quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

26. E Riobaldo fala sobre a pressa



(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 26)


Riobaldo e Diadorim estão agora junto ao bando de Sô Candelário, homem dos mais valentes.

“Esse era alto, trigueiro azul, quase preto, com bigode amarelecido. Homem forçoso, homem de fúria. Mandou que mandava. Em hora de fogo, pulava à frente de todos, bramava o burro. Tomou a chefia geral, debaixo dele o Hermógenes parecia um diabo coitado. Só Candelário era o para enfrentar Zé Bebelo. Salvante que seria para tudo.”

E juntos todos vão ao encontro do grande líder, Joca Ramiro. E juntos todos irão para a guerra. Com Joca Ramiro a frente a vitoria é certa.

“Desde ver, a figura dele tinha parado no meio da gente, noutra coisa não se falava. Aí em festa feita a gente tramava nas armas: Joca Ramiro entrava direto em combate, então ia ser o fim da guerra!”

Mas Sô Candelário, o mais valente dos valentes, não poderá ir direto ao calor da batalha. Joca Ramiro não quer.

““Só Candelário queria ir também, mas teve de aceitar ordem de ficar...” – Diadorim me explicou. Segundo disse – que Só Candelário, por aquela ânsia e soência, de avançar, a avançar, agora podia desequilibrar a boa regra de tudo. Seria para ficar de espera, tapando o mundo aos que aqui o mundo quisessem. Assim, mais, Joca Ramiro tinha mandado: que nosso grupo se repartisse, em aos três ou quatro piquetes, para valer de vigiar bem os vaus e suas estradas.”"

Sô Candelário trazia em si a desmedida da valentia. E Joca Ramiro disso sabia. Riobaldo explica.

“Mas o Alaripe foi que me contou, uma coisa que todos sabiam e nela falavam. Que Só Candelário caçava era a morte. E bebia, quase constantemente, sua forte cachaça. Por quê? Digo o senhor: ele tinha medo de estar com o mal-de-lázaro. Pai dele tinha adoecido disso, e os irmãos dele também, depois e depois, os que eram mais velhos. Lepra – mais não se diz: ai é que o homem lambe a maldição de castigo. Castigo, de quê? Disso é que decerto sucedia um ódio em Só Candelário. Vivia em fogo de idéia. Lepra demora tempos, retardada no corpo, de repente é que se brota; em qualquer hora, aquilo podia variar de aparecer. Só Candelário tinha um sestro: não esbarrava de arregaçar a camisa, espiar seus braços, a ponta do cotovelo, coçava a pele, de em sangue se arranhar. E carregava espelhinho na algibeira, nele furtava sempre uma olhada. Danado de tudo. A gente sabia que ele tomava certos remédios – acordava com o propor da aurora, o primeiro, bebia a triaga e saía para lavar o corpo, em poço, para a beira do córrego ia indo, nu, nu, feito perna de jaburu. Aos dava. Hoje, que penso, de todas as pessoas Só Candelário é o que mais entendo. As favas fora, ele perseguia o morrer, por conta futura da lepra; e, no mesmo do tempo, do mesmo jeito, forcejava por se sarar. Sendo que queria morrer, só dava resultado que mandava mortes, e matava. Doido, era? Quem não é, mesmo eu ou o senhor? Mas, aquele homem, eu estimava. Porque, ao menos, ele, possuía o sabido motivo.”

A certeza da morte terrível, da doença estigmatizante, fazia com que Sô Candelário se tornasse um homem imprudente. A pressa o tomava ( E Guimarães Rosa, no seu livro anterior, “Sagarana”, já dissera que medo e pressa são praticamente iguais) e ele avançava sem cuidado na direção daquilo que julgava ser seu fim inevitável. Toda pressa traz em si bastante certeza. E nos cega para a realidade. Com pressa não conseguimos esperar que ela se manifeste, se revele por inteiro. E acabamos precipitados.

Joca Ramiro, em sua grande sabedoria, julga por bem não levar Sô Candelário para a frente da guerra.

Temos em nossa cultura outro exemplo de pressa levando à falsa consciência e à decisão equivocada.

Trata-se do autor da frase abaixo, a nós presenteada por Públio Ataíde.

‎"Tenho medo da morte e da dor, mas convivo bem com isso. O medo me fascina."
Ayrton Senna

Em trabalho sobre a pressa, analiso os acontecimentos que culminaram com seu falecimento.

“Senna foi eleito recentemente o maior piloto de todos os tempos. Apesar de possuir somente 3 títulos mundiais, sendo sobrepujado por Schumacher e Fangio, com 7 e 5 títulos, respectivamente, sua qualidade técnica ainda é lembrada por todos aqueles que gostam de corridas de carros.

Sua morte trágica, ocorrida durante a prova de Monza, em 1994, traz consigo considerações importantes.

Naquele ano muitas mudanças foram realizadas nos carros da formula 1. Os aerofólios estavam mais estreitos do que no ano anterior, assim como os pneus. O controle de tração, os freios ABS e a suspensão ativa, recursos tecnológicos que facilitavam a dirigibilidade dos veículos, também foram proibidos no ano anterior. O objetivo era baratear os custos das equipes e deixar os carros mais lentos e com mais possibilidades de ultrapassagens por prova. Mas os carros não ficaram mais lentos. Senna bateu o recorde de velocidade da pista neste fim de semana. Os motores aspirados usados na época já estavam mais velozes que os motores turbo do passado, motores esses que haviam sido proibidos justamente por serem velozes demais.

As queixas de que os carros estavam mais inseguros apesar de continuarem excessivamente velozes eram constantes. O próprio Senna havia apontado esse problema ao reclamar: “Os carros estão rápidos demais e difíceis de controlar”.

No primeiro dia de treinos Senna ficou transtornado após acidente com o piloto Rubens Barrichelo. Este, motivado pelo primeiro pódio da carreira conseguido na corrida anterior, exagera um átimo na aceleração de seu carro e  decola sobre uma zebra da pista, bate e salta acima dos pneus de proteção e se arrebenta numa tela protetora. Quase que milagrosamente sobrevive com poucas lesões.

No dia seguinte Senna assistiu pelo monitor dos boxes ao acidente que matou o piloto Ratzenberger. Ao ver as equipes de socorro iniciarem uma massagem cardíaca ainda no asfalto do circuito se descontrolou, colocou as mãos no rosto e chorou convulsivamente durante 15 minutos.

Após 12 anos sem um acidente fatal na formula 1 um piloto quase morre e outro falece na pista. E no mesmo fim de semana Senna também morreria.

A morte de Ratzenberger levou Senna a liderar um movimento para a suspensão dos treinos ou até mesmo da corrida. Ao falar ao telefone com a namorada, após ir ao local do acidente fatal do piloto austríaco, Senna afirmou que não ia mais correr de carro no dia seguinte. Mais tarde, já à noite, mais calmo, falou para a namorada não se preocupar. Disse: “Não se esqueça de uma coisa, eu sou forte, muito forte”.

Pouco antes da corrida, na hora da concentração, ficou 5 minutos parado olhando o carro. Seu comportamento incomum chamou a atenção de jornalistas já acostumados com sua rotina.

Por que Senna mudou de opinião e decidiu correr? Se havia um piloto que reunisse em si todas as qualidades técnicas para julgar os absurdos que estavam ocorrendo, este piloto era ele. Ele chegou a comunicar que não correria ao seu chefe, Frank Willians, que autorizou o que ele decidisse. Mas parece que de alguma forma Senna foi se acalmando e à noite já tinha mudado de opinião e decidido correr.

Decisão diferente tomou Emerson Fittipaldi, em 1975, no GP da Espanha. Ao se prepararem para iniciar os treinos para a prova os pilotos perceberam que as condições de segurança da pista eram sofríveis, particularmente no que dizia respeito aos guard-rails, precariamente instalados. Emerson liderou um movimento pela não realização da prova. As pressões e ameaças dos organizadores, dirigentes e patrocinadores foram imensas, algumas providências paliativas foram tomadas e a maioria dos pilotos concordou em correr.

Emerson, ameaçado até de exclusão definitiva da Fórmula 1, simulou problemas mecânicos para não se classificar e não correu. Durante a prova grave acidente matou 5 pessoas, quatro delas instantaneamente, e deixou muitos feridos.

Neste caso os fatos posteriores deram razão a Fittipaldi. Mas quando ele decidiu não participar ele correu o risco de que a prova transcorresse sem incidentes. E aí ele seria criticado, de piloto covarde, desprovido da coragem necessária à profissão. Talvez pelo fato de ser jovem, recém tornado campeão mundial, Emerson não se abalou e manteve sua decisão.

Ayrton Senna já não era tão moço, tinha então 34 anos e o campeonato de 1994 estava sendo o pior de sua vida. Foi a primeira vez que ele não marcou nenhum ponto nas duas primeiras corridas. Rodou na primeira prova e foi tirado da pista na primeira curva da prova seguinte. Schumacher, jovem revelação, estava 20 pontos à sua frente. Como poderia deixar de correr? Os outros diriam que ele já estava ficando velho, que perdera o arrojo, que já não tinha a coragem que teve em algum momento de sua vida, que devia agora dar espaço para a nova geração de pilotos que surgia.

Alguns desses pensamentos devem ter passado pela cabeça de Senna durante a tarde da véspera da prova. De alguma forma ele anestesiou sua compreensão inicial, de que não deveria correr no dia seguinte. E a noite comunicou a namorada que participaria da prova.

Sabemos hoje que o principal elemento causador do seu acidente foi o rompimento da barra de direção de seu Willians. Ele inclusive já havia se queixado que o carro trepidava, o que talvez pudesse ser causado pela fadiga do material. Mas este fato não invalida o quadro de risco muito aumentado de todos os automóveis participantes, risco esse causado primordialmente pelas mudanças realizadas nos veículos neste ano. Pois cabe lembrar neste GP, o primeiro de alta velocidade do ano, Barrichello se acidentou muito gravemente e Ratzenberger e Senna morreram. Além disso, na corrida seguinte, já em um circuito de baixa velocidade, mais um piloto se acidentaria com gravidade, ficando muitos dias em coma.

E Senna percebeu os absurdos, tomou a decisão adequada, mas foi lentamente se anestesiando e tragicamente mudou de opinião.

Conan Doyle, através de seu famoso personagem Sherlock Holmes, no  romance “A cidade do medo”,  diz de “Um homem que não pode falhar: uma pessoa cuja posição depende do fato que tudo que faz deve dar certo”. Esse homem parece-se com Howard e Ayrton Senna. Um homem que não pode falhar está condenado à pressa e ao medo.  O medo de falhar o leva à impulsividade e ao medo de parar e perceber-se falho ou errôneo.

É possível ultrapassar quem tem esperanças, projetos, e caminha passo a passo, ou engatinha palmo a palmo, na direção daquilo que lhe é vital? É possível ultrapassar quem é humilde e sabe reconhecer o que sabe e o que não sabe?”

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