quinta-feira, 6 de março de 2014

Silêncio



"Só outro silêncio. O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais."
Riobaldo, in Grande sertão:veredas"


Imagine uma mãe que não para de falar. Com qualquer pessoa, ela não para de falar. Mas com a filha única, jovem e que quase nunca faz o que ela gostaria, com ela é que essa mãe não para de falar mesmo. Tomada pela ansiedade diante do futuro da filha – ela também não quer arrumar uma profissão que a mãe julgue adequada, que dê mais dinheiro e segurança – essa mãe fala sem parar.

E essa mãe sabe ser dura. Sabe falar o que as pessoas não gostam de escutar. Até se orgulha disso, apesar de saber, em seu íntimo, como isso já dificultou sua convivência no dia a dia. E com a filha ela faz o mesmo, é de uma dureza impar.

Imagine que essa filha, jovem, 20 e tantos anos, acaba de chegar a casa, animada, entusiasmada até, pois se iniciou num novo trabalho e vislumbra a possibilidade de conseguir uma estabilidade financeira. Essa filha está carregando uma bolsa, com o logotipo da empresa. Aquela mãe olha, já começa dizendo que a bolsa é baranga, que aquilo não vai dar certo, que ela é muito impulsiva, faz as coisas sem pensar, e aí fala, fala, fala...

Imagine, por fim, que as duas estão no psicólogo, juntas, justamente conversando sobre esse caso. A mãe fala. Sem parar. Aponta os erros da filha, diz que ela sabia desde o inicio que ia dar errado, que esse namoro dela também não vai dar em nada, que ela TEM que fazer isso, aquilo e aquele outro... e TEM, e TEM, e TEM...

E a filha começa a lembrar à mãe o episódio da bolsa e do início de seu trabalho – ela estava tão feliz e entusiasmada –, a mãe tenta interromper pra falar mais um pouco, mas a filha a impede, falando algo assim “Mãe, é sempre assim... você sempre me puxa pra baixo, sempre só me diz que vai dar errado, mesmo quando eu mais preciso...” e rompe num choro convulso, intenso, sem mais conseguir dizer palavra.

E faz-se o silêncio.

Nunca vi essa mãe num silêncio tão pleno.

Não era mudez, não havia em sua garganta algo agarrado que precisasse ser dito.

Não era ruído, não era ensurdecedor, não havia qualquer interferência dificultando que as duas conversassem.

Era silêncio.

Um silêncio pleno, profundo, fecundo.

Agora sim elas poderiam talvez conversar, conviver, deixar cada qual que a outra entre, a modifique, a surpreenda talvez...

O silêncio é o primeiro pulsar do amor. É a fresta que permite antever lá dentro o encontro que pode advir. É o espaço que permite que se perceba o outro em sua plenitude.

Vivemos num mundo ensurdecedor. Ruídos nos invadem de todos os lados. Alguns veem de dentro de nós. São raros os momentos de parada, os espaços vazios, os silêncios fecundos. É muito barulho, e muito barulho, e muito barulho, por nada.

Podemos pensar o silêncio a partir do seguinte esquema:


Comunicação - Comunhão


Histeria
SOM
Poder dizer
SILÊNCIO
Poder não dizer

Reserva
RUÍDO
Não poder não dizer
MUDEZ
Não poder dizer

Incomunicação



O SOM é audível, compreensível, descodificável.
O SILÊNCIO é o espaço vazio, a espera, o parar, o focar.
O RUÍDO pode ser um simples barulho como pode ser ensurdecedor.
A MUDEZ é o calado, a saudade, o que deveria ter sido dito.
O som se opõe à mudez. O silêncio se opõe ao ruído.
A junção do som com o silêncio é a COMUNICAÇÃO, o compartilhável, a comunhão, o conviver.
A junção do ruído com a mudez é a INCOMUNICAÇÃO, o intransponível, o isolamento.
A junção do silêncio com a mudez é a RESERVA.
A junção do som com o ruído é a HISTERIA.

Ainda é possível considerar, não especificamente a partir do esquema acima, que:
No meio do caminho entre a fusão e o isolamento estaria a comunicação/comunhão.
No meio do caminho entre o ruído/ensurdecedor e a mudez/calado estaria o silêncio.


Algo me diz que pensar essas coisas pode ser muito proveitoso...

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