sábado, 20 de outubro de 2012

E Riobaldo fala da dificuldade de se saber o que se quer



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 14)


“Afirmo ao senhor, do que vivi: o mais difícil não é um ser bom e proceder honesto; dificultoso, mesmo, é um saber definido o que quer, e ter o poder de ir até no rabo da palavra.”



Saber o quer se quer pode ser, de fato, muito dificultoso. Pois fazemos muitas confusões e somos, em muitos aspectos, cindidos.

Ao falarmos podemos nos referir a três aspectos diferentes da realidade: ao mundo das coisas e dos fatos, ao mundo das normas ou ao mundo das vivências.

Ao falarmos das coisas nossas proposições serão adequadamente avaliadas se utilizarmos as categorias de verdadeiro ou falso. Se digo que determinada pedra é dura, posso aperta-la e ver se o que disse era verdadeiro ou falso, se era fato ou não.

Ao falarmos das normas que regulam a nossa interação não podemos avaliar nossas proposições com as mesmas categorias. Não cabe perguntar se a norma que definiu a existência de mão e contramão nas estradas é verdadeira ou falsa. Cabe perguntar se as normas são justas ou injustas, se facilitam ou dificultam a convivência.

 Mas que categorias devemos utilizar ao mundo das vivências? Quando falamos do que sentimos devemos perguntar se o que dissemos foi verdadeiro ou falso? Ou se foi justo ou injusto?

Habitualmente aplicamos ao mundo das vivências as categorias de justo ou injusto. Se estou com raiva de alguém ou com inveja de outrem, questiono se é justo sentir essa raiva ou essa inveja. Normalmente questionamos moralmente o que sentimos.

Mas seria melhor aplicar nesse contexto as categorias de verdadeiro/falso, ou seja, analisar se as vivências são verdadeiras ou se são um desvio, uma dissonância cognitiva, uma afetação ou fingimento, visando frequentemente ganhos secundários.

A aplicação indevida das categorias de justo/injusto às proposições referentes ao mundo das vivências revela uma atitude de exagerado ajuizamento que acaba por confundir nossa percepção sobre aquilo que sentimos.

Uai, é possível a gente não saber o que sente?

É sim.

Uma vez que as vivências surgem não devemos pensar que só o fato delas terem aparecido significa que são próximas da realidade. É comum se usar o argumento de que “Eu senti assim”. “Mas é assim que eu sinto”. Como se o fato de sentirmos algo desse mais consistência ou veracidade ao nosso modo de ver a situação. Como se isso bastasse, se sinto assim, não posso estar enganado a respeito do que eu sinto. Mas posso mesmo me confundir. Posso achar que estou sentindo uma coisa, mas na verdade estou sentindo outra bem diversa. As vivências podem ser verdadeiras ou falsas.

Certa vez, durante um grupo, um participante se queixava do seu cunhado argentino. Dizia que, como se não bastasse o fato de um argentino “estar pegando” a sua irmã, ele tinha conseguido um emprego de engenheiro aeronáutico na Embraer, se mudado para São Paulo e levado a querida irmã com ele. Essa abriu mão de sua carreira profissional em Belo Horizonte para acompanhar o portenho, denominado egoísta pelo irmão revoltado.

Mas o argentino, não se dando por satisfeito, resolve tentar trabalho nos EUA e acaba conseguindo uma vaga na Boing. E lá vai mais uma vez a irmã, abandona tudo de novo e agora muda de país.  

Questionado sobre o que sentia diante da situação da irmã, o participante foi bem claro: fico indignado com o egoísmo do argentino.

Os outros participantes do grupo começaram a questionar se o que ele sentia era isso mesmo. E logo ficou bem claro: “aquele desgraçado, além de tá com minha irmã, ainda ganha melhor que eu, em dólar, trabalha nos EUA... eu fico aqui, trabalhando muito mais e ganhando muito menos, justo eu, que estudei muito mais que ele...”

E ria, admitindo que o que sentia era, na verdade, inveja.

Enfim, temos que saber se o que sentimos é aquilo mesmo ou se, na verdade, por fazer um juízo moral equivocado sobre nossos próprios sentimentos acabamos por nem saber o que sentimos.

E se não sabemos o que sentimos como saber o que queremos?

Não bloquear as vivências com juízos morais apressados é o primeiro passo para ter-se e saber-se. Seja por temor do erro e da culpa, seja por excessivo racionalismo, o bloqueio das vivências nos distancia do que realmente somos.

Yen-Men, sábio oriental disse: “Se queres a verdade clara, não te preocupes com o certo e o errado. O conflito entre o certo e o errado é a doença da mente”.

De certa forma, Nello Nuno parece ter alcançado a condição de se saber o que se quer, indo até o rabo da palavra, no seu poema-testamento:

“O simples guarda o enígma que é grande e permanente.
Viver - filosofar depois.
Sentir – pensar depois.
Agir – caminhar, os vales e montanhas de Ana Amélia.
Os filhos, brincar de roda, rodar risadas, sorrir lembranças.
Essa é minha estrada sem atalhos.
Minha pintura é meu sentir momentos, meu sorrir lembranças, meu
briquedo de vida.
Pássaro branco, cavalo alado, pomba e paz.
É a procura do simples e do alegre.
Da ternura e da carne.
Do gesto e da música.
Do grito e do riso.
É o meu amor à vida.”

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