sábado, 15 de dezembro de 2012

E Riobaldo fala da raiva e da soberania


 

(Da série “Como João Guimarães Rosa pode mudar sua vida”, parte 24)


Diadorim ainda demora e Riobaldo fica com raiva. E seus companheiros percebem que ele não está bem.

“No mais, mal me lembro, mas sei que, naqueles dias, eu estive muito maltrapilho. Em que era que eu podia achar graça? De manhã, quando eu acordava, sempre supria raiva. Um me disse que eu estava estando verde, má cara de doença – e que devia de ser de fígado. Pode que seja, tenha sido. O Paspe, que cozinhava, cozinhou para mim os chás: o de macela, o de erva-doce, o de losna. Oi. Dor, mesmo, nenhuma eu não tinha. Somente perrengueava.

Do que de uma feita, por me valer, eu entendi o casco de uma coisa. Que, quando eu estava assim, cada de-manhã, com raiva de uma pessoa, bastava eu mudar querendo pensar em outra, para passar a ter raiva dessa outra, também, igualzinho, soflagrante. E todas as pessoas, seguidas, que meu pensamento ia pegando, eu ia sentindo ódio delas, uma por uma, do mesmo jeito, ainda que fossem muito mais minhas amigas e eu em outras horas delas nunca tivesse tido quizília nem queixa. Mas o sarro do pensamento alterava as lembranças, e eu ficava achando que, o que um dia tivessem falado, seria por me ofender, e punha significado de culpa em todas as conversas e ações. O senhor me crê? E foi então que eu acertei com a verdade fiel: que aquela raiva estava em mim, produzida, era minha sem outro dono, como coisa solta e cega. As pessoas não tinham culpa de naquela hora eu estar passeando pensar nelas. Hoje, que enfim eu medito mais nessa agenciação encoberta da vida, fico me indagando: será que é a mesma coisa com a bebedice de amor? Toleima. O senhor ainda me releve. Mas, na ocasião, me lembrei dum conselho que Zé Bebelo, na Nhanva, um dia me tinha dado. Que era: que a gente carece de fingir às vezes que raiva tem, mas raiva mesma nunca se deve de tolerar de ter. Porque, quando se curte raiva de alguém, é a mesma coisa que se autorizar que essa própria pessoa passe durante o tempo governando a idéia e o sentir da gente; o que isso era falta de soberania, e farta bobice, e fato é. Zé Bebelo falava sempre com a máquina de acerto – inteligência só. Entendi. Cumpri. Digo: reniti, fazendo finca-pé, em força para não esparramar raivas. Lembro que naquela manhã também o calor era menos, e o ar era bondoso. Aí eu à paz – com vontade de alegria – como se estimasse recebendo um aviso.”

Uns dizem que foi Dom Miguel de Unamuno que, ao receber no rosto o resto do vinho que estava no copo do seu interlocutor que, raivoso por não ter mais argumentos para o debate, resolveu arremessar a bebida na cara do grande filósofo, respondeu dizendo algo do tipo:

- Tá bom. O vinho já veio. Excelente, tal como o meu. Mas, e o argumento? Esse não vem? Quer dizer que você admite mesmo que não tem como defender o que dizia antes?

Outros dizem que foi outra pessoa que fez isso. E alguns dizem que essa história é um tipo de lenda. Mas de qualquer forma teria sido muito útil num debate Russo, no qual o notoriamente ensandecido candidato de direita, ao se ver sem argumentos, arremessou o seu suco de laranja no rosto do adversário. Este, não sendo nenhum Unamuno, achou por bem fazer o mesmo e arremessou de volta o seu próprio suco. E os dois candidatos pularam um no pescoço do outro enquanto a versão russa do Jô Soares tentava desesperadamente apartar a briga.

Qual não foi a oportunidade perdida pelo adversário do direitista enlouquecido? Ao menos se ele conhecesse a narrativa anterior... Talvez tivesse tido a presença de espírito de lamber o suco que escorria em seu rosto, dizer que estava excelente, perguntar se o argumento não viria mesmo... E se virar para a camera da TV, dizendo:

- Algum de vocês ainda cogita votar nesse homem? É para esse ser descontrolado que vocês pretendem entregar a mala com o botão das bombas nucleares? Ele tem a mínima condição de governar alguma coisa?

E seria a glória.

Riobaldo nos mostra que sentir raiva é ser manipulado, é deixar alguém governar a ideia e o sentir da gente. É fazer o que o outro quer que a gente faça.

E é falta de soberania.

Um marido me dizia de seu espanto e  dor ao perceber a esposa tomada pela raiva e decidida pela separação. Disse a ele que se ela estava com muita raiva, isso não era sinal de força, mas de fragilidade. Que ela se apoiava em sua raiva para arrumar um jeito de ter certeza que o melhor era separar-se. Mas que toda essa raiva indicava que ela estava tomada por dúvidas. Se ela estivesse realmente segura de sua decisão de acabar com o casamento não teria tanta raiva. Teria é mais dor, sofrimento e tristeza de ver tudo que tentou construir, ruir. 

A raiva é péssima conselheira.


Nenhum comentário: