande comitiva brasileira em visita a vários países da Ásia. Foram quinze dias de eventos sociais e profissionais intensos. Participei de todos e só dei um vexame público, ao ser revistado num dos aeroportos. Mas se alguém me perguntar como é Tóquio, onde ficamos quatro dias, não poderei responder nada: está tudo apagado, não sei o que fiz, não me lembro de nada. Nada.
Também cheguei a ficar trancado num apartamento do anexo do Copacabana Palace por três dias. Sem comer. Só bebendo. Uma amiga tinha conseguido enfiar-me num vôo da ponte aérea em São Paulo a duras penas - já com cartão de embarque na mão, eu me recusei a entrar em uns quatro vôos anteriores, sempre para beber um penúltimo. Sei que saí nu pelos corredores do hotel umas duas ou três vezes, e só não fui expulso porque era um empresário de destaque, conhecido da casa. E simplesmente não me lembro do final da Copa do Mundo de 1982, na Espanha, onde eu me encontrava como convidado de uma emissora de TV. Tranquei-me na minha suíte do hotel, bebi dois frigobares inteiros e entrei em pânico quando o serviço de quarto fechou. Se eu não tivesse encontrado bebida nas ruas de Madri, sei que teria bebido álcool de cozinha. (Nesse ponto do relato, levanta a voz rouca, ansioso para que a frase não se perca.) É essa loucura que precisa ser dita a alguém que compreenda. A família não pode compreender, o médico também não. Você precisa de ajuda qualificada - a do cara que sabe o que é aquilo. Em outras palavras, AA. É importantíssimo eu ver um porteiro de prédio, um sorveteiro ou um empresário vivendo a mesma insegurança que eu, e constatar que somos exatamente iguais no fundamental. Quem desemboca no AA está no fim da linha. Para a maioria que chega lá, o motivo é um só: eu não agüento mais isso. A proposta deles é simples e comovente: não beber só por um dia. Cheguei lá pensando em aprender os macetes e depois voltar a beber controladamente. Mas você vai ficando. E cada dia a mais são ‘mais 24 horas’. Os primeiros dias são terríveis. Eu não sabia fazer mais nada sem beber. Minha insegurança era total, minha instabilidade profissional e emocional, aguda. Tudo bem parar de beber só por hoje, mas e a vontade de amanhã, e depois de amanhã? O AA tem uma marca única: por pior que seja o caráter de um ou de outro indivíduo dentro do grupo, ele torce por você. Ele não quer que você beba, ele depende de você e você dele. A força do AA reside nisso.
Você conhece a Praça Antero de Quental, aquela logo ali? Eu costumava sentar-me num dos bancos da praça, às 8 da manhã, já alcoolizado, e observar o resto do mundo indo para o trabalho. Torturava-me com a pergunta que todos os alcoólatras se fazem: ‘Por que eles não precisam beber e eu preciso?’ Hoje sei que não há resposta conclusiva nem da medicina, nem da psiquiatria, nem da psicanálise. Recomendo partir do fato consumado: não sei por que sou alcoólatra, mas assumo que sou. Este é o primeiro passo dos AA, de grande sabedoria. Enquanto eu tiver isso como minha grande verdade, estou salvo. Parei de beber há doze anos, seis meses e quatro dias. Como todo AA, não esqueço a data: 23 de novembro de 1984. Cada dia são mais 24 horas.

'Entre quatro paredes'
Porte de atleta, imensos olhos azuis, cosmopolita, elegante e segura de si. Um mulherão, aos 59 anos de idade. Assim é Maria. Executiva da área de comunicação, acha importante relatar o que foi seu casamento de catorze anos e dois filhos com um alcoólatra. Milhões de brasileiros podem estar passando por um ou outro momento semelhante. No seu caso, a desagregação emocional, física, psicológica, moral e financeira foi de uma família de alta classe média. Filha de conceituado médico do Rio de Janeiro e educada no colégio Sion, Maria casou virgem, aos 18 anos, arrebatada por um engenheiro de 22, sedutor e viajado, que entendia de Europa, gastronomia e vinhos - nada a ver com os jovens cariocas daqueles anos 50. O casal saía muito, tomava pilequinho junto, nada de mais.

Aos três meses de casada, percebi que havia alguma coisa de errado: tínhamos ido a uma festa num desses apartamentos de luxo da Avenida Atlântica e ele tomou um porre de cair no salão. Me senti terrivelmente sozinha e insegura. Também ensaiou uma primeira violência comigo, verbal. Lembro que era um fim de semana, assustei-me e arrumei as malas. Ele ficou aterrado, pediu desculpas, fez juras, me amou, e acabei ficando. Essa seqüência se repetiria mais adiante. Alguns meses depois engravidei, tive meu primeiro filho, logo em seguida veio o segundo, e meu marido pareceu acalmar-se. Bebia muito, como todos os nossos amigos da época, mas sem maiores comprometimentos para sua ascensão econômica no ramo da indústria automotiva. Passamos a ter um padrão de vida muito alto.
A primeira vez em que me bateu tínhamos uns seis, sete anos de casados - os meninos estavam com 4 e 5 anos de idade. Tínhamos ido a mais uma festa, ele bebeu pesado e na volta para casa se descontrolou. Era um homem forte, sabia bater, e passei a ter medo físico dele. Mas só quando estávamos em casa. Em público, era o talentoso empresário de sempre. Tanto assim que, quando eu entrei naquela fase de dizer ‘você já bebeu muito’ e tirar a garrafa de perto dele, os amigos me censuravam. ‘Ele não está fazendo mal a ninguém’, diziam, ‘larga do pé dele.’ Ninguém sabia o que acontecia entre nossas quatro paredes. Nem meu pai nem minha mãe. Como contar a um pai que a adora que você apanha do marido? Também usei de todos os artifícios para que meus filhos não pressentissem a violência. É claro que percebiam que havia muita coisa errada na nossa relação. Estavam habituados ao comportamento não linear do pai, que tanto podia dar-lhes um safanão e ameaçar uma surra de cinto quanto, dez minutos depois, ajoelhar-se e pedir desculpas. Eu vivia nervosa. Comecei a fazer análise.
No dia de seu 33º aniversário - onze anos de casados - preparei uma festa-surpresa. Foi um pesadelo. Ele bebeu, se vomitou todo, foi verbalmente muito abusivo e me senti como no terceiro mês do nosso casamento: terrivelmente sozinha e humilhada. Insisti em quartos separados. Naturalmente, nossa vida sexual já tinha se esgotado havia muito tempo. Eu não suportava mais o cheiro de bebida. E quando ele caía na cama, caía mesmo. Não se furtava a me dizer que eu não servia ‘nem’ para fazer sexo. Ferida, certa vez rebati: ‘Podemos fazer um acordo pelo qual você vem ao meu quarto, eu abro as pernas, pego meu livro e você resolve o seu problema. Ou você quer ter-me inteira, numa relação de verdade?’ Pela primeira vez, depois daquele aniversário, ele se internou durante uma semana no Hospital Silvestre. Voltou desinchado, mais magro, mais amigo. Foi um dos melhores períodos que tivemos - ele deixou de beber por uns seis meses. Daí a esperança de que parasse. Fizemos uma ótima viagem à Europa e não tocávamos no assunto. Aliás, como é comum a alcoólatras, não se consegue conversar com eles. O bate-papo solto, descompromissado, fluido, não existe.
Na volta da viagem houve recaídas, mas, como ele conseguia parar uma semana, um mês, dois meses, eu achava que ele tinha o controle do seu alcoolismo. A chave está aí: querer acreditar que vai melhorar, que é só uma fase. O dia da minha última surra foi um sábado. Os meninos tinham ido ao Maracanã com o avô para ver o Botafogo e só voltariam no dia seguinte. Nessa noite, saímos para um compromisso social, no qual ele tomou três garrafas de Bourbon. Entrou no carro com uma aparência horrível, xingando-me pesado. Logo que alcançamos o elevador de nosso edifício, ameaçou me bater. Pela primeira vez em nossa relação eu reagi. ‘Nossos filhos não estão em casa. Se você tocar um dedo em mim, hoje, eu te mato.’ Fui para o meu quarto, comecei a tirar a roupa e não o vi entrar. Só senti o impacto do cinto nas minhas costas. Meu primeiro pavor foi cair no chão e levar um chute, algo assim. Consegui agarrar uma ânfora de ágata e comecei a golpear às cegas. Tive muita sorte de não tê-lo matado, acertando-o na têmpora. Com o homem que me havia arrebatado catorze anos atrás caído como um saco, em cima de um sofá, telefonei para o meu advogado. O desquite foi rápido.
Uma coisa para mim ficou absolutamente clara: se você abaixa a cabeça é muito pior. Enquanto você é paternalista, enquanto camufla, enquanto você se culpa por alguma participação no processo, você afunda junto. Ainda me lembro do pavor, logo após a nossa separação, de que ele refizesse a sua vida ao lado de uma mulher do mesmo nível sócio-cultural que eu, e deixasse de beber! Isso comprovaria, de forma definitiva, que a culpa de tudo tinha sido minha. Hoje, passados quase vinte anos, noto que ele continua cheirando a álcool - estivemos juntos recentemente, no batizado do nosso neto. Olho para ele com pesar. Meus filhos estão com 34 e 35 anos de idade, e ainda entro em pânico quando vejo um deles com um copo na mão. Não vigio, mas eles sabem que dói.

Os cinco anos de Lucas
Quando circula com a mãe pelos shopping centers de São Paulo, o menino Lucas, de 5 anos, consegue chamar a atenção mesmo em meio ao congestionamento humano dos finais de semana. Poderia estar em qualquer comercial infantil, daqueles que mostram crianças irresistivelmente espertas e doces. Encanta vendedoras, faz perguntas e observações desarmantes - seu teste de Q.I. confirma uma inteligência acima da média - e parece um hominho destemido. Até encontrar, por acaso, uma coleguinha de classe da pré-escola, acompanhada dos pais. 'Onde está o seu pai?', pergunta a menina. Lucas se encolhe e, com o olhar, suplica a ajuda da mãe. Sabe que não pode contar que quando saíram de casa, às 10 da manhã, o pai já estava bebendo. 'Ele está dormindo', socorre a mãe. São cúmplices - e náufragos.
Naquele sábado, véspera do feriadão de Tiradentes, quando mãe e filho retornaram a casa, num bairro de classe média de São Paulo, o pai de fato estava dormindo - mas no chão da cozinha, com o cachorro, que detesta, lambendo-lhe o rosto encharcado de cerveja. Prenúncio de um longo fim de semana de descida aos infernos, para toda a família. Lucas, que na semana anterior brilhava de orgulho porque 'o papai não bebe há cinco dias, não é, mamãe?', olha a figura do pai, que adora, em silêncio. Aprendeu a não falar, quando não há o que falar. Aprendeu a se esgueirar em sua própria casa, para não chamar a atenção na hora errada. Sabe que quando o pai acordar provavelmente vai chamar a mamãe de 'vagabunda'. Para a terapeuta, diz que não quer crescer. Pergunta por que o pai xinga a mãe e ela não faz nada. 'Ela também vai me abandonar?' Quando o pai o chamou de 'animal', Lucas escondeu a ferida. Mas, poucos dias depois, pegou vassoura, pá e toda a raiva acumulada e investiu contra as jardineiras compradas com o pai, 'quando ele estava bom', no quintal da casa. 'Papai falou que eu sou um animal, então sou um animal', dizia, aos soluços, enquanto chutava, arrancava e destruía cada girassol, margarida, onze-horas e cebolinha plantados a quatro mãos. Duas semanas mais tarde, nova reviravolta: num dia de felicidade desesperada, Lucas replantou tudo com o pai, que, inesperadamente, 'estava bom'. 'Olha, mamãe', prometeu a criança, radiante, 'vou crescer igual às plantinhas, vou estudar e não vou beber.'
Lucas e sua mãe, a secretária executiva Cleide, de 43 anos, têm as emoções e os nervos lanhados - não sabem se o pai/marido de hoje será 'o bom' ou o bêbado. Cada dia é um dia, não dá para prever. Tem sido assim, de forma progressiva, há cinco anos. O que mudou foram os intervalos entre os surtos de bebedeira - estão ficando cada vez mais curtos. Cleide mantém a convicção de que, se descobrir o motivo, saberá achar o remédio. 'Eu só preciso saber por quê, meu Deus. Qual a explicação, a causa? A gente era tão feliz, ele foi meu primeiro namorado, ele é uma pessoa sensacional, carinhosa e solidária quando não bebe', repete sempre. A idéia de uma separação a seco a atormenta - 'Não é fácil decidir o que fazer, acredite. Quem não vive essa situação pode achar um absurdo eu não levar o meu filho para longe. Mas quem me garante o que vai ser de Lucas, se ele achar que abandonamos o pai dele?'
Na superfície, a casa ainda funciona: Jairo, no papel de chefe da família, sai para o trabalho diariamente; Lucas, o filho único e idolatrado, é bom aluno, faz judô, terapia e natação; Cleide, como tantas outras mães, tem a dupla jornada de quem trabalha fora e cuida de tudo. No seu caso, tudo é tudo. Desde vestir o marido e tentar carregá-lo para a cama até se engalfinhar com o sócio desonesto que se aproveita da situação - alcoólatras são sempre presas dóceis para exploradores e falcatrueiros. Jairo foi esmigalhando seu físico e suas posses - era um pequeno empresário bem-sucedido na área de filtros industriais - e chafurda naquela que os especialistas chamam de 'fase do porco'. Não toma banho, os dentes vão apodrecendo precocemente, sente-se o pior dos homens.
A mãe de Lucas se equilibra num emaranhado de panos quentes com o marido. 'Quando ele bebe muito, evito olhá-lo de frente. Também concordo com todos os seus pontos de vista - mesmo que seja a favor da pena de morte, que abomino.' Sempre que sai com o filho lembra de guardar o comprovante do estacionamento ou de alguma compra para mostrar em casa, se necessário - o ciúme do alcoólatra é corrosivo. Zela para que não falte cerveja - 'Assim ele não bebe coisa mais forte'. Lucas observa tudo, e vai registrando. Rebela-se porque a mãe o proíbe de assistir a três fitas de vídeo seguidas, enquanto o pai, num acesso de bebedeira, pode encomendar uma dúzia de pizzas por telefone e não comer nenhuma inteira. Seis meses atrás, após presenciar uma cena particularmente abusiva e humilhante da mãe, o menino começou a defecar e urinar no chão de sua casa, no sofá, na escola. Passou a usar linguagem abusiva. Está começando a esquecer que alguma vez correu, brincou e bateu bola com o pai. Na semana passada, viu o pai sair para a rua, trôpego, e ser ridicularizado por um grupo de adolescentes do bairro. Observou a cena da janela, calado. Na manhã seguinte, envergonhado, encobriu o rostinho com a camiseta para ir à escola - como um marginal ou bandido que se esconde da televisão. Lucas tem 5 anos de idade. Até hoje jamais convidou um amiguinho para brincar com ele em sua casa. Segundo as estatísticas mundiais, ele tem quatro vezes mais chances de se tornar alcoólatra do que um filho de pai não alcoólatra.

Solidão oculta
Eu não gostava de ser vista em bar, como uma cachaceira qualquer. Por isso, comprava álcool e misturava com guaraná. Álcool não deixa marca no hálito', esclarece dona Tereza, mineira de Contagem, que neste ano completa 80 anos. Viúva miúda de andar firme, teve onze filhos (só três estão vivos, todos alcoólatras) e uma fileira de netos. Bebeu durante 38 anos, parou há vinte. No congresso do cinqüentenário do AA, no Rio, acompanhou uma dúzia de debates, inclusive o concorrido 'Sexo e alcoolismo'.
'Hoje não compro nem vinagre - faço molho de salada com limão. Meu marido e eu brigávamos muito. O problema dele era mulher - outra cachaça. Comecei a beber depois de sete anos de separada. Eu morava sozinha, como moro até hoje. Na fase final, eu estava entornando litros de conhaque. Eu implorava para alguém me ouvir: ‘Virgem Maria, me socorre!’ Sou mulher recatada até hoje - não consigo trocar de roupa na frente de ninguém, nem fico só de camisola ou combinação. Mas, no dia em que deixei me levarem ao AA, minha nora teve de me dar banho, me lavar, me trocar. Que tristeza. Foi num domingo de Páscoa, dia da ressurreição. Levei uns quatro ou cinco meses para aceitar que eu era alcoólatra. A vergonha da mulher é maior.'
E a tolerância feminina à bebida, menor. A mulher metaboliza o álcool de forma diferente do homem - em termos de quantidade, de concentração de álcool no sangue e de acordo com o ciclo menstrual. À diferença fisiológica soma-se a maior freqüência com que a mulher está sob efeito de sedativos quando bebe. Há, também, a iniciação mais tardia na bebida - na idade da menopausa, ela chega ao estado de demência mais rapidamente do que se tivesse começado a beber aos 20 anos. Há, sobretudo, o pesado estigma social do alcoolismo feminino - como diz dona Tereza, 'a vergonha é maior'. Ou, como sentiu na pele Françoise Sagan, 'quando uma mulher bebe, é como se um animal estivesse bebendo. Uma mulher alcoólatra é um escárnio ao que há de divino em sua natureza'. Todo um abismo cultural separa a frase 'meu marido bebe' de 'minha esposa bebe'. É na solidão mais clandestina que a mulher se debruça sobre um copo. Segundo os especialistas, a diferença está até na hora de pedir ajuda. Quando o homem vai procurar tratamento, é por questões judiciárias ou profissionais - bateu o carro, perdeu o emprego. A mulher, por questões mais familiares, pessoais, afetivas. Não se sabe se, efetivamente, o número de mulheres alcoólatras triplicou em relação ao de homens, como indica pesquisa da OMS, ou se elas apenas estão buscando tratamento mais abertamente. Entre os anos 50 de 'Mamie' Eisenhower, a mulher do presidente dos Estados Unidos que passou a vida ocultando a alcoolatria - inclusive de si mesma -, e os anos 80 de Betty Ford, a primeira-dama dos Estados Unidos que se assumiu alcoólatra, se tratou e deu nome a uma das clínicas de reabilitação mais famosas, o mundo feminino ficou menos clandestino.

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