terça-feira, 5 de março de 2013

48. E é a guerra, e é a morte. E Riobaldo descobre o terrível segredo.




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 48)


Tiros!
Choque que levei – foi feito um trovão. Começou a se bradar.

E Riobaldo pula do seu banho no riacho. É a guerra.

Os gritos, tiros. Que foi, mesmo, que eu primeiro ouvi? Primeiro, dum pulo bruto, eu já estava lá, pegando minhas roupas, armado prestes. E vi o mundo fantasmo. A minha gente – bramando e avisando, e descarregando: e também se desabalando de lá, xamenxame de abelhas bravas. Mas, por quê? – eu desentendi; e tornei a entender, depressa demais: que o inimigo dera de se estourar, todo de-repentemente, da banda outra, lugar donde não devia de vir, nem ali possível de ser esperado. Eles eram quantidade. Cru e cru que avançavam, avançando, como que já iam tomar o Paredão, as casas na ponta do arraial. Estarreci.

Era a guerra. Os inimigos vieram de um lado imprevisto. E se aproximavam e matavam e cercavam a todos. Riobaldo se desespera. Mal se veste e sai correndo.

Não chego em tempo... Não adianta... Não
chego em tempo nenhum...

E ele vê seu pessoal tentando impedir o cerco. E se xinga de tonto, burro e idiota, por deixar perder sua ocasião. Mas mais uma vez nosso herói hesita. E pensa.

– “Tu não vai lá, tu é doido? Não adianta... Não vai, e deixa que eles mesmos uns e outros resolvam, porque agora eles começaram tudo errado e diferente, sem perfeição nenhuma, e tu não tem mais nada com isso, por causa que eles estragaram a guerra...” Assim ouvi, sussurro muito suave, vozinha mentindo de muito amiga minha. O meu medo? Não. Ah, não.

Mas aparece um colega e tira Riobaldo da divagação. E eles correm para os tiros. E lutam. Riobaldo se preocupa com Diadorim, queria que ele não se descuidasse. Mas é o amigo quem diz:

“Toma cautela, Riobaldo...” Diadorim se descabelou, bonitamente, o rosto dele se principiava dos olhos.

E com sua boa mira, muitos Riobaldo mata. Mas não sabe como escapa de morrer por outros.

Tudo ali era à maldição, as sementes de matar.

Muitos morrem. Mas o bando de Riobaldo consegue manter mais da metade do arraial. E o sobrado grande também, onde estava guardada a mulher do Hermógenes.

Diadorim fala pra Riobaldo ir pra lá, ajudar. Riobaldo resiste um pouco.

– “Aqui é que é meu dever, Diadorim. Por o mais perigoso...” – eu falei, muito alerta. Tudo que Diadorim aconselhasse, eu punha de remissa; a modo de que com pressentimentos.

Diadorim insiste. Parece mesmo querer proteger Riobaldo.

– “Tu vai, Riobaldo. Acolá no alto, é que o lugar de chefe. Com teu dever, pela pontaria mestra: que lá em riba, de lá tu mais alcança... Constante que, aqui, o negócio está garantido...” – ele disse, mansinho, de me persuadir.

E Riobaldo se convence. Acha mesmo que aquele sobrado é o local de um chefe comandar.

E sai rastejando. Mas dá uma paradinha.

Ainda virei, relanceando. Sempre queria ver Diadorim. O querer-bem da gente se despedindo feito um riso e soluço, nesse meio de vida.

E passa por muitos tiros, quase morre, mas entra no sobrado. Sobe ao segundo andar para melhor atirar das janelas. E começa a matar. A batalha já tinha umas duas horas.

E Riobaldo ainda sonha e imagina a conversa que teria tido na noite anterior, com Diadorim, se ele tivesse perguntado algo que não perguntou.

Mas, sobre uns assuntos assim, reponho, era que eu almejava ter perguntado a Diadorim, na véspera, de noite, conforme quando com ele passeei. Naquela hora, eu cismasse de perguntar a Diadorim:
– “Tu não acha que todo o mundo é doido? Que um só deixa de doido ser é em horas de sentir a completa coragem ou o amor? Ou em horas em que consegue rezar?”
Não indaguei. Mas eu sabia que Diadorim havia de me dar resposta: – “Joca Ramiro não era doido nenhum, Riobaldo; e ele, mataram...” Então, eu podia, revia: – “... Mas, porém, quando isto tudo findar, Diá, Di, então, quando eu casar, tu deve de vir viver em companhia com a gente, numa fazenda, em boa beira do Urucuia... O Urucuia, perto da barra, também tem belas troas de areia, e ilhas que forma, com verdes árvores debruçadas. E a lá se dão os pássaros: de todos os mesmos prazentes pássaros do Rio das Velhas, da saudade – jaburu e galinhol e garça-branca, a garçarosada que repassa em extensos no ar, feito vestido de mulher... E o manuelzinho-da-troa, que pisa e se desempenha tão catita – o manuelzinho não é mesmo de todos o passarinho lindo de mais amor?...”

E muitos tiros chegam. E telhas caem no chão da sala. Os colegas recuam e chamam Riobaldo. Mas ele permanece na janela, atirando. Suas mãos começam a tremer. E ele está com muita dor de cabeça. Acha que é sede. E são mais tiros, pipocando. E ele não se mexe do seu lugar.

Eu não estava caçando a morte – o senhor bem me entenda. Eu queria era a coragem maior. Macho com meu fuzil reiúno, dei salvas. Tive fechado o corpo? Quero que não; não pergunto. Não morri, e matei. E vi. Sem perigo de minha pessoa.

E Riobaldo se assusta com algo que muda lá embaixo. Os do Hermógenes estavam tomando a retaguarda da rua. Teme que eles vençam. Teme por todos. Mas seu bando aguenta, resiste. Riobaldo pensa em descer da casa para ajudar. Mas acha melhor ficar, que ali era o lugar do chefe. E manda seus dois companheiros descerem.

E meia hora depois chegam, de outra banda, outros companheiros que atacam os inimigos pelas costas.

De alegre ser, destampei tiro sobre tiro. A guerra, agora, tinha ficado enorme. O senhor supute: lado a lado, somando, derramavam de ser os trezentos e tantos – reinando ao estral de ser jagunços...

Riobaldo se entusiasma. E acha mesmo que não mais terá medo. Mas uma vozinha dentro de si ri dessa sua pretensão.

Nasci para ser. Esbarrando aquele momento, era eu, sobre vez, por todos, eu enorme, que era, o que mais alto se realçava. E conheci: oficio de destino meu, real, era o de não ter medo. Ter medo nenhum. Não tive! Não tivesse, e tudo se desmanchava delicado para distante de mim, pelo meu vencer: ilha em águas claras... Conheci. Enchi minha história. Até que, nisso, alguém se riu de mim, como que escutei. O que era um riso escondido, tão exato em mim, como o meu mesmo, atabafado. Donde desconfiei. Não pensei no que não queria pensar; e certifiquei que isso era idéia falsa próxima; e, então, eu ia denunciar nome, dar a cita: ... Satanão! Sujo!... e dele disse somentes – S... – Sertão... Sertão...

E a luta vai pra horas sem fim quando Riobaldo estranha uma quietude lá fora. O tiroteio tinha parado. E começa uma gritaria. E Riobaldo custa a entender o que acontecia. Estavam todos combinando jogar fora as armas de tiro e resolver tudo na faca, no punhal. Foram todos saindo pra rua e expondo suas laminas. De um lado Riobaldo vê Hermógenes, o cão. De outro, Diadorim. Riobaldo se desespera.

Querer mil gritar, e não pude, desmim de mim-mesmo, me tonteava, numas ânsias. E tinha o inferno daquela rua, para encurralar comprido... Tiraram minha voz.
Como vinham de lá e de lá, em contra-ranchos, a tomar armas, as cartucheiras de tiracol. Atirar eu pude? A breca torceu e lesou meus braços, estorvados. Pela espinha abaixo, eu suei em fio vertiginoso. (...)“ – eu me, em mim, gemi: alma que perdeu o corpo. O fuzil caiu de minhas mãos, que nem pude segurar com o queixo e com os peitos. Eu vi minhas agarras não valerem! Até que trespassei de horror, precipício branco.
Diadorim a vir – do topo da rua, punhal em mão, avançar – correndo amouco...
Ai, eles se vinham, cometer. Os trezentos passos. Como eu estava depravado a vivo, quedando. Eles todos, na fúria, tão animosamente. Menos eu! Arrepele que não prestava para tramandar uma ordem, gritar um conselho. Nem cochichar comigo pude. Boca se encheu de cuspes. Babei... Mas eles vinham, se avinham, num pé-de-vento, no desadoro, bramavam, se investiram... Ao que – fechou o fim e se fizeram. E eu arrevessei, na ânsia por um livramento... Quando quis rezar – e sóó um pensamento, como raio e raio, que em mim. Que o senhor sabe? Qual: ... o Diabo na rua, no meio do redemunho... O senhor soubesse... Diadorim – eu queria versegurar com os olhos... Escutei o medo claro nos meus dentes... O Hermógenes: desumano, dronho – nos cabelões da barba... Diadorim foi nele... Negaceou, com uma quebra de corpo, gambetou... E eles sanharam e baralharam, terçaram. De supetão... e só...

Sangue. Cortavam toucinho debaixo de couro humano, esfaqueavam carnes. Vi camisa de baetilha, e vi as costas de homem remando, no caminho para o chão, como corpo de porco sapecado e rapado... Sofri rezar, e não podia, num cambaleio. Ao ferreio, as facas, vermelhas, no embrulhável. A faca a faca, eles se cortaram até os suspensórios. ... O diabo na rua, no meio do redemunho... Assim, ah – mirei e vi – o claro claramente: ai Diadorim cravar e sangrar o Hermógenes... Ah, cravou – no vão – e ressurtiu o alto esguicho de sangue: porfiou para bem matar! Soluço que não pude, mar que eu queria um socorro de rezar uma palavra que fosse, bradada ou em muda; e secou: e só orvalhou em mim, por prestígios do arrebatado no momento, foi poder imaginar a minha Nossa- Senhora assentada no meio da igreja... Gole de consolo... Como lá embaixo era fel de morte, sem perdão nenhum. Que engoli vivo. Gemidos de todo ódio. Os urros... Como, de repente, não vi mais Diadorim! No céu, um pano de nuvens... Diadorim! Naquilo, eu então pude, no corte da dor: me mexi, mordi minha mão, de redoer, com ira de tudo... Subi os abismos... De mais longe, agora davam uns tiros, esses tiros vinham de profundas profundezas. Trespassei.
Eu estou depois das tempestades.

E Riobaldo desmaia. E acorda com seus homens chamando, jogando água no seu rosto. E Riobaldo sabe da terrível certeza.

Diadorim tinha morrido – mil-vezes-mente – para sempre de mim; e eu sabia, e não queria saber, meus olhos marejavam.
– “E a guerra?!” – eu disse.
– “Chefe, Chefe, ganhamos, que acabamos com eles!... João Goanhá e o Fafafa, com uns dos nossos, ainda seguiram perseguindo os restos, derradeira demão...” – João Concliz deu resposta. – “O Hermógenes está morto, remorto matado...” – quem falou foi o João Curiol. Morto... Remorto... O do Demo... Havia nenhum Hermógenes mais. Assim de certo resumido – do jeito de quem cravado com um rombo esfaqueante se sangra todo, no vão-do-pescoço: já ficou amarelo completo, oca de terra, semblante puxado escarnecente, como quem da gente se quer rir – cara sepultada... Um Hermógenes.

Todos explicavam a ele a triste vitoria. Chegam ainda os dois que ficaram pra trás, pra localizar sua noiva que por lá estaria. E chegam dizendo que foi engano, que não era ela não. Mas Riobaldo nem consegue prestar atenção direito. E pergunta.

– “Mortos, muitos?” –
“Demais...”

Trazem a mulher do Hermógenes e contam pra ela que ele morreu sangrando. E ela diz que tinha ódio do marido. Riobaldo estremece e tem que sentar. Ela então roga:

– Que trouxessem o corpo daquele rapaz moço, vistoso, o dos olhos muito verdes... Eu desguisei. Eu deixei minhas lágrimas virem, e ordenando: – “Traz Diadorim!” – conforme era. – “Gente, vamos trazer. Esse é o Reinaldo...” – o que o Alaripe disse. E eu parava ali, permeio o menino Guirigó e o cego Borromeu. – Ai,Jesus! – foi o que eu ouvi, dessas vozes deles.

E Riobaldo, desesperado.

Aquela Mulher não era má, de todo. Pelas lágrimas fortes que esquentavam meu rosto e salgavam minha boca, mas que já frias já rolavam. Diadorim, Diadorim, oh, ah, meus-buritizais levados de verdes... Buriti, do ouro da flor... E subiram as escadas com ele, em cima de mesa foi posto. Diadorim, Diadorim – será que amereci só por metade? Com meus molhados olhos não olhei bem – como que garças voavam... E que fossem campear velas ou tocha de cera, e acender altas fogueiras de boa lenha, em volta do escuro do arraial...
Sufoquei, numa estrangulação de dó. Constante o que a Mulher disse: carecia de se lavar e vestir o corpo. Piedade, como que ela mesma, embebendo toalha, limpou as faces de Diadorim, casca de tão grosso sangue, repisado. E a beleza dele permanecia, só permanecia, mais impossivelmente. Mesmo como jazendo assim, nesse pó de palidez, feito a coisa e máscara, sem gota nenhuma. Os olhos dele ficados para a gente ver. A cara economizada, a boca secada. Os cabelos com marca de duráveis... Não escrevo, não falo! – para assim não ser: não foi, não é, não fica sendo! Diadorim...

E todos saem e Riobaldo fica, com a mulher que vai limpar o corpo de Diadorim.

Eu dizendo que a Mulher ia lavar o corpo dele. Ela rezava rezas da Bahia. Mandou todo o mundo sair. Eu fiquei. E a Mulher abanou brandamente a cabeça, consoante deu um suspiro simples. Ela me mal-entendia. Não me mostrou de propósito o corpo. E disse...
Diadorim – nu de tudo. E ela disse:
– “A Deus dada. Pobrezinha...”
E disse. Eu conheci! Como em todo o tempo antes eu – não contei ao senhor – e mercê peço: – mas para o senhor divulgar comigo, a par, justo o travo de tanto segredo, sabendo somente no átimo em que eu também só soube... Que Diadorim era o corpo de uma mulher, moça perfeita... Estarreci. A dor não pode mais do que a surpresa. A coice d’arma, de coronha...
Ela era. Tal que assim se desencantava, num encanto tão terrível; e levantei mão para me benzer – mas com ela tapei foi um soluçar, e enxuguei as lágrimas maiores. Uivei. Diadorim! Diadorim era uma mulher. Diadorim era mulher como o sol não acende a água do rio Urucuia, como eu solucei meu desespero.

Eu estendi as mãos para tocar naquele corpo, e estremeci, retirando as mãos para trás, incendiável: abaixei meus olhos. E a Mulher estendeu a toalha, recobrindo as partes. Mas aqueles olhos eu beijei, e as faces, a boca. Adivinhava os cabelos. Cabelos que cortou com tesoura de prata... Cabelos que, no só ser, haviam de dar para baixo da cintura... E eu não sabia por que nome chamar; eu exclamei me doendo:
– “Meu amor!...”
Foi assim. Eu tinha me debruçado na janela, para poder não presenciar o mundo.

E a mulher limpa e veste o corpo. Riobaldo está transtornado. Pra ele tudo acabou.

Pelo repugnar e revoltar, primeiro eu quis: – “Enterrem separado dos outros, num aliso de vereda, adonde ninguém ache, nunca se saiba...” Tal que disse, doidava. Recaí no marcar do sofrer. Em real me vi, que com a Mulher junto abraçado, nós dois chorávamos extenso. E todos meus jagunços decididos choravam. Daí, fomos, e em sepultura deixamos, no cemitério do Paredão enterrada, em campo do sertão.
Ela tinha amor em mim.
E aquela era a hora do mais tarde. O céu vem abaixando. Narrei ao senhor. No que narrei, o senhor talvez até ache mais do que eu, a minha verdade. Fim que foi.
Aqui a estória se acabou.
Aqui, a estória acabada.
Aqui a estória acaba.


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