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CARLOS ALBERTO DÓRIA
ESPECIAL PARA A FOLHA
ESPECIAL PARA A FOLHA
RESUMO "A Descendência do Homem" (1871), de Charles Darwin, foi praticamente ignorado em nome da ideia liberal de "guerra de todos contra todos". Releituras e pesquisas recentes em torno do livro revelam uma verdadeira teoria antropológica darwiniana que aponta para as raízes biológicas da moral.
Um dos casos mais intrigantes da epistemologia das ciências biólogicas é a quase absoluta ignorância que se seguiu à publicação de "A Descendência do Homem" (1871), de Charles Darwin.
Quase ninguém se deu conta de que a obra encerrava uma revolução no conhecimento, tão importante quanto "A Origem das Espécies" (1859).
Tão certos estavam os seguidores e detratores de Darwin de que se tratava de uma "continuação" ou "aplicação" da "Origem" à espécie humana, contestando a natureza divina do homem, que nem se deram ao trabalho de lê-la. Do mesmo modo, parte do trabalho --sobre o mecanismo da seleção sexual-- foi considerado um ensaio independente, sem conexão com a origem do homem. Passou em brancas nuvens esta que é considerada agora a "segunda revolução darwiniana".
A obra vale por não repetir argumentos da "Origem", constituindo uma verdadeira antropologia na qual se fundem as dimensões biológica e cultural, como nunca se vira antes e não se viu depois, pois as ciências humanas se desenvolveram de costas para a biologia e a cultura foi considerada algo além do mundo orgânico ("superorgânica") --isto é, a vida simbólica já aparece como plenamente constituída.
Essa antropologia só é possível porque Darwin não vê diferenças de natureza, e sim de grau, naquilo que une o homem às demais espécies animais. As habilidades, os instintos, a inteligência, a capacidade de comunicação (linguagem), os comportamentos são caracteres animais difundidos por infinitas espécies.
O impacto político dessa antropologia é enorme. Ao "animalizar" o homem e seus instintos mais "nobres", deixava a igreja falando sozinha, mesmo sem haver pensado a obra como um libelo antideísta. O livro mostra que os homens pertencem a uma espécie polimórfica, na qual todos são iguais, e as diferenças secundárias, como a cor da pele, foram desenvolvidas ao longo de milênios, através de escolhas estéticas de grupos humanos.
POLÍTICA
Mas por que Darwin escreveu esse livro, se as ciências humanas não eram seu foco de atenção? A razão foi de ordem política e humanitária, conforme hoje se sabe, graças ao estudo dos biógrafos de Darwin sobre suas anotações e diários (Adrian Desmond e James Moore, "Darwin's Sacred Cause: Race, Slavery and the Quest for Human Origins", Penguin Books, 2009).
Quando Darwin esteve no Brasil, horrorizou-se com a escravidão e, desde o distante ano de 1837, começou a reunir elementos para provar a origem comum e a igualdade entre os homens no plano biológico, de modo a sepultar as principais teses dos escravistas, com destaque para a tese da poligenia (tomando raças ou variedades como se fossem espécies "criadas" independentemente, segundo sugeria a leitura que faziam da Bíblia) com a qual "justificavam" o direito à escravizar seres aparentemente distintos.
Do ponto de vista historiográfico, a trajetória intelectual de Darwin também é surpreendente: uma obra sobre o homem, provando sua igualdade (monogenia), foi ideia anterior à concepção da seleção natural. Assim, se o estudo sobre a origem das espécies favoreceu sua compreensão sobre a animalidade do homem, ela contribuiu igualmente para o amadurecimento de sua antropologia.
A nova leitura esclarecedora de "A Descendência do Homem" deve-se ao trabalho de quase 20 anos do epistemólogo francês Patrick Tort, cujo livro "L'Effet Darwin: Séléction Naturelle et Naissance de la Civilisation" (Seuil, 2008) é síntese dessa trajetória persistente.
A primeira questão que Tort busca explicar é o desprezo pela antropologia de Darwin. E sua explicação é relativamente simples: a ideia de "luta pela vida" era extremamente conveniente para a economia política liberal; reforçava a noção de luta de "todos contra todos" e triunfo dos mais fortes, e os evolucionistas liberais, como Herbert Spencer, a ela se aferraram.
"A Descendência do Homem", ao contrário, é a obra na qual Darwin sofistica os mecanismos de seleção --faz até um mea-culpa por haver exagerado o papel da seleção natural-- introduzindo na história natural as noções cruciais da cooperação e "altruísmo".
Contudo, só nos países sem tradição de economia política liberal esses mecanismos de evolução foram percebidos e valorizados, como na Rússia czarista, resultando em algumas obras discrepantes em relação à interpretação dominante, como a de Peter Kropotkin, "Ajuda mútua: Um Fator de Evolução" (1888).
Em "A Descendência do Homem", Darwin mostra como esse animal surge da evolução de formas mais simples através da convergência fortuita de vários processos: a pedestrialização (quando o animal desce das árvores), o bipedismo, a encefalização (aumento do cérebro) e o desenvolvimento da linguagem simbólica. Mas não foram só as transformações físicas que Darwin captou. Ele indicou que, ao se desenvolver no plano social, criou-se uma ruptura com o processo anterior, no qual, por força de pressões ambientais, os animais se adaptavam mediante a transformação física milenar.
O Homo sapiens já não se transforma fisicamente, mas age sobre o ambiente, adaptando-o às suas necessidades (produz vestimentas, habitação etc.). Do mesmo modo, o instinto animal evolui e aprofunda seu caráter social, impondo formas cooperativas, tornando-o um animal social bastante sofisticado, capaz de várias ações altruístas.
Mas por que o altruísmo? Não se trata da manifestação de uma "essência humana", fruto de um sopro divino, mas de uma necessidade material da vida. O instinto social é característica de várias espécies --como as abelhas, as formigas e vários mamíferos superiores. Através dele, a reprodução do grupo entra em causa, condicionando as ações e escolhas individuais.
NOVO PERCURSO
No homem, desde a divisão de trabalho entre macho e fêmea para cuidar da cria (longamente inabilitada para, sozinha, prover a vida) até o desenvolvimento das instituições sociais, como a ciência ou a medicina, um novo percurso evolutivo se instaura quando crianças, velhos e indivíduos menos aptos são protegidos, em vez de eliminados.
Uma seleção natural de instintos e comportamentos antieliminatórios (ou "antisselecionistas") vai tomando corpo e reprimindo as ações eliminatórias.
O resultado cego desse longo processo é a civilização, isto é, a repressão sistemática da "lei do mais forte" na medida em que padrões encontram formas de se impor ao grupo e se sobrepor aos do indivíduo. Tort verá nesse mecanismo a "reversão da seleção natural", ou o nascimento da civilização sem ruptura com a dimensão biológica da vida. Em outras palavras, a base material, natural, da moral.
"A Descendência do Homem" traz uma segunda parte, sobre a "seleção sexual". Nela, o cientista inglês mostra justamente a necessidade do altruísmo --a capacidade de dar a vida por outros membros da espécie-- como fator de evolução. Por que em certas espécies, notadamente de aves, o macho é muito mais belo e exuberante que as fêmeas? Simplesmente porque, ao se desenvolverem dessa forma, eles têm mais chances de serem "escolhidos" pelas fêmeas e criarem descendência. Mas o pavão, por exemplo, ao desenvolver sua beleza perde a capacidade de voar, ficando à mercê dos predadores. Essa inabilitação adquirida só se explica pelo "altruísmo": correr riscos, o autossacrifício em nome do outro, da descendência.
Por esse mecanismo da seleção sexual, o homem também terá capacidade de alterar seus caracteres secundários. Sendo espécie polimórfica, variará na cor da pele e outros traços físicos exteriores ao perseguir padrões de beleza restritos a cada grupo humano isolado. O "belo ideal" é um conceito social que se materializa nos indivíduos que ocupam a chefia do grupo, nas mulheres que utilizam adornos, nas estátuas que representam os deuses e assim por diante.
Esses padrões se tornam dominantes na medida em que passam a intervir nas escolhas matrimoniais e, por esse processo, disseminam-se pelo grupo. Nada disso precisa ser consciente para agir sobre o homem, como o instinto não é consciente no animal.
Caminhos como esse mostram, mais de um século depois, a dimensão insuspeitada de uma obra que parecia "caduca" aos olhos das ciências naturais e ciências humanas. Trata-se de um clássico que, finalmente, impõe sua grandeza intelectual.
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