terça-feira, 26 de março de 2013

A condição poética



Como se tivesse em vez de olhos binóculos ao contrário, o mundo
se distancia e pessoas, árvores, ruas, tudo diminui, mas nada,
nada perde a clareza, fica mais denso.

Já tive antes momentos assim, escrevendo poemas; conheço então
a distância, a contemplação desinteressada, sei assumir
um eu que é não-eu, mas agora é sempre assim e me pergunto
o que significa isso, se entrei numa permanente condição poética.

As coisas difíceis antes, agora são fáceis, mas não sinto desejo
forte de transmiti-las por escrito.

Só agora estou sadio, e era doente, porque o meu tempo
galopava e afligia-me o medo do que viria. 

A cada momento o espetáculo do mundo é para mim de novo
surpreendente e tão cômico que não entendo como a literatura
podia querer dominá-lo.

Sentindo fisicamente, ao alcance da mão, cada momento, amanso
o sofrimento e não suplico a Deus que queira afastá-lo de mim:
por que o afastaria de mim se não o afasta dos outros?

Sonhei que me encontrava numa estreita borda sobre o oceano
onde se viam nadando enormes peixes marítimos.
Tive medo que, se olhasse, cairia. Virei então,
agarrei-me nas asperezas da parede rochosa,
e movendo-me lentamente, de costas para o mar, cheguei
a um lugar seguro.

Eu era impaciente e irritava-me a perda de tempo com coisas triviais
incluindo entre elas a faxina e a preparação da comida. Agora
corto com cuidado a cebola, espremo os limões, preparo
vários tipos de molho.
 
(Tradução de Ana Cristina César e Grazyna Drabik)

Czeslaw Milosz
Berkeley, 1978



Li pela primeira vez esse poema acho que em 1982, quando saiu no antigo Folhetim da Folha de São Paulo. Recém saído da adolescência, fiquei profundamente tocado, a ponto de guardá-lo por muitos anos. Foi o primeiro poema que guardei.

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