sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Um beliscão rodado e uma despedida


Raquel chegou ao consultório muito deprimida. Dizia que em sua casa o irmão mais velho era do pai, pois fez engenharia e tudo mais que o pai esperava dele. A irmã mais nova era da mãe, pois era delicada, feminina, como a mãe valorizava. E que ela era do cachorro. E completou:

- Pensando bem, nem do cachorro eu sou. Ele é da minha irmã.

 Seu pai era um homem extremamente severo, seco, rígido, bravo e impulsivo. Uma de suas maiores manifestações de afeto, só explicitada quando gostava muito de alguém, era:

- Senta aí e vamos ver televisão.

Toda essa efusão de afetividade só era superada, em raríssimas ocasiões, quando ele realmente gostava demais da pessoa. Nessa hora ele manifestava todo seu amor dando um beliscão rodado na barriga do cidadão, o que deixava um enorme roxo de lembrança ao infeliz.

Raquel contou muito de sua história nos nossos encontros. Em certo momento lhe disse:

- Você diz que ninguém em sua casa gosta de você. Mas seu pai, que passou por três situações muito drásticas - um acidente de carro quase fatal, um ataque cardíaco seguido de cirurgia e uma falência - em todas as três, quem ele queria que estivesse por perto? Quem ele chamou primeiro? Qual foi a primeira pessoa que ele desabafou que tinha falido?

- Eu... Mas isso não quer dizer que ele goste de mim! É que ele fica muito nervoso e agressivo e, como eu também sou brava, e respondo à altura se ele me xinga, ele fica mais à vontade comigo nessas situações. Não se sente culpado se começa a berrar comigo, porque eu berro também.

- Pode ser. Mas é evidente que ele quis a sua presença em seus momentos mais difíceis. Pode ser que tenha feito isso para evitar a culpa... mas certamente também confia em você, acha que pode contar com você, acha você forte. E acho que ele já te convidou várias vezes pra ver televisão e já deve ter lhe dado alguns beliscões, não?

- já sim...

- Pois é. Ele gosta de você. Pode não saber manifestar isso direito, mas gosta. Pode sentir orgulho do filho obediente que segue tudo que ele fala, mas isso não quer dizer que ele não goste de você.



Quantas vezes duvidamos que somos amados? Quantas vezes duvidamos que é possível alguém nos amar? E porque não acreditamos nisso?

Vários são os motivos. Muitos relacionados à nossa infância, à problemas com nossa autoestima de alguma forma precocemente abalada. Se não vemos valor em nós mesmos como imaginar que outra pessoa veria?

Bergman foi um cineasta de filmes, quase em sua totalidade, atormentados. Lindos, mas atormentados. Entendemos um pouco melhor o porquê desses filmes quando assistimos ao filme "As melhores intenções", de Billie August. Esse filme é baseado em um livro escrito pelo próprio Bergman, no qual o cineasta relata a formação de sua família original. Trata-se da historia de seus pais, do início do relacionamento entre os dois, de seu casamento e relata ainda, se bem me lembro, até que o próprio Bergman tivesse uns 6 ou 7 anos. 

É um lindo filme sobre a história de um desencontro. O pai de Bergman era um homem extremamente humilde, austero e rigoroso. A mãe era da alta sociedade local, de uma família de intensa vida social. Após o casamento o pai muda-se para o interior pobre e distante, em busca de seu ideal de vida: ser pastor e cuidar das poucas almas viventes nesse lugarejo. São intensos e frequentes os conflitos do casal, sentidos intensamente pelo filho. Também é muito difícil para o filho assimilar o comportamento violento e imprevisível do pai, com agressões muitas vezes imprevistas e incompreensíveis. 

Apesar de tudo, ao fim do filme, não conseguimos sentir raiva dos pais de Bergman. Eu, ao menos, não consegui. O título me parece perfeito: "As melhores intenções". Eles fizeram exatamente o que deram conta. Não poderiam ter feito diferente. Não tinham a intenção de criar uma criança terrivelmente angustiada. Mas não conseguiram evitar que isso acontecesse.

O próprio Bergman parece indicar a mesma interpretação para esse filme. Ele contou em uma entrevista que o filme mudou sua postura em relação aos seus pais. "Depois disso", disse ele, "toda e qualquer forma de reprovação, culpa, amargura ou até um vago sentimento de que eles estragaram minha vida se extinguiu para sempre de minha mente."

Às vezes temos dificuldade de decodificar a linguagem de amor da outra pessoa... não sabemos ou não queremos escutar que nos chamar para assistir televisão possa ser um convite de amor. Também acontece da outra pessoa ter um ciúme ou rivalidade especialmente complicada em relação à nossa pessoa. Mesmo que em nada colaboremos a pessoa só se relaciona conosco com uma hostil rivalidade.  Ou até somos incentivados desde meninos, pelos próprios pais, a uma competição que acaba por nos distanciar de quem poderíamos amar. Em outros momentos as pessoas não fazem como nós mesmos faríamos, não são tão cuidadosas ou atentas aos detalhes. Mas isso também não quer dizer que elas não nos amam.

Uma paciente chateou-se quando percebeu não ganharia um anel de formatura. Quando sua irmã se formou ela lembrou aos pais que eles poderiam providenciar o anel. Mas na sua vez, quando ela própria se formou, ninguém sem lembrou. Mas, mesmo sem anel, foi importante para ela lembrar-se da enorme alegria de seus pais e sua irmã em todas as comemorações. O pai, que tem muitos problemas para controlar a bebida, nem bebeu no baile! Quer demonstração maior de amor? Se ela não parasse para reconsiderar seu ressentimento, perceber como ele era irrelevante, acabaria sem saborear a alegria de sua formatura.

Noutros momentos exigimos tanto uma forma muito específica de manifestar o amor que indicamos querer mesmo fixar a certeza de ser amado, garantir um amor eterno e indestrutível. Como se houvesse alguma forma de se garantir isso...

Mesmo se não formos cristãos, vivemos em uma cultura cristã e estamos sujeitos, muitas vezes sem perceber, a seguir os seus valores. Mas, no que diz respeito ao amor, fazemos alguma confusão.

O amor cristão é gratuito. Deus nos ama. Ponto. É nosso pai, nos ama e tá acabado. Mesmo que façamos atrocidades, ele continuará nos amando e confiando que perceberemos o erro mais cedo ou mais tarde e retomaremos para o bem. O amor gratuito é fundamento para um cristão verdadeiro, um cristão que pense como um cristão primitivo, original.

Para os gregos era diferente. Há um ditado grego que diz: como os deuses não precisam dos homens, eles não amam os homens. Esse ditado expressa uma forma de amar ligada à precisão, à necessidade. É um amor de uma condicionalidade muito específica. Só se o outro precisar de mim é que ele vai me amar. E, logo, não há aqui a gratuidade da forma cristã de amar.

Somos cristãos, mas quantas vezes vivemos como gregos, no que diz respeito ao amor? Quantas vezes queremos que o outro necessite da gente pra “garantir” o seu amor? Mas não seria um amor muito mais claro e evidente se ele existisse sem a menor necessidade de coisa alguma? Amo porque amo, e pronto. Nossos filhos, por exemplo. Dão tanto trabalho, despesa e até contrariedade. E amamos, mesmo assim.


Tal como Rachel tinha dificuldades com seu pai, Verônica tinha dificuldades com sua mãe. Ela sempre lhe tratava com algum desdém ou hostilidade. De todos os filhos e filhas, somente Verônica se parecia com o pai. Tal como ele, tinha a pele muito clara e os cabelos louros. Seus temperamentos também combinavam, ambos extrovertidos, alegres e bem brincalhões. Se davam muito bem. O mesmo não se pode dizer da relação entre a mãe e o pai. Era difícil e amarga. Mais para o final de sua vida, o pai ficou mais ameno com a mãe e até tentou uma aproximação. Mas a mãe nunca abriu mão de sua mágoa. E essa mágoa acabava desaguando em Verônica. E desabou sobre ela, com especial força, depois que o pai faleceu.

Sua mãe ainda viveu bons anos mas, mesmo com momentos de alguma aproximação, a relação entre as duas nunca se resolveu. Quando enfim a mãe adoeceu gravemente e foi internada, Verônica a visitou uma ultima vez e chorando muito, pediu perdão por qualquer coisa que tivesse feito, por não ser uma boa filha, por ser as vezes irritada ou impaciente. Sua mãe, admirada, disse:



- Que isso, minha filha... você foi uma filha tão boa! Sempre cuidou muito de mim... eu que peço desculpas... desculpe, filha... às vezes eu não conseguia esquecer minhas mágoas e descarregava em você... mas eu te amo, filha, muito! Você é uma filha maravilhosa! 

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei este post, para variar! :) Serve de consolo para quem tem pais que não sabem expressar seu amor como deveriam. Todavia, acho que aprender a decifrar a manifestação de amor dos que não sabem amar não resolve o problema de baixo auto-estima e etc. Talvez o que ajude um pouco é se convencer que a pessoa não mudará, é aprender a não ter certas expectativas - isso é muito difícil!