(Da série “Como João
Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 18)
E
Hermógenes, aquele que ainda iria matar a traição o grande líder Joca Ramiro,
mas que agora é quem lidera essa parte do bando, convoca Riobaldo para uma
missão importante e perigosa, na qual provavelmente haverá combate com os
inimigos. E Riobaldo, surpreendido pelo convite, se vê repentinamente
engrandecido, sente-se maior, cheio de – justo ele – seguranças e certezas. A
fortuna lhe sorriu, e isso não é fácil para ninguém. É difícil manter a
sanidade nesses momentos.
“Por
jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me chamou. Aí – as
cintas e cartucheiras, mochilão, Rede passada e um cobertor por tudo cobrir –
ele estava parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar
nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu
cochicho.” Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me
conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas
pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que digo, que
foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que vida é : é para se
envergonhar...
Mas,
aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância
vexada, fui sendo outro – eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar
e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego
nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava
fechado, fechado na idéia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro
Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era
um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e
dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro. Eu era feito um soldado,
obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei:
– “Eu, Riobaldo, eu!” Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca
Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei nele
só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca Ramiro!...” A arga que
em mim roncou era um despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de
ter ódio nem receio nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e
desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater de ser. Só.
Dessas boas fúrias da vida.”
Fechado
na ideia, fechado no couro. Riobaldo, sempre hesitante, temeroso, angustiado,
agora mudou. Está determinado, assustadoramente determinado. Sente-se maior e
prestigiado. Esse é o momento perigoso, é o momento que nos perdemos. Como bem
disse Paulo Mendes Campos.
“Toda pessoa
deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou
menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor
que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para
rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as
grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos que estamos
cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que
fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas.
Cuidado, Maria, com as grande ocasiões.”
Perdemos
o humor, esse tão importante mediador de sabedoria em nossas vidas, quando
perdemos nossa própria medida, nos sentindo umas drogas ou muito bacanas.
Riobaldo,
ao se sentir muito bacana perde até a sua percepção pessoal. Ele não gostava do
Hermorgenes, nunca gostou. Diadorim, que depois, ao saber que justamente
Hermorgenes matara seu pai, seria possuído por imenso ódio e desejo de
vingança, discordava então de Riobaldo, achando que o dito era corajoso, bom
líder e fiel a Joca Ramiro. Mas Riobaldo nunca se deixou enganar. Até esse dia,
quando foi o primeiro convocado para a perigosa batalha, perdendo então sua
humana humildade.
E
como já dissemos, em postagem anterior:
Humildade
vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano
se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.
Os
dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que
permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa
estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez
habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.
É
de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou
seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos.
Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde
são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do
humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. E
por ser assim incompleto o ser humano encontra o seu próprio mistério, que é ser
um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua
vida, nunca chegando a estar pronto.
Ou,
nas palavras de São João da Cruz
“Nesta
desnudez acha o espírito o seu descanso,
porque
não cobiçando nada,
nada o fatiga para cima
e
nada o oprime para baixo,
porque
está no centro de sua humildade.”
Não
me lembro mais quem, mas alguém já disse:
“Por
mais que eu tenha tentado, a vida inteira, ser maior ou menor do que eu sou,
nunca consegui ser senão eu mesmo, nunca consegui passar senão na porta que
tinha exatamente o meu tamanho.”
Foi
Plutarco, em seu livro “Como distinguir o amigo do bajulador”, que afirmou que
a hora que realmente precisamos de um amigo é a hora na qual a fortuna nos
sorri, e tudo parece dar certo. O verdadeiro amigo nos atenta para que não nos deixemos
engrandecer demasiadamente. Já o bajulador procuraria inflar ainda mais o
balão.
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