Estávamos eu e dois amigos retornando de uma festa, no
início da madrugada, a pé, atravessando uma pracinha do Luxemburgo, quando um
telefone do ponto de táxi tocou. Naquele tempo – eu devia ter uns 17 anos – os telefones
dos pontos de táxi eram dentro de orelhões azuis. Juninho, que tinha bebido um pouco mais, parou e foi
atender. Henrique, que tinha bebido menos, continuou andando. Eu, que não tinha
bebido nada, parei para esperar Juninho e, ao me virar, vi um senhor com um
sobretudo preto apressar seu passo em nossa direção. Disse então ao Juninho:
- Não atende não, que acho que aquele homem vai atender...
Ele respondeu:
- Só vou dizer que não tem ninguém no ponto...
E encostou a mão no telefone. De imediato o senhor retirou
um cassetete de dentro do sobretudo e voou pra cima de nós. Juninho, de costas,
não percebeu. Eu me coloquei entre ele e o senhor e comecei a tentar dizer algo
como “Que isso moço? Ele só tá avisando que não tem ninguém no....” Não terminei
a primeira frase. Ele mirou na minha cabeça. No único reflexo de defesa consegui
me esquivar um pouco e ele acertou meu pescoço. Caí. Ele deu duas nas costas de Juninho, que também caiu. Henrique corria, distante. Eu já estava me levantando
pra agarrar o homem quando um pensamento me veio: “Ele tá armado! Não seria
doido... quando atacou éramos três jovens contra um senhor...” Praticamente
puxei Juninho pelos cabelos e o empurrei aos gritos:
- Corre!! Corre!!
Minha sorte é que Juninho não estava sóbrio. Ele era muito explosivo, já tinha se envolvido em outras brigas mais sérias. Mas, na condição em que
estava, nem entendeu direito o que aconteceu. E correu comigo soltando alguns
palavrões.
E eu, já tendo corrido uns poucos passos, me virei para trás
e vi o senhor mirar o revolver em nossa direção:
- Aqui procês, seus filhos-da-puta!
E deu vários tiros.
Ele não atirou pra cima. Mirou em nós. Errou.
Encontramos Henrique alguns quarteirões adiante. Ele
praticamente nada viu. Nem Juninho, que não entendeu muita coisa. Mas eu vi. E não
conseguia parar de chorar.
Ao chegar a casa de meu tio, onde iríamos dormir, ele
perguntou se eu queria ir ao instituto médico legal, fazer um exame, prestar
uma queixa. Eu só chorava, não queria fazer nada.
No outro dia, já em Ouro Preto, tive medo de fazer novamente
o que costumeiramente fazia quando algo me entristecia demais: esquecer. Mal
me lembro do meu pai, morto quando eu tinha 10 anos. Ciente deste meu mecanismo
de defesa pensei que tinha que aprender algo com o que me aconteceu, que não
queria esquecer. Fui ao atelier e fiz um desenho daquilo tudo. Devo ter gasto 1 ou 2 minutos.
No outro dia, quando acordei, fui ver o desenho, querendo me
lembrar de como ficou. Mas ele tinha sumido. Aí me lembrei que era o dia da
terapia de minha mãe e que provavelmente o desenho seria o tema do grupo.
Eis o desenho:
Na grande maioria dos casos de risco de conflito tentar comunicar é o caminho mais
adequado. Mesmo quando a comunicação encontra-se obstruída. Em textos anteriores falei sobre
a comunicação assertiva ou surpreendente, justamente a técnica mais adequada
para reabrir um processo dialogal obstruído. Mas em algumas situações não tem
conversa possível. Diante da violência, diante da sabotagem, diante de pessoas
que querem mesmo é destruir qualquer das possibilidades, tentar comunicar é no
mínimo uma inocência.
No desenho o atirador não tem boca. Só depois que desenhei é
que percebi isso. Com ele não tinha conversa, não tinha tentativas de
explicação, não adianta mostrar que sou bonzinho, que não to fazendo nada
demais... isso é inocência.
Fiquei profundamente abalado ao perceber que me expus,
praticamente sem defesa, tentando conversar, a alguém que em nenhum momento teve
o mais leve sinal de hesitação. Ele ia arregaçar, estraçalhar, matar. Eu vi o
seu rosto, eu vi sua expressão. Eu sabia disso! Tentar conversa? Como?
Fiquei feliz ao pensar que, no instante que eu ia partir pra
briga, antecipei que o agressor estava armado. Foi quando voltei a pensar,
verdadeiramente.
Diante de certas situações não tem conversa, não tem
negociação, não faz sentido nenhum tentar comunicar. Nessas situações é como se
estivéssemos em um incêndio florestal incontrolável e fossemos obrigados a usar
a técnica do contra-fogo. Nestes casos vai-se pela mata na direção contraria a
linha de fogo até um local onde se possa iniciar outro incêndio, mais
controlável. Controla-se este novo foco para que não prossiga na direção
errada, mas que retorne, queimando a mata que existe entre os dois focos.
Quando os fogos se encontram extinguem-se, pois nada há em volta para ser
queimado.
Esse exemplo indica que nos momentos de violência ou se foge
ou se enfrenta. E enfrentar pode ser de diversos modos, e é até indicado que
seja sem violência de nossa parte. Mas não se pode bancar o inocente nessas
situações. Senão acabamos ressentidos, negando nossos valores mais
fundamentais, duvidando da bondade e do amor. E igualizados ao violentador no
desejo de vingança.
Guardo hoje esse desenho com muito carinho.
Um comentário:
Me lembro de quanto fiquei indignado, realmente não percebi a gravidade da situação. Ainda bem, pois com certeza teria encarado se estivesse lúcido.
Triste não poder argumentar, condição de alguns seres humanos irracionais.
Bj pra vc Meu amigo. Salvou minha vida.
Te amo.
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