segunda-feira, 4 de março de 2013

47. E Riobaldo quase fala do amor




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 47).

E na noite Riobaldo se deixa pensar, descuidado de si.

Ao que, alforriado me achei. Deixei meu corpo querer Diadorim; minha alma? Eu tinha recordação do cheiro dele.Mesmo no escuro, assim, eu tinha aquele fino das feições, que eu não podia divulgar, mas lembrava, referido, na fantasia da idéia. Diadorim – mesmo o bravo guerreiro – ele era para tanto carinho: minha repentina vontade era beijar aquele perfume no pescoço: a lá, aonde se acabava e remansava a dureza do queixo, do rosto... Beleza – o que é? E o senhor me jure! Beleza, o formato do rosto de um: e que para outro pode ser decreto, é, para destino destinar... E eu tinha de gostar tramadamente assim, de Diadorim, e calar qualquer palavra. Ela fosse uma mulher, e àalta e desprezadora que sendo, eu me encorajava: no dizer paixão e no fazer – pegava, diminuía: ela no meio de meus braços! Mas, dois guerreiros, como é, como iam poder se gostar, mesmo em singela conversação – por detrás de tantos brios e armas? Mais em antes se matar, em luta, um o outro. E tudo impossível. Três tantos impossível, que eu descuidei, e falei. –... Meu bem, estivesse dia claro, e eu pudesse espiar a cor de seus olhos... –; o disse, vagável num esquecimento, assim como estivesse pensando somente, modo se diz um verso. Diadorim se pôs pra trás, só assustado. – O senhor não fala sério!ele rompeu e disse, se desprazendo. “O senhor” – que ele disse. Riu mamente. Arrepio como recaí em mim, furioso com meu patetear. – Não te ofendo, Mano. Sei que tu é corajoso... – eu disfarcei, afetando que tinha sido brinca de zombarias, recompondo o significado. Aí, e levantei, convidei para se andar. Eu queria airar um tanto. Diadorim me acompanhou.

A guerra estava ali, ao lado. E Riobaldo deixa-se escorregar no seu amor por Diadorim. Mas recua logo, frente a reação que vê. E convence a si mesmo que não era aquilo que havia dito, que o que sentia era amizade. Mas mesmo assim ele hesita. E diz sentir mais mesmo que amizade

Andamos. Mas, agora, eu já tinha demudado o meu sentir, que era por Diadorim uma amizade somente, rei-real, exata de forte, mesmo mais do que amizade. Essa simpatia que em mim, me aumentava. De tanto, que eu podia honestamente dizer a ele o meu bemquerer, constância da minha estimação.

Ele podia dizer do seu bem querer, mas não disse.

Não disse. Por que que não disse, foi porque o perigo da ocasião me invocou: achei que podia ser agouro, em véspera de guerra, a conversa afeiçoada assim. Diadorim – em que era que ele devia de estar pensando?; é o que eu não soube, não sei,  minha morte esta pergunta faço... Como certo é que só do semmais de coisas falamos, sem nenhuma expedição.

Riobaldo ainda sentirá saudade do que não disse a Diadorim. Porque temos vergonha de manifestar o amor? Porque quando encontramos um amigo, a muito tempo não visto, ao invés de perguntar “Ei, você é o fulano? Eu sou o beltrano, lembra?” costumamos desviar o olhar e fingimos não ver?

Drummond fazia diferente.
“Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não me veem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.”

Curiosamente, a maior parte das vezes não temos vergonha de manifestar nossa raiva e ressentimento, como temos de dizer a uma pessoa que gostamos dela.

E, tal como Riobaldo, acabamos saudosos.

Riobaldo vai dormir. E dorme muito, pois pouco havia dormido na noite anterior, procurando por Otacília.

Ao acordar seus homens vigias não lhe falam nenhuma novidade. Tudo parece estar tranquilo. Alguns chegam a pensar que os inimigos não virão. Mas Riobaldo pede a todos que fiquem atentos e vai, com suas armas a mão, tomar banho. E ouve tiros.

A guerra começou.

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