sábado, 8 de dezembro de 2012

E Riobaldo não comenta a estória de Maria Mutema



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 22)

E Riobaldo escuta a estória de Maria Mutema e nada comenta sobre ela. Em todo o restante do livro o nome Mutema não aparece mais. E esse conto dentro do romance reúne em si  muito do que o romance diz como um todo.

Para quem ficou com preguiça de ler na postagem anterior o trecho-conto todo, vai aqui um resumo:

Maria Mutema vivia num lugarejo qualquer e em certo amanhecer seu marido está morto, na cama. Ele é enterrado e, algum tempo depois, a viúva Mutema dá de ir sempre à igreja, confessando-se a cada 3 dias. O padre da cidade dá claros e progressivos sinais de irritação e indisposição de ouvir Mutema em confissão. Ela insiste em confessar-se frequentemente. O padre Ponte vai definhando acaba por morrer e, após isso, Mutema deixa de ir à igreja. Tempos depois aparecem na cidadezinha os padres missionários, que iam pelas cidades rezando, casando, batizando, resolvendo as pendências. Na missa final, a mais importante, bem na hora do “Salve Rainha”, Mutema adentra na igreja. O padre estrangeiro, que conduzia a cerimônia, engasga e quase para a oração no meio, o que é proibido. Mas recupera-se, termina-a e de pronto fala firme: que essa que acabou de entrar saia já, com seus “maus segredos”. E que, se quiser se confessar que vá à entrada do cemitério, que é lá que ele irá ouvi-la, lá “onde estão dois defuntos enterrados”.

Mutema cai de joelhos e confessa, ali mesmo na igreja, que matou sim, matou o marido quando este dormia, jogando chumbo derretido em seu ouvido, sem motivo nenhum, e depois, na igreja, resolveu falsear, dizer ao padre Ponte que matou por estar apaixonada por ele. Ele acreditou, foi se desgostando e acabou morrendo.

E ela perde perdão, vai presa e, de ”tão pronunciado sofrer”, o povo começou a achar que ela estava ficando santa.

Maria Mutema matou seu marido sem que nem porque. Matou. Raiva não tinha, motivo não havia. Nem sabia porque. Depois matou padre Ponte da mesma maneira. Enjoou dele. E foi tomando gosto em vê-lo em definhando, adoecendo, na medida em que "confirmava o falso", que mentia dizendo que tinha matado porque gostava dele. Mas motivo, por que, causa clara? Não havia.

Maria Mutema: seu nome indica mudez. Indica que não há o que falar, por se viver no vazio, na falta de sentido. E é sem sentido mesmo e sem motivo nenhum que mata o marido. A violência pura, gratuita, sem motivação. Talvez seja mesmo esse o maior terror: a junção da violência com a falta de sentido; a máxima negação do outro, chegando mesmo a sua eliminação física e o máximo distanciamento de qualquer significado ou vínculo.

Mutema era mulher que não ria. Não há possibilidade de graça onde não há sentido algum. A vida vazia enjoa, entedia, desumaniza. E ela se torna “Esse lenho seco”, nada brota dali, nada de novo surge dali.

Há a mesma imagem nos dois crimes de Maria Mutema: curiosamente, a mulher muda mata pelo canal auditivo. Introduz por essa via o chumbo derretido que matará seu marido; introduz por essa mesma via a maledicências, o falso, que irá matar o padre Ponte.

Nos dois casos, a transformação do móvel no fixo. O chumbo se solidifica dentro do crânio e produz um som ao ser sacudido, comprovando o crime. O falso se solidifica em certeza dentro da cabeça do padre Ponte e acaba provocando a sua morte.

Padre Ponte acreditou na mentira dita por Mutema. Aceitou como verdade por ser preso a estigmas, porque "Uma pecha ele tinha: ele relaxava". Pecha, palavra antiga, remete a balda, defeito e tacha, e estas, por sua vez, remetem a falha, falta, podre, mancha, nodoa, erro, imperfeição e vício. Padre Ponte possuía uma crença a respeito de si mesmo: era um padre imperfeito, amigado e com filhos. Preso no seu pressuposto de culpa, no seu estigma que ele sentia como uma forma de inferioridade, preso na auto-referência, acreditou no Maria Mutema lhe disse. Aparentemente eram segredos aprisionadores, na verossimilhança eram segredos de confissão, mas em verdade se tratava de confirmar a mentira. Como disse Guimarães Rosa, "maus segredos". E estes "maus segredos" emudeciam pela vergonha e pelo receio da estigmatização. Calaram fundo e aprisionaram. Maria Mutema foi precisa: atirou no alvo certo. Como o padre já tinha o estigma de ser amigado o dito por Maria Mutema era verossímil, e padre Ponte "caiu".

É a certeza imutável matando, destruindo o movimento e a mudança característicos do que é vivo. É aqui o núcleo do romance: Riobaldo, o homem das incertezas e das dúvidas, do medo e da angústia, busca falsa solução para sua aflição, seja no pacto para perder o medo e adquirir coragem, seja na aproximação com Diadorim, no afã de conseguir sua coragem, apresentada como perfeita, sem nenhum medo, fechada na ideia e no couro. E aí está sua perdição, acaba por não ver o sentido maior que diante de si despontava, o seu amor por Diadorim, que morre, outra vítima das certezas imutáveis.

O padre estrangeiro descobriu tudo. Curioso que o tema do sortilégio foi tratado no romance um pouco antes. O fato de ser um padre estrangeiro parece indicar que somente um olhar de fora, um olhar mais limpo e menos contaminado pelos estereótipos, é que poderia ver o que acontecia com clareza.

A estória de Maria Mutema é um conto plantado dentro do livro de Guimarães Rosa. Riobaldo, guerreando e atormentado com dúvidas, tenta conversar com Joe Bexiguento, jagunço como ele. De antemão Riobaldo julga que seu companheiro de guerra é homem de ideias curtas. Como que uma pessoa assim teria o que dizer sobre suas inquietações? Mas Guimarães Rosa mostra que a verdade pode sair da boca de qualquer um, e faz Joe narrar uma história sobre o bem e o mal, sobre Deus e o Diabo, sobre a culpa e o perdão, sobre como é difícil separar as coisas em compartimentos estanques. Uma narrativa onde não julga as personagens, mas conta o que ocorreu. Deixa que Riobaldo reflita e tire suas conclusões, não fechando os sentidos de sua história. E Riobaldo leva o livro todo fazendo estas reflexões.

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