segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

23. E Riobaldo sente ciúmes de Diadorim




(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”).



E Riobaldo termina de escutar a estória de Maria Mutema, sobre a qual não falará mais, e encontra colegas de bando chegando ao acampamento. E pergunta sobre Diadorim. Eles contam que ele mandou recado para Riobaldo, que tinha que fazer umas coisas, por poucos dias, mas que em breve retornaria.

Riobaldo reluta em acreditar que Diadorim fosse a algum lugar sem ele. E sente dor.

“Aí, ai, oi, espécie de dor em meus cantos, o senhor sabe. Agora eu pateteava. Que que era ser fiel; donde estava o amigo? Diadorim, na pior hora, tinha desertado de minha companhia. Às certas, fuga fugida, ele tinha ido para perto de Joca Ramiro. Ah, ele, que de tudo sabia em tudo, agora assim de tenção me largava lá sem uma palavra própria da boca, sem um abraço, sabendo que eu tinha vindo para jagunço só mesmo por conta da amizade! Acho que me escabreei. De sorte que tantos pensamentos tive, duma viragem, que senti foi esfriar as pontas do corpo, e me vir o peso de um sono enorme, sono de doença, de malaventurança. Que dormi. Dormi tão morto, sem estatuto, que de manhã cedo, por me acordarem, tiveram de molhar com água meus pés e minha cabeça, pensando que eu tinha pegado febre de estupor. Foi assim.”

E se passaram 11 dias. E a guerra continuou. Mas Riobaldo nem se anima a contar direito. Foram duras batalhas e muitos, muitos tiros.  

E continua sentindo falta de Diadorim.

“Vir voltemos. Aqueles dias eu empurrei, mudando em raiva falsa a falta que Diadorim me fazia. Aí, curti amargos. Por me ver casca em chão, que é o figurado de desprezo, e mais tudo o que em ocasiões dessas se sente, conforme o senhor decerto conhece e sabe. Mas o pior era o que eu mesmo mais sentia: feito se do íntimo meu tivessem tirado o esteio-mor, pé-decasa. E, conforme sempre se dá, segundo se está assim em calibre de cão, e malquerente, repuxei ideias. Me alembrei do que tinha soprado em intriga o Antenor, e dei razão à cisma dele: quem sabe, mesmo, Joca Ramiro estava no propósito de deixar a gente se acabar ali, na má guerra, em sertão plano? E então Diadorim disso sabia, estava no enredo, agora tinha ido para junto de Joca Ramiro – que era a única pessoa que ele bastantemente prezava? Fiquei em mim desiludido, caí numa lazeira. Mas cuspi três vezes forte no chão, e risquei de mim Diadorim. Homem como eu não é todo capaz de guardar a parte de amor, em desde que recebe muitas ofensas de desdém. Só que, depois, o que há, é a alma assim meio adoecida. Digo, fiquei lazo.”

E aí está Riobaldo, prostrado e infeliz, a imaginar que Diadorim o abandonou, fugiu dos riscos da batalha, o deixou para trás sem nenhum cuidado ou consideração. Desconfiado, Riobaldo começa a pensar que Diadorim foi para junto do chefe maior, Joca Ramiro.

Na desconfiança o desconfiado não acredita no amor. E como não acredita no amor, começa a pensar em várias hipóteses para confirmar sua certeza: abandono, traição, medo, fuga... Mas em todas o mesmo centro se revela: ele não me amava. Mas esse centro em seu próprio centro tem um núcleo mais profundo: eu não sou amável, não é possível alguém realmente gostar de mim. E tudo que vejo, tudo que penso, tudo que sinto, reflete a inexorável certeza, mesmo que muito disfarçada: eu sabia, ele acabaria se afastando de mim, pois não trago em mim as condições para ser amado verdadeiramente.

Certo conhecido estava prestes a se casar. Mas as crises de ciúmes o atormentavam com tal força que o matrimônio estava ameaçado. Essas crises tinham um foco principal: a noiva, no passado, ficara com um conhecido de turma, que era uma das piores pessoas que o noivo conhecia, e que o atormentara com crueldade durante a adolescência. Sempre que esse fato reaparecia – uma foto antiga, a lembrança de uma viagem comum – as crises de ciúmes eram terríveis e desesperadoras. Ensinei a ele a menor oração do mundo: sempre que algo despertasse sua desconfiança e ele se visse prisioneiro deste ciúme desesperado, deveria rezá-la, repetidamente. Um dia a noiva, ao chegar a casa o encontra sentado, diante de uma foto antiga da turma, na qual o famigerado ex aparecia. E o noivo repetia: “eu sou amável, eu sou amável, eu sou amável...”.

Se não acreditamos nisso, tudo acaba por ruir. As desconfianças, baseadas em sinais insuficientes, assumem condição de verdades, e provocam o inexorável rompimento. É um erro tentar provar, neste contexto, que se ama. Mais cedo ou mais tarde acaba-se desistindo, pois o ciumento não acredita no amor e só enxerga os sinais fictícios de desamor. E, por fim, o ciumento ainda acusará: "Tá vendo, eu sabia que você não me amava". Mas, na verdade, ele mesmo é que terá provocado o rompimento, num tipo de auto-exclusão. 

“Amai o próximo como a ti mesmo” traz em si essa verdade: sem o amor a si mesmo não é possível amar a ninguém. Não posso distribuir o que não tenho.

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