quinta-feira, 25 de outubro de 2012

E Riobaldo fala de quando nos sentimos maiores



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 18)


E Hermógenes, aquele que ainda iria matar a traição o grande líder Joca Ramiro, mas que agora é quem lidera essa parte do bando, convoca Riobaldo para uma missão importante e perigosa, na qual provavelmente haverá combate com os inimigos. E Riobaldo, surpreendido pelo convite, se vê repentinamente engrandecido, sente-se maior, cheio de – justo ele – seguranças e certezas. A fortuna lhe sorriu, e isso não é fácil para ninguém. É difícil manter a sanidade nesses momentos.

“Por jeito? Com o que se deu, que eu não contava. O Hermógenes me chamou. Aí – as cintas e cartucheiras, mochilão, Rede passada e um cobertor por tudo cobrir – ele estava parecendo até um homem gordo. – “Riobaldo, Tatarana, tu vem. Lugar nosso vai ser o mais perigoso. Careço de três homens bons, no próximo de meu cochicho.” Para que vou mentir ao senhor? Com ele me apartar assim, me conferindo valia, um certo aprazimento me deu. Natureza da gente bebe de águas pretas, agarra gosma. Quem sabe? Eu gostei. Mesmo com aversão, que digo, que foi, que forte era, como um escrúpulo. A gente – o que vida é : é para se envergonhar...

Mas, aí, eu fiquei inteiriço. Com a dureza de querer, que espremi de minha sustância vexada, fui sendo outro – eu mesmo senti: eu Riobaldo, jagunço, homem de matar e morrer com a minha valentia. Riobaldo, homem, eu, sem pai, sem mãe, sem apego nenhum, sem pertencências. Pesei o pé no chão, acheguei meus dentes. Eu estava fechado, fechado na idéia, fechado no couro. A pessoa daquele monstro Hermógenes não encostava amizade em mim. E nem ele, naquela hora, não era. Era um nome, sem índole nem gana, só uma obrigação de chefia. E, por cima de mim e dele, estava Joca Ramiro. Pensei em Joca Ramiro. Eu era feito um soldado, obedecia a uma regra alta, não obedecia àquele Hermógenes. Dentro de mim falei: – “Eu, Riobaldo, eu!” Joca Ramiro é que era – a obrigação de chefia. Mas Joca Ramiro parava por longe, era feito uma lei, uma lei determinada. Pensei nele só, forte. Pensando: – “Joca Ramiro! Joca Ramiro! Joca Ramiro!...” A arga que em mim roncou era um despropósito, uma pancada de mar. Nem precisava mais de ter ódio nem receio nenhum. E fui desertando da cobiça de mimar o revólver e desfechar em fígados. Refiro ao senhor: mas tudo isso no bater de ser. Só. Dessas boas fúrias da vida.”

Fechado na ideia, fechado no couro. Riobaldo, sempre hesitante, temeroso, angustiado, agora mudou. Está determinado, assustadoramente determinado. Sente-se maior e prestigiado. Esse é o momento perigoso, é o momento que nos perdemos. Como bem disse Paulo Mendes Campos.

“Toda pessoa deve ter três caixas para guardar humor: uma caixa grande para humor mais ou menos barato que a gente gasta na rua com os outros; uma caixa média para humor que a gente precisa ter quando está sozinho, para perdoares a ti mesma, para rires de ti mesma; por fim, uma caixinha preciosa, muito escondida, para as grandes ocasiões. Chamo de grandes ocasiões os momentos perigosos que estamos cheios de dor ou de vaidade, em que sofremos a tentação de achar que fracassamos ou triunfamos, em que nos sentimos umas drogas ou muito bacanas. Cuidado, Maria, com as grande ocasiões.”

Perdemos o humor, esse tão importante mediador de sabedoria em nossas vidas, quando perdemos nossa própria medida, nos sentindo umas drogas ou muito bacanas.

Riobaldo, ao se sentir muito bacana perde até a sua percepção pessoal. Ele não gostava do Hermorgenes, nunca gostou. Diadorim, que depois, ao saber que justamente Hermorgenes matara seu pai, seria possuído por imenso ódio e desejo de vingança, discordava então de Riobaldo, achando que o dito era corajoso, bom líder e fiel a Joca Ramiro. Mas Riobaldo nunca se deixou enganar. Até esse dia, quando foi o primeiro convocado para a perigosa batalha, perdendo então sua humana humildade.

E como já dissemos, em postagem anterior:

Humildade vem do latim humilìtas,átis , que significa de pouca elevação, de pequena estatura. Humano se origina a partir da palavra latina humánus,a,um, que indica o que é próprio do homem.

Os dois vocábulos têm em comum o prefixo HUM, do latim húmus, significa terra, solo. Humilde nesse sentido indica o que permanece na terra, não se eleva da terra, aquilo que é humilde, de baixa estatura e por isso mesmo próximo ao solo. E Humano indica por sua vez habitante da terra, por oposição primeiro aos deuses, depois aos outros seres.

É de se notar que as duas palavras, humilde e humano, têm a mesma cognação, ou seja, vem de uma mesma raiz. Isso sugere uma íntima correlação entre os termos. Poderíamos então imaginar, em virtude desta correlação, que humano e humilde são termos irmãos. E poderíamos até nos arriscar a dizer que seria próprio do humano a humildade, o saber-se próximo do chão, o saber-se finito e limitado. E por ser assim incompleto o ser humano encontra o seu próprio mistério, que é ser um ser de aprendizagem, um ser que se constitui na aprendizagem durante toda a sua vida, nunca chegando a estar pronto.

Ou, nas palavras de São João da Cruz

“Nesta desnudez acha o espírito o seu descanso,
porque não cobiçando nada,
 nada o fatiga para cima
e nada o oprime para baixo,
porque está no centro de sua humildade.”

Não me lembro mais quem, mas alguém já disse:
“Por mais que eu tenha tentado, a vida inteira, ser maior ou menor do que eu sou, nunca consegui ser senão eu mesmo, nunca consegui passar senão na porta que tinha exatamente o meu tamanho.”

Foi Plutarco, em seu livro “Como distinguir o amigo do bajulador”, que afirmou que a hora que realmente precisamos de um amigo é a hora na qual a fortuna nos sorri, e tudo parece dar certo. O verdadeiro  amigo nos atenta para que não nos deixemos engrandecer demasiadamente. Já o bajulador procuraria inflar ainda mais o balão.

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